Abrir espaço para o debate de temas controversos é um dos compromissos tradicionais da imprensa democrática. No nosso caso, esse compromisso é sistematicamente ignorado e, com alguma frequência, substituído por uma tentativa de fabricação de consenso que transforma o jornalismo em propaganda. É tipicamente o que ocorre com a Lei Seca, recém-alterada às vésperas das festas de fim de ano.
Desde que entrou em vigor, em 2008, a Lei Seca recebeu da nossa imprensa, de modo geral, uma adesão automática e acrítica que implicava um equívoco básico: o de atribuir exclusivamente ao abuso de álcool a responsabilidade pela maioria dos acidentes graves de trânsito. Não era o que a lei indicava – nem mesmo a lei original de 1997, que instituiu o Código de Trânsito e punia quem dirigisse “sob o efeito de álcool… ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica” (art. 165, depois alterado, mas preservando-se o sentido).
Evidentemente, não apenas o excesso de álcool é capaz de transtornar mentalmente o motorista – aliás, a rigor ninguém precisa estar sob o efeito de qualquer substância psicoativa para perder a cabeça no trânsito de uma grande cidade –, mas talvez o espetáculo produzido pelas blitze e as cenas de pessoas saindo trôpegas dos carros, ou mesmo aparentemente sóbrias mas recusando-se a soprar o bafômetro, alimentassem essa ilusão.
Na mão do “guarda da esquina”
As novidades agora são basicamente duas: o agravamento da multa, que dobra (e dobra mais uma vez em caso de reincidência, o que dispensa comentários quanto aos objetivos de arrecadação) e a ampliação das possibilidades de identificação dos infratores, incluindo-se vídeos ou prova testemunhal (art. 306, §2º) [ver aqui], de modo que quem for acusado e quiser provar inocência terá de recorrer ao bafômetro ou a exame clínico.
Será divertido ver agora os policiais de câmera em punho, montando essa “espécie de Big Brother”, como disse um deles em reportagem publicada pela Folha de S.Paulo (31/12). Que usos poderão fazer dessas imagens, nesses tempos de permissividade digital? Como prevenir os excessos do – aqui, quase literalmente – “guarda da esquina”? O que significa, para nosso ordenamento jurídico, essa inversão do ônus da prova?
São questões de princípio, difíceis de discutir justamente porque estamos diante de um caso concreto que tende a obter o apoio da opinião pública: a repressão sem trégua a quem potencialmente provocará acidentes, eventualmente fatais. Por um desses mecanismos que nos conduzem ao autoengano, tendemos a esquecer dos inúmeros casos de abuso de poder e dos transtornos que uma acusação infundada pode trazer. Basta imaginar a cena do motorista sóbrio mas irritadiço, parado pela blitz, que não se contenha e “desacate” a autoridade.
A sedução do Leviatã
Mas não é só. Como escreveu certa vez Eduardo Giannetti da Fonseca (bem a propósito, em Auto-engano, 1997), o sistema de trânsito é um “formidável laboratório de psicologia e interação social”. Um laboratório “hobbesiano”, acrescentaria logo a seguir. Capaz – como diria o célebre deputado – de provocar nossos instintos mais primitivos. E, além do mais, alimentado – digo eu – pela máquina da propaganda que cultiva nossas fantasias pela TV.
Então um carro se funde a um Fórmula 1 numa estrada deserta – estradas e ruas estão sempre desertas nos anúncios – e o motorista captura no banco de trás o piloto amarrado ao cinto de segurança. Um jovem casal enlouquece no ritmo alucinante da música estridente num automóvel que voa ainda no pátio do cargueiro, atado aos cabos de aço. Um potente modelo importado assume a forma de um “transformer” e vive peripécias do filme de animação. Um compacto modelo “popular” é vendido como uma brincadeira infantil: “uno, du-ni, tê, salamê min-guê…”. Tudo é simultaneamente veloz e lúdico, como convém aos tempos de hoje.
Até que um dia o brinquedinho se espatifa.
A nova Lei Seca oferece uma excelente oportunidade para a discussão sobre esse grande laboratório em que estamos metidos. E para indagar sobre essa espécie de sedução do Leviatã, que nos leva a aplaudir o endurecimento das leis como norma de convívio social. A julgar pelo noticiário e pela programação televisiva, mesmo nos canais pagos, esta vai ser mais uma oportunidade perdida.
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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]