Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Esses “jornais de oposição”…

A Folha de S.Paulo é “a vanguarda entre os veículos da imprensa empenhados em isolar o governo da opinião pública”. Num país em que a oposição não tem peito nem engenho para fazer oposição, as redações jornalísticas se encarregam de jogar as autoridades no descrédito. É assim, ao menos, que pensam os entusiastas do governo federal. Para eles, os jornais cumprem o papel que deveria ser dos partidos de oposição. Inconformados, os representantes do Palácio do Planalto contra-atacam, como fez o líder do partido do governo na Câmara dos Deputados, diante de mais uma reportagem crítica lida em plenário por algum adversário mal-agradecido. “Sinceramente, não encontramos aqui um pensamento inédito”, disse o parlamentar governista. Segundo ele, a imprensa apenas requenta fatos velhos para agredir quem trabalha sem descanso para melhorar a vida dos brasileiros. Os governantes, segundo essa visão, não passam de vítimas da maledicência, padecem sob o bombardeio de uma campanha articulada para desacreditá-los. O líder do partido do governo, no mesmo pronunciamento em que reclamou das notícias requentadas, foi severo e categórico em seu diagnóstico: os órgãos de imprensa “são o grande veículo dessa campanha articulada”.

Antes de qualquer interpretação apressada, vamos esclarecer. As declarações transcritas no parágrafo acima não reproduzem falas de integrantes do governo Dilma Rousseff. São anteriores. Também não trazem recortes dos inflamados discursos de entusiastas do primeiro ou do segundo governos de Luiz Inácio Lula da Silva. Nem de beneficiários das duas gestões de Fernando Henrique Cardoso, ou do breve mandato de Itamar Franco, ou de Collor, ou mesmo de José Sarney. Elas vêm de um período ainda mais antigo, vêm dos tempos da ditadura militar.

Quem disse que a Folha é “a vanguarda entre os veículos da imprensa empenhados em isolar o governo da opinião pública” foi João Baptista Figueiredo, o mesmo que chegou a ocupar a Presidência da República entre 1979 e 1985. Ele disse ou, mais exatamente, ele escreveu isso um pouco antes de ser empossado ditador, num relatório que entregou, em 1977, ao então ministro da Justiça, Armando Falcão. Naquela temporada, Figueiredo era o chefe do temido SNI, o Serviço Nacional de Informações, e enxergava no diário paulistano um criadouro de oposicionistas ou, nas palavras dele, “o esquema de infiltração mais bem montado da chamada grande imprensa”. Se as coisas não iam bem, a culpa deveria ser das redações. O episódio pode ser lido com mais detalhes no livro Folha (páginas 67 e 68), escrito pela jornalista Ana Estela de Sousa Pinto, que chegou em dezembro às livrarias com o selo da Publifolha.

Autoritarismo, intolerância

Quanto ao governista que reclamou das “campanhas articuladas” contra o governo, de nome Cantídio Sampaio, ele foi líder da Arena, a Aliança Renovadora Nacional, o partido que apoiava a ditadura militar. O arenista enunciou seu juízo sobre a imprensa também em 1977, ao protestar, na Câmara dos Deputados, contra a extensa cobertura que os jornais tinham dedicado ao lançamento da “Carta aos Brasileiros”, do professor e jurista Goffredo Telles Júnior, no dia 8 de agosto, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco.

Em sua “Carta”, hoje célebre, Goffredo conclamou os compatriotas a exigir com ele o fim do regime de exceção, numa guinada decisiva para a conquista da democracia no Brasil. O deputado governista, acuado, sem outros argumentos, pôs a culpa no noticiário, como relata Cássio Schubsky em Estado de direito já! – Os trinta anos da Carta aos Brasileiros (a partir da página 219), lançado em 2007 pela editora Lettera.doc.

Tudo isso é passado, claro. A ditadura acabou e, com ela, caiu em desuso a doutrina de segurança nacional que consistia em pôr toda a responsabilidade pelos males nacionais nos “inimigos infiltrados” dentro dos meios de comunicação. Espantosamente, porém, tudo isso ainda é presente. A velha doutrina se retirou, é fato, mas as teorias de que ela se serviu, como a da “notícia requentada”, ou a da “campanha articulada” para “isolar o governo da opinião pública”, continuam na ativa.

Toda semana, a gente dá de cara com tentativas de demonizar jornalistas para inocentar governantes, num furibundo fanatismo anti-imprensa. Presentemente, essas tentativas gostam de se declarar “de esquerda”, mas são apenas obscurantistas, como eram nos tempos da ditadura. São apenas autoritárias, intolerantes e mal-intencionadas. Nesse ponto, só o que mudou no Brasil foi a cor da gravata.

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[Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM]