A história da Times New Roman começa em 1929, quando Stanley Morison escreveu uma dura crítica dirigida aos executivos do jornal The Times, de Londres, sobre a maneira como usavam a tipografia. Morison, então consultor da empresa tipográfica Monotype Corporation, alertava para o fato de o jornal ser mal impresso e tipograficamente antiquado, conspirando contra sua reputação construída ao longo dos anos.
O Times se orgulhava de ser reconhecido pela tipografia. Em uma das mais famosas aventuras de Sherlock Holmes, O cão dos Baskervilles, publicada por Arthur Conan Doyle em 1902, o detetive diz: “A identificação das letras impressas é um dos ramos mais elementares do conhecimento para o especialista em crimes, embora eu confesse que, quando jovem, confundi o Leeds Mercury com o Western Morning News, mas o tipo dos editoriais do Times é inconfundível”.
Perplexos com a audácia de Morison, que ousou desafiar o jornal de quase 150 anos, os diretores formaram uma comissão para analisar as críticas. O detalhado artigo de mister Morison, autoridade já consagrada no campo da tipografia, não deixava dúvidas, e os diretores concluíram que, para o bem de seus leitores, era realmente necessário mudar a tipografia do jornal.
Quem melhor que o próprio Morison para a tarefa? Ele foi convidado para liderar a reforma.
Por décadas, a primeira página do Times era dedicada exclusivamente aos anúncios classificados. Internamente, as informações ficavam emendadas umas às outras, separadas apenas por títulos minúsculos, compostos na mesma largura das colunas, fazendo do jornal uma massa de textos de leitura quase impossível. Até 1966, quando os classificados foram retirados, o jornal só havia publicado notícias na primeira página em oito ocasiões, entre as quais a vitória em Trafalgar (batalha na costa da Espanha vencida pelos ingleses, comandados pelo almirante Nelson, sobre as frotas de França e Espanha, em 1805) e a morte do ex-primeiro ministro Winston Churchill (em 1965).
Uma letra compacta e legível
Ao ser convidado para conduzir a reforma gráfica do Times, aos 40 anos, Stanley Morison preparou um documento (“Memorandum on a Proposal to Revise the Typography of The Times”) de 38 páginas, um conjunto de informações técnicas e históricas, e sugeriu uma nova fonte tipográfica que fosse “masculina, inglesa, direta, simples… e absolutamente livre de modismo e frivolidade”. A isso se acrescentavam as recomendações do comitê gestor que pedia que a letra parecesse mais larga, mas não ocupasse mais espaço que a anterior, que fosse levemente mais pesada e acima de tudo altamente legível.
Para o trabalho braçal, Morison contou com Victor Lardent, um designer do departamento de publicidade do Times, para quem passou os esboços juntamente com um catálogo da Plantin, uma letra do século XVI (reeditada pela Monotype em 1913), para ser usada como base da nova fonte.
O resultado foi uma fonte muito parecida com a Plantin, mas as serifas eram mais afiladas, o contraste entre traços maior, espacialmente econômica e acima de tudo mais legível em corpos pequenos. O novo desenho atendia às necessidades do jornal, considerados os métodos de produção da época.
A fonte Times New Roman estreou na edição de 3 de outubro de 1932 e causou, pela sua alta legibilidade, grande impacto favorável nos seus leitores de tradição conservadora. Para os editores do jornal, a mudança representava mais do que boa repercussão. Era uma letra compacta o suficiente para render mais, isto é, permitir que um número maior de caracteres fossem compostos numa mesma linha. Se comparada com sua principal rival, a fonte Ionic, lançada alguns anos antes e usada amplamente pelos jornais dos Estados Unidos, a Times rendia 23 linhas para cada 20 linhas da fonte americana.
Morison não esperava o sucesso estrondoso que a Times teria ao longo do século XX. Ele dizia que a letra só serviria para jornal e excepcionalmente para livros. O que se viu, no entanto, foi um boom extraordinário de usos.
Estreou como fonte de livros dois anos depois de seu lançamento e sua saga não parou mais: passou a ser usada em revistas, em dicionários, na publicidade e em todas as mídias que se valem da tipografia.
De família pobre, criado pela mãe numa área periférica de Londres, Stanley Morison abandonou os estudos formais aos 14 anos. Cedo se converteu ao catolicismo e tentou sua inscrição no Partido Comunista, mas não foi aceito. Trabalhou para uma sociedade bíblica e um banco e foi desde a adolescência, por influência da mãe, um leitor inveterado, nascendo daí sua paixão pela palavra impressa.
Foi justamente o jornal criticado em 1932 que despertara, 20 anos antes, seu entusiasmo pelo mundo gráfico. Em 10 de setembro de 1912, ao comprar o Times na estação King's Cross, deparou-se com um suplemento sobre caligrafia e impressão que o deixou fascinado e decidido a ter uma carreira em artes gráficas. Por coincidência, no próprio suplemento, um anúncio oferecia um emprego de assistente editorial numa revista de tipografia, a Imprint. Morison se candidatou e, mesmo sem ter os requisitos exigidos em “editoração e publicidade”, foi aceito, começando então seu trabalho como designer tipográfico, autor e editor.
Casou-se com Mabel Williamson, 16 anos mais velha, aparentemente para fugir do serviço militar. Alegou ser, por princípios, contra a guerra, mas suas manobras não deram resultado e acabou preso. Depois da Primeira Guerra Mundial ingressou numa editora católica e fundou em 1923 a revista anual de tipografia The Fleuron, em parceria com amigos. Das sete edições, três foram editadas por Morison, expandindo daí sua influência internacional.
No mesmo ano foi contratado pela Monotype Corporation e, no ano seguinte, viajou aos Estados Unidos, onde colheu bons resultados para o seu trabalho, mas causou mal-estar por um comentário feito na volta. Morison disse que “tipograficamente os Estados Unidos têm pouca importância. Os únicos personagens importantes do futuro (da tipografia) estão trocando os EUA pela Inglaterra”. Ele estava se referindo ao casal Warde, Frederic e Beatrice, que seguiriam para Londres no ano seguinte. Morison ficou bem impressionado pelo design e pela caligrafia de Frederic, mas ficou mais impressionado ainda com a beleza da nova-iorquina Beatrice. Frederic, a pedido de Morison, foi contratado pela Monotype.
Os Warde advogavam um casamento aberto: “Nós concordamos que um não vai interferir na vida do outro, cada um vai viver sua própria vida”, dizia Beatrice, que se apaixonou por Frederic quando tinha 18 anos. Mas o casamento fracassou. O casal se separou. Frederic voltou aos Estados Unidos e Beatrice ficou em Londres. Tornou-se a musa de Morison e mais tarde sua companheira, quando ele se separou de Mabel.
Começou então a ascensão de Beatrice ao universo tipográfico. Convidada por Morison, ela escreveu artigos para a Fleuron, mas em vez de usar seu próprio nome criou um pseudônimo: Paul Beaujon. Considerou essa decisão necessária para não ser discriminada num ambiente 100% de domínio masculino.
Os artigos de Beaujon causaram boa impressão aos diretores da Monotype, que o convidaram para trabalhar na empresa.
Surpresa! Era uma mulher! Os executivos, que nunca tinham contratado nenhuma mulher a não ser como secretária, ficaram atônitos, e só se recuperaram depois das explicações de Morison. Beatrice foi então contratada como editora da Monotype Recorder, a revista interna da empresa, que ela transformaria num veículo de reflexão e debate sobre a tipografia clássica, defendida por ela e por Morison.
Beatrice falava com certa poesia: comparava a boa tipografia com a transparência de uma taça de cristal, que permite ver claramente o vinho sem interferência, assim como a letra impressa deveria ser o veículo condutor do seu conteúdo sem chamar a atenção para si. Uma teoria limitadora das funções da tipografia, que foi desconstruída ao longo do século XX, mas que embasou seu trabalho e o de Morison.
Dos moldes de metal aos computadores
A Times New Roman funcionou perfeitamente por 40 anos, enquanto os processos tecnológicos de composição e impressão permaneceram os mesmos do século XIX, ou seja, composição com linotipos e impressão com chapas em alto relevo. A partir dos anos 1970, porém, o Times mudou suas fontes outras cinco vezes para atender aos avanços tecnológicos.
Fora das páginas do Times, a fonte virou marca icônica e seguiu vida própria. Difundiu-se pelo mundo, primeiro em moldes de metal, depois em matrizes para fotocomposição, mais tarde por meio de softwares de computadores para a indústria gráfica e como parte integrante das bibliotecas de fontes dos PCs e Macintoshes, em que aparece com o nome Times New Roman ou Times Roman (nome que recebeu nos EUA). Desde 1992 a fonte faz parte do Windows e do Word, e é provavelmente a mais escolhida para as dissertações e teses acadêmicas. Segundo os sites especializados teremos em torno de dois bilhões de computadores no mundo em 2014, ou seja, a grosso modo, são dois bilhões de fontes Times instaladas.
Entre centenas de jornais que adotaram a Times, já na fase da fotocomposição, estão o El País, de Madri, a partir da sua primeira edição em 1976, La Vanguardia, de Barcelona e La Repubblica, de Roma. No Brasil, O Estado de S. Paulo e o Jornal do Brasil foram impressos com a Times por muitos anos.
A criação da Times foi a única incursão de Morison como designer de tipos, mas seu currículo foi extenso: além de consultor da Monotype e do Times, atuou na Cambridge University Press e na Encyclopedia Britannica. Foi ainda editor do suplemento literário do Times. Como historiador da tipografia deixou pelo menos duas dezenas de livros.
Beatrice permaneceu em Londres pelo resto de sua vida, estabelecendo uma reputação como autora, hábil oradora, educadora e publicitária da tipografia. Enérgica e entusiasmada. Companheira de Morison até o fim. Ele morreu aos 78 anos, em 1967, e ela, aos 69, em 1969.
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[Léo Tavejnhansky é editor de Arte de O Globo]