Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O amigo de Timmendorferstrand

De médico e louco todos nós temos um pouco, diz o ditado. Médico ele já era, formado pela UERJ com opção pela Psiquiatria, profissão que não chegou a exercer e que abandonou para ser jornalista. Louco alguns pensavam que era, pelo jeito vibrante de ver e dizer as coisas. Na verdade, ele era um grande boa praça, um amigo, uma figuraça que conquistava as pessoas pela maneira simples, inteligente e direta de se comunicar com a vida.

Por onde passou usou seu jeito informal de ver os problemas que, de uma forma incomum, rápida e precisa, procurava resolvê-los. Era um descomplicador de coisas, inclusive da própria história iniciada há 68 anos na cidade de Timmendorferstrand província de Sleswig Holstein, Norte da Alemanha, um “balneário ipanemense”, como sempre comparou.

Ele nasceu Fritz Carl, nome herdado do pai alemão que não chegou a conhecer porque morreu em sua motocicleta com side car na explosão de uma bomba durante a guerra na Polônia, no dia 11 de setembro de 1944, quatro meses antes do seu nascimento (10 de janeiro de 1945). Sua mãe Elza, italiana, já tinha fugido para o Norte da Alemanha, como fizeram todas as mulheres grávidas naquela época de guerra. Certamente essa aventura foi a primeira de suas muitas estórias de vida!

Como o médium

Com dois anos de idade veio para a América Latina com a mãe, direto para Assunção, Paraguai. Ao Brasil, chegou com sete anos (1952) indo morar no bairro paulista de Higienópolis, mais precisamente à Rua São Vicente de Paula, 152. Mas não parou ali: veio para o Rio de Janeiro, foi para Lima (Peru), La Paz (Bolívia), Santiago (Chile) e Buenos Aires (Argentina), acompanhando a mãe e o padrasto italiano Otello, que na verdade o criou e se meteu a montar fábricas e hidroelétricas pelo continente latino-americano. Dessas andanças latinas pegou o hábito de entremear expressões em espanhol – um dos cinco idiomas que dominava – no meio de suas animadas conversas.

De volta ao Rio, foi morar na Tijuca, anos 1960-70, época em que o bairro ainda era aprazível. Foi na então bucólica Avenida Paulo de Frontin, repleta de flamboyants, que passeava com a namorada Liège, depois sua mulher por mais de 50 anos, e com a qual teve dois filhos, Ana e Pedro (de quem teve um casal de netos, Gabriela-Gabi e André).

A troca da Psiquiatria pelo jornalismo no ano de 1967-68 lhe rendeu um comentário que fez parte do seu folclore: “Se continuasse médico e fosse para uma cidadezinha do interior, abrisse um consultório, colocasse o diploma na parede e na porta o nomeDr. Fritz, ficaria rico e famoso. Iam me confundir com o médium”.

Luta heroica

Como jornalista, começou repórter estagiário do Correio da Manhã época em que viveu uma de suas ótimas histórias. Um dia entrou no elevador da revista Manchete, na Glória, junto com o dono Adolpho Bloch que, pensando falar com um dos seus jornalistas gritou: “O senhor está demitido por não usar gravata. Fritz com seu ar debochado retrucou: Ora, isso é impossível, eu não sou seu funcionário! E saiu gargalhando, à la Fritz…”

Ao naturalizar-se brasileiro, em 1970, de Fritz Carl, registrado na rebuscada certidão de nascimento alemã, passou a chamar-se Federico Carlo Utzeri. Mas ele já era mesmo o Fritz Utzeri, nome com o qual se firmou nas funções de repórter especial do Jornal do Brasil e de seu correspondente nas cidades de Nova York (1982-85) e Paris (1985-89).

De Paris voltou para o JB, mas foi logo convocado para ser o editor de Ciência e Tecnologia da TV Globo, onde mesmo depois de sair matou as saudades do telejornalismo ao participar da edição especial do programa Globo Repórter sobre o Caso Riocentro, assunto por ele apurado junto ao falecido repórter Heraldo Dias e que rendeu à equipe do JB o Prêmio Esso de Jornalismo. Com o companheiro ainda ajudou a desvendar o caso do desaparecimento e assassinato do deputado Rubens Paiva.

No período 1991-95 trabalhou como diretor de comunicação na multinacional de telecomunicações Alcatel, mas a vida na ponte aérea o deixava longe da família e dos seus brinquedinhos: as coleções de trens elétricos, de livros – era um leitor voraz – de antigos LPs e CDs, de carros em miniatura e os de verdade, como um MG 1966, original, que conservou por anos na garagem junto a um Karman-Ghia e a um Alfa Romeo Spider.

Trabalhou, também, como diretor de comunicação da Fundação Roberto Marinho e diretor de Redação do JB na fase semifinal da edição impressa. Escreveu os livros Aurora (ficção) e Dancing Brasil (crônicas), e editou o seu blog “Montbläat”. Nos últimos três anos lutou bravamente contra um raro linfoma (câncer nos gânglios) que nem um transplante de medula e remédios experimentais lhe deram a confortável sobrevida sem dor.

Nada impossível

Até nesse período muito difícil sua fome de informação aliada à memória privilegiada fazia com que esse germano-ítalo-carioca sempre tivesse um “causo” a contar. Era imbatível em cultura geral ou na do tipo inútil, do gênero “você sabia”?

Pudera: para quem nasceu em Timmendorferstrand nadalhe era impossível, inclusive “desaparecer” nesta manhã de segunda-feira (4/2) deixando uma profunda saudade em todos nós. Esse era o nosso amigo Fritz.

***

[Sergio Fleury é jornalista, amigo de Fritz Utzeri desde os tempos do velho Jornal do Brasil (1967)]