Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Juízes afrontam a Constituição

Apesar de a Constituição garantir o direito à livre expressão e ter abolido a censura, casos de restrições à imprensa têm ocorrido com o aval de setores do Judiciário. Levantamento da Associação Nacional de Jornais (ANJ) mostra que, em 2012, onze decisões judiciais determinaram censura à imprensa. Outros 14 casos foram registrados em 2011; 16, em 2010; dez, em 2009; e seis, em 2008.

Atento à questão, o ex-ministro e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto criou, em novembro do ano passado, o Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que também presidia na ocasião. Apesar de não ter poderes para impedir a censura judicial, o grupo vai monitorar casos e discutir o assunto. Ainda não há data prevista para o início das atividades do fórum. Mas sabe-se que a ANJ terá assento. O diretor-executivo da ANJ, Ricardo Pedreira, considera absurdo um juiz determinar censura prévia à imprensa:

– A censura judicial acontece em flagrante desrespeito à Constituição. Infelizmente, é um fato que vem ocorrendo com uma frequência preocupante, em geral, por parte de juízes de primeira instância, indo contra a própria decisão do STF (que revogou a Lei de Imprensa em 2009). Naquele caso, ficou muito claro que não cabe absolutamente, da parte de quem quer que seja, censura prévia. A gente espera que os juízes de instâncias inferiores passem a entender a importância da decisão do Supremo. É um absurdo que isso aconteça porque a Constituição é muito clara – protesta Pedreira.

Para ele, iniciativas como o fórum contribuem para mudar a mentalidade dos juízes. Pedreira ressalta que o evento não terá o poder de mudar as decisões judiciais, mas que a discussão do tema pode esclarecer a magistratura:

– Qualquer iniciativa que vise divulgar os princípios da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão, nos termos da nossa Constituição, é muito bem-vinda. Não basta uma decisão do Supremo para as coisas acontecerem de forma efetiva. Um debate desse tema no Judiciário é bastante positivo. A gente não imagina que o CNJ vá determinar as sentenças dos juízes porque não há esse poder: os juízes têm sua autonomia. O que a gente espera é um debate de alto nível, em que se possa deixar clara essa questão dentro do Judiciário – afirma.

Para Ayres Britto, problema tende a diminuir

Ayres Britto acredita que esse tipo de decisão judicial se tornará raro com o tempo:

– Isso tende a diminuir consideravelmente, na medida em que a decisão do Supremo e a própria compreensão do texto constitucional se tornem mais conhecidas. Isso é um problema cultural. A liberdade de imprensa ainda incomoda e há setores do Poder Judiciário, felizmente minoritários, refratários à plenitude com que a Constituição aquinhoou a liberdade de imprensa para o mais desembaraçado trânsito das informações, das ideias e das expressões artística, científica, intelectual e comunicacional – explica.

O ex-presidente do STF também frisa que o fórum não poderá reprimir juízes:

– O fórum não é de monitoramento das decisões judiciais porque nenhum juiz pode ser patrulhado. É um fórum de acompanhamento de decisões para ver até que ponto elas são compatíveis com o espírito da decisão do STF. A intenção é fazer congressos, seminários e estimular a discussão do tema nas escolas de magistrados.

Ayres Britto aprovou a criação do fórum em 13 de novembro, na última semana antes de se aposentar como ministro do STF. Ele presidia a Corte e o CNJ. O fórum vai organizar um banco de dados que permitirá identificar casos em que jornalistas são punidos pela Justiça. Será presidido por um conselheiro do CNJ e integrado por dois conselheiros e um juiz auxiliar do CNJ, um representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), um representante da ANJ, um da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), um da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e dois magistrados, sendo um estadual e um federal.

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“A maior prejudicada é a própria sociedade”, diz presidente da Abert

Tatiana Farah

A ordem do juiz Raphael Baddini de Queiroz Campos, de Macaé – de mandar lacrar o livro “Cinquenta tons de cinza” por considerá-lo impróprio a menores de 18 anos -revela um problema que tem sido considerado um dos mais graves pelas entidades de imprensa e por especialistas em liberdade de expressão: a censura judicial. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Daniel Slaviero, o número de decisões de primeira instância que impõem a censura é crescente e altamente oneroso, não só para as empresas mas, sobretudo, para a sociedade.

– Consideramos essas decisões uma das maiores ameaças à liberdade de expressão hoje no país e temos percebido um aumento considerável da censura judicial. A maior prejudicada é a sociedade, que arca com o ônus de não ser informada. O prejuízo é irreparável- afirma Slaviero, para quem os prejuízos persistem mesmo quando essas decisões são reformadas pelas instâncias superiores do Judiciário.

Para o deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), que propôs a ação no STF que derrubou a Lei de Imprensa em 2009, o preceito de liberdade de expressão é “claríssimo” e foi assegurado pelo Supremo. No entanto, essas decisões judiciais persistem porque, segundo ele, “são muitas décadas de opressão, de cerceamento à liberdade; e as autoridades não querem a liberdade porque ela permite a fiscalização e o fim da impunidade”.

A liberdade de expressão é assegurada pelo parágrafo IX do Artigo 5º da Constituição. O parágrafo seguinte trata de outro direito: o da privacidade. Professor de Direito da FGV-Rio, Thiago Bottino afirma que a Constituição abre margem a diferentes interpretações e que há um conflito de direitos, o que favorece as decisões de magistrados de primeira instância contra a liberdade de expressão:

– Não existe uma decisão final do Supremo (Tribunal Federal) sobre a censura judicial. Ele deveria ser provocado a julgar essa questão. Nada na Constituição é assim claro. A letra da Constituição é um ponto de partida para se interpretar a lei e chegar ao Direito. Em algum momento os direitos entram em atrito. E é preciso decidir quando há uma colisão de direitos.

Especialista em casos de censura à imprensa, a advogada Taís Gasparian defende que o interesse público deve se sobrepor ao direito à privacidade “de um ou dois indivíduos”. Ela aponta ainda que, mesmo na Constituição, “fica claro que a liberdade de expressão não pode sofrer restrição, mas que há outros princípios”:

– Os magistrados decidem de acordo com sua interpretação. Não devem ser punidos, mas respeitados. Para isso (reformar as sentenças) existem os recursos judiciais, existe o duplo grau de jurisdição. Tenho certeza de que, no caso do livro de Macaé, a sentença será reformada.

Para o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Ivan Sartori, é preciso lembrar que um juiz de primeira instância “trabalha solitário e vai julgar solitária e subjetivamente”, diferentemente dos tribunais superiores, onde as decisões são colegiadas:

– A liberdade de imprensa é sagrada, mas existe uma linha tênue com a privacidade. Examinar essa linha entre os dois preceitos cabe ao juiz. Quando se trata de uma figura pública, existe mais elasticidade para aumentar o campo da liberdade. Mas a Constituição tem todos os direitos no mesmo nível.

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Magistrada, além de proibir publicação, ditou a jornal recomendações editoriais a serem seguidas

Em 11 de julho de 2012, o jornal eletrônico Século Diário sofreu, pela terceira vez, censura judicial. A juíza Ana Cláudia Rodrigues de Faria Soares, da 6ª Vara Cível de Vitória, proibiu o portal de manter a publicação de três notícias e dois editoriais sobre a atuação do promotor de Justiça Marcelo Barbosa de Castro Zenkner, publicadas entre maio de 2010 e março de 2012.

Na decisão, a juíza recomendou que o jornal seguisse recomendações editoriais ditadas por ela. O caso foi uma das onze censuras contabilizadas em 2012 pela Associação Nacional de Jornais (ANJ).

O relatório da entidade classifica a atitude da magistrada como “descabida ingerência na autonomia editorial de que constitucionalmente gozam os órgãos de imprensa, nos termos da Constituição e das sucessivas decisões do Supremo Tribunal Federal”.

A ANJ também registrou que, em outubro, por ordem judicial, o “Jornal do Povo”, de Cachoeira do Sul (RS), foi obrigado a retirar da internet reportagem sobre uma investigação do Ministério Público sobre compra de votos. Segundo o texto, uma coligação que disputava as eleições municipais era suspeita de fornecer ilegalmente 150 vales-combustível.

Em agosto, a juíza da 36ª Zona Eleitoral do Mato Grosso do Sul, Elisabeth Baisch, a pedido dos candidatos Reinaldo Azambuja e Alcides Bernal, proibiu a circulação do jornal “Correio do Estado” caso houvesse reportagem sobre pesquisa de intenção de voto para prefeito de Campo Grande.

Além dos casos de censura, a ANJ contabilizou em 2012 oito assassinatos de profissionais de imprensa, 24 agressões, seis ameaças, um atentado e uma prisão.

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[Carolina Brígido e Tatiana Farah, de O Globo]