Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A história da luta pela regulamentação

A luta pela regulamentação da TV a cabo no Brasil fundamentou-se na possibilidade de se oferecer à população brasileira uma alternativa à TV aberta, oligopolizada por um número reduzido de emissoras. O ápice desta batalha se deu no início da década de 90, quando foi apresentado um projeto de lei na Câmara dos Deputados que, depois de muita negociação, foi aprovado no final de 1994 e converteu-se na Lei nº 8.977/1995, sancionada em 6 de janeiro de 1995 (a Lei do Cabo). Com a lei, foi regulamentado o funcionamento de canais privados no sistema de televisão por assinatura brasileiro e também dos canais básicos de utilização gratuita (comunitários, legislativos, universitários e educativo-culturais).

De acordo com o professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), Murilo César Ramos, que participou ativamente das negociações da Lei do Cabo como representante da Academia, ver a TV a Cabo como alternativa à TV aberta era um sonho, já que as próprias experiências de TV paga no mundo sempre mostraram que eram uma opção elitizada, por conta do acesso restritivo. Mas foi este sonho que motivou o início da luta pela regulamentação e o desenho dos primeiros esboços desse modelo de televisão no Brasil.

Segundo relata o professor Murilo, a luta pela regulamentação da televisão a cabo no Brasil começou ainda na década de 70, com a criação da Associação para a Promoção da Cultura (APC), em 1973, pelo ativista gaúcho Daniel Herz, que faleceu em 2006. “Graças a encontros entre Daniel Herz, representando a APC, e o professor Romero Simon, do departamento de Engenharia da Universidade do Rio Grande do Sul (URGS), em meados da década de 70, foi elaborado um projeto-piloto de TV a cabo para o Rio Grande do Sul e entre o fim dos anos 70 e início dos anos 80 o Ministério das Comunicações chegou a ser provocado para regulamentar a TV a cabo no Brasil”, relembra Murilo Ramos.

Debate amplo e democrático

Se a pressão dos radiodifusores fez com que a discussão não prosperasse naquela época, no início da década de 90 a discussão volta com força total, e encontra uma sociedade mais organizada. Entre outros atores, existia na época o Movimento Nacional pela Democratização da Comunicação, que atuou durante a Assembleia Constituinte pela inclusão dos artigos referentes à Comunicação Social na Constituição Federal e que agregava várias entidades do setor. Em 1992 o Movimento se transformou no Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que assumiu o protagonismo desta luta. Além disso, Daniel Herz, fundador da APC e grande entusiasta da ideia, ocupava a presidência da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), uma das entidades fortes do FNDC.

Em 1991 foi realizada em Brasília uma audiência pública organizada pela Secretaria Nacional de Comunicação (SNC) – órgão equivalente ao Ministério das Comunicações no governo Collor – sobre a consulta pública da portaria que criava o serviço de TV a Cabo no Brasil. “Na véspera da consulta, realizamos uma grande plenária na UnB e estavam presentes organizações da sociedade civil envolvidas com o tema na época: Fenaj, Sindicato dos Jornalistas, Radialistas, o pessoal da própria Faculdade de Comunicação da UnB, entre outras, para decidir como iríamos participar dessa audiência, como seria a intervenção. No dia da audiência, o auditório ficou tomado pelas organizações, que também fizeram faixas, e isso até causou grande surpresa nos participantes da audiência”, conta o professor.

Nesse período, a reivindicação da sociedade civil era principalmente em relação ao instrumento jurídico quer seria utilizado para regulamentar TV a Cabo no Brasil. “Dizíamos que se tratava de assunto tão importante, que uma mera portaria não poderia regulamentar. Nós queríamos uma lei, aprovada no Congresso, para fortalecer a política e para que houvesse um debate amplo e democrático no Congresso. E também porque não queríamos correr o risco de ver as outorgas entregues para as mesmas emissoras que já monopolizavam a TV aberta”, conta Murilo Ramos.

“Foi alguma coisa”

“Nós decidimos fazer um projeto de lei para parar a portaria. Um dia, fizemos uma reunião com Carlos Eduardo Zanata, assessor técnico para a comunicação da bancada do PT na Câmara, e elaboramos uma proposta. Chamamos o Tilden Santiago, deputado federal pelo PT de Minas, jornalista ligado às lutas históricas pela democratização da comunicação e ele assinou o projeto. Estava pautada no Congresso a regulamentação da TV a cabo. Com o projeto tramitando, o Executivo ficou de mãos atadas. Ele não iria ter coragem de soltar a portaria se tinha um projeto em tramitação sobre o mesmo assunto”, explica o professor, referindo-se ao Projeto de Lei nº 2.120, que dispunha sobre o Serviço de “Cabodifusão” no Brasil e foi apresentado na Câmara em novembro de 1991 pelo então deputado federal Tilden Santiago.

Um ano após o projeto de lei ter sido apresentado na Câmara, aconteceu um fato inédito e positivo para as entidades do movimento nacional pela democratização da comunicação: a deputada federal Irma Passoni (PT-SP) assumiu a presidência da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, o que o professor Murilo Ramos qualifica de “acidente legislativo positivo para o nosso campo”, já que normalmente a comissão ficava sob comando de setores mais conservadores da sociedade. “Ela designou como relator do Projeto de Lei o deputado Koiyu Iha (PSDB-SP), num lance de mestre, porque não tinha como brigar com o PFL sem uma aliança maior na Câmara. Nós ajudamos a montar uma pauta para a comissão, que fazia reuniões formais e informais, audiências. Ela passou a comandar dentro do Congresso a discussão, a partir da visão de que não era um problema do parlamento, mas de que a lei tinha que ser feita pela sociedade”, rememora o professor Murilo.

Para o radialista e diretor do Sindicato dos Radialistas do Distrito Federal (SINRAD-DF) Chico Pereira, que na época era diretor do SINRAD-DF e integrante do Movimento Nacional de Radialistas – que mais tarde se transformaria na Federação Interestadual dos Trabalhadores em Rádio e TV (Fitert) –, a aprovação da Lei do Cabo foi resultado de uma “boa aliança entre movimentos sociais e alguns parlamentares”, referindo-se ao espaço para o diálogo que se estabeleceu entre a sociedade e a CCTCI. “Sem dúvida, a aprovação desta lei esta foi uma conquista da sociedade civil organizada em parceria com legisladores sérios, atuando conjuntamente por dentro da Comissão”, relata o radialista. “Nossa grande busca era garantir na Lei do Cabo um espaço aberto e patrocinado para as TVs comunitárias, legislativas, universitárias. Foi alcançado não o quanto queríamos, mas foi alguma coisa. Um dos pontos importantes, a meu ver, foi garantir que as TVs comunitárias tivessem canais no cabo com o mínimo de gasto possível”, conta Chico Pereira, que também comemora a garantia do espaço para os canais legislativos no cabo.

Divergências na negociação

A CCTCI havia sinalizado que acataria as sugestões que viessem da sociedade para fechar o texto da lei, mas a própria sociedade estava com dificuldades de fechar um texto comum, devido à intervenção dos empresários nas negociações. “Ainda vigia o monopólio estatal das telecomunicações e a Telebrás – e representantes da Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Telecomunicações (Fittel), muitos deles trabalhadores da Telebrás – diziam que só ela poderia fazer e operar estas redes. Já as empresas privadas diziam que se tratava de um serviço privado e que não cabia o monopólio, destinado apenas para serviço público. E as forças hegemônicas do FNDC (representadas principalmente por Daniel Herz, presidente da Fenaj na época) defendiam que a rede podia ser privada, mas com estatuto público, inclusive eu também defendia essa posição”, relata o professor Murilo Ramos.

Ramos esclarece ainda que “aquela foi uma discussão presidida pela questão tecnológica e o grande impasse era o controle da rede. Sabia-se já naquela época que o futuro era a fibra ótica e a banda larga, as redes de alta velocidade e alta capacidade”, diz o professor. Ainda segundo ele, depois de intensas negociações, a proposta apresentada pelas hegemônicas do FNDC foi acolhida pelo relator do projeto. “A rede seria privada, mas o estatuto dela seria público, como são as redes das concessionárias hoje”, afirma o professor.

As últimas negociações entre a sociedade para deliberar sobre a Lei do Cabo ocorreram em uma plenária do FNDC que ocorreu em Salvador, no segundo semestre de 1994. “Era a plenária que fecharia o texto final da lei, claro, com as pré-condições postas”, conta o professor Murilo Ramos, que se lembra de outro ponto de discordância surgido na plenária: a questão da exclusividade na exploração do serviço. “Os empresários conseguiram aprovar que haveria exclusividade para exploração do serviço e houve forte reação contrária da sociedade em relação a este ponto. Fizemos um acordo para que houvesse competição e, finalmente, o deputado Koiyu Iha recebeu o texto que foi aprovado na nossa plenária da deputada Irma Passoni. Depois disso, foi feito um acordo de lideranças e o texto foi aprovado sem mudanças na Câmara e no Senado. Passou em outubro de 1994 no Congresso e foi a primeira lei sancionada pelo FHC, em janeiro de 1995”, finaliza o professor.

O jornalista, diretor da TV Comunitária de Brasília e vice-presidente da Fenaj na época das negociações da Lei do Cabo, Beto Almeida, afirma que foi contra alguns elementos do acordo feito entre a sociedade civil organizada, parlamentares e empresários para a aprovação da lei, mas foi voto vencido. “Nós gostaríamos de ver incluída a limitação à propriedade cruzada, para que não se reproduzisse no cabo o mesmo desequilíbrio do controle de espaços midiáticos por setores já poderosos no espaço aberto”, recorda Almeida. “Outra questão que buscamos e fomos derrotados era a inclusão de uma forma de sustentabilidade às TVs comunitárias, porque os canais das instituições, como TV Senado, Câmara e TVs Assembleia têm sua forma de sustentabilidade, mas as TVs comunitárias não. Ademais, há uma proibição para que elas pratiquem a publicidade, então, como vai viver uma televisão comunitária? E tiveram outras propostas e projetos que tentamos incluir na negociação na época, mas que não fomos atendidos Nós queríamos que a Lei do Cabo tivesse um grau de democracia e pluralidade um pouco mais amplo. Houve a conquista possível”, relata.

Mobilização da sociedade

Para Murilo Ramos, esta foi, depois da Assembleia Nacional Constituinte, a mais importante mobilização que reuniu sociedade civil, empresas e Congresso, para discutir um tema de comunicação. “Depois da Constituinte foi a maior mobilização, fazendo-se uma ressalva apenas para a Confecom, que trouxe outros atores de fora do campo da comunicação para discutir o tema, e essa foi uma grande contribuição. As discussões da Constituinte e da Lei do Cabo ficaram no meio de especialistas”, argumenta o professor, que acredita ainda que as discussões e mobilizações em relação à Lei do Cabo fizeram com que a sociedade civil se organizasse melhor e acumulasse muito politicamente.

Entretanto, segundo o radialista Chico Pereira, a mobilização da sociedade, que neste caso da Lei do Cabo se deu de forma bastante ativa, esfriou. “A julgar pela mobilização e pela forma como as coisas vinham acontecendo, eu tinha a impressão de que outras coisas, como a regulamentação dos artigos da Constituição Federal relativos à comunicação, viriam com o mesmo grau de interesse e construção de consenso”, pontua. “Acredito que isto não se deu porque o perfil do Congresso Nacional piorou muito, na medida em que houve um derrame de concessões, inclusive de comunitárias, para os parlamentares. Isso passou a ser um dos grandes entraves para a regulamentação da comunicação no Brasil”, constata o radialista.

De qualquer forma, é consenso entre os representantes da sociedade civil que atuam no campo da comunicação que, embora o texto aprovado não tenha sido o ideal, a garantia dos canais básicos de utilização gratuita (comunitários, legislativos, universitários e educativo-culturais) no sistema de televisão a cabo brasileiro foi muito importante. “Marcou uma possibilidade, um potencial. E para mim, o grande legado são os canais legislativos, porque eles tinham recursos e conseguiram, progressivamente, montar seus canais no cabo, obter outorga e colocá-los no satélite. O acesso ainda é restrito, mas o sucesso desses canais é do ponto de vista de conteúdo, pelo fato de terem recursos e profissionais se dedicando a eles”, reflete o professor Murilo Ramos.

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[Cecília Bizerra, do Observatório do Direito à Comunicação]