“Foi já a 4 de Julho do ano passado que o PÚBLICO noticiou que o Supremo Tribunal Administrativo (STA) determinara a perda de mandato do presidente da Câmara de Faro, José Macário Correia, por actos ilícitos praticados alguns anos antes, quando presidia à autarquia de Tavira. Os leitores recordar-se-ão de que mais recentemente (a 16 de Janeiro) foi noticiado que a condenação do autarca se tornara definitiva, dado que o Tribunal Constitucional (TC) se recusou a apreciar o recurso que apresentara contra a sentença do STA.
Pouco mais de duas semanas antes da divulgação desta última notícia, concretamente no último dia de 2012, recebi uma mensagem de Macário Correia, em que o ainda presidente da Câmara de Faro me dava conhecimento de uma exposição enviada na véspera à directora do jornal, acusando o PÚBLICO de se ter afastado ‘gravemente’ da ‘linha de rigor profissional de outros órgãos’ na peça que publicara no início de Julho, que seria ‘totalmente infundada’.
Queixando-se de que essa notícia não fora até então ‘desmentida’, nem lhe fora dada qualquer explicação, Macário Correia informava Bárbara Reis de que deixaria de prestar ‘qualquer informação’ a este jornal e iria tornar público ‘o atropelo à verdade e ao rigor e ética profissionais’ de que afirmava ter sido vítima, ‘salvo se houver uma digna e responsável atitude da Direcção do jornal’.
Sem deixar de estranhar que esta reclamação me chegasse cerca de meio ano após a publicação da notícia em causa, procurei apurar o que se passara. Deparei com um longo enredo jurídico, político e jornalístico, que se estende — e avanço já as conclusões a que cheguei — entre um ponto de partida marcado por um lapso informativo do PÚBLICO, que não foi devidamente corrigido em tempo útil, e um ponto de chegada que obriga a questionar o comportamento do autarca algarvio no plano da boa-fé em relação à imprensa e à opinião pública e da transparência de procedimentos devida a eleitores e munícipes.
Recuando à peça de 4 de Julho, assinada pelo jornalista José Augusto Moreira, pude verificar que não se tratava, de modo algum, de uma notícia ‘totalmente infundada’. Em acórdão datado de 20 de Junho, o STA tinha de facto ordenado a perda de mandato de Macário Correia, por condutas ‘violadoras dos instrumentos de gestão territorial e ordenamento urbanístico’ ao tempo em que presidia à Câmara de Tavira. A notícia não só era verdadeira nesse ponto essencial, como se mostrava especialmente relevante, tendo em conta que a acusação do Ministério Público acolhida pelo tribunal abrangia diversas violações das normas protectoras da Reserva Ecológica Nacional, em cuja defesa se distinguira precisamente Macário Correia, enquanto secretário de Estado do Ambiente do então primeiro-ministro Cavaco Silva.
Redigida em cima da hora de fecho do jornal, a notícia continha no entanto um erro factual importante. Ligava a sentença do STA a irregularidades relacionadas com o licenciamento do empreendimento ‘Palmeiras Resort’, destinado a acolher 800 vivendas, que tinha sido objecto de uma queixa apresentada pela associação ambientalista Quercus. O caso dera origem a notícias anteriores, em que se referia nomeadamente a absolvição da autarquia no tribunal de primeira instância, mas não estava ainda encerrado no plano judicial.
Na verdade, como resultava da leitura de notícias mais desenvolvidas publicadas nos dias seguintes, não fora esse o processo que dera origem à decisão do STA. As ilegalidades que o tribunal superior entendeu deverem conduzir à perda de mandato diziam respeito ao licenciamento de diversas obras dispersas pelo concelho de Tavira, que Macário Correia terá aprovado, entre 2005 e 2007, contra o parecer dos serviços técnicos do município e em violação dos planos de ordenamento em vigor.
Em sucessivas peças posteriores, ao longo do mês de Julho, o PÚBLICO referiu sempre correctamente os factos que estiveram na origem da condenação do autarca, não repetindo o erro da notícia inicial, que o jornalista atribui à circunstância de o caso ‘Palmeiras Resort’ ser até então o único conhecido como tendo dado origem a uma intervenção judicial contra Macário Correia, e ao facto de, na véspera da publicação, o autarca se ter escusado a ‘esclarecer os factos que estiveram na origem do processo’.
Embora não tenha sido repetida, a referência inicial ao caso ‘Palmeiras Resort’ representou um erro informativo que deveria ter sido imediata e explicitamente corrigido, por respeito aos leitores, o que não sucedeu. ‘Deveríamos ter feito um ‘Público Errou’ na altura’, reconhece a directora do jornal, enquanto o autor da notícia explica que o PÚBLICO deu prioridade nos dias seguintes a tentar ouvir o autarca sobre o litígio em torno do licenciamento do ‘Palmeiras Resort’, mas deparou sempre com a sua recusa em prestar esclarecimentos. Depois, o assunto ‘saiu da agenda’ e Macário Correia, que diz ter solicitado explicações, que não recebeu, através do jornalista do PÚBLICO que habitualmente o contacta no Algarve, Idálio Revez, retomou com este um ‘relacionamento normal’.
O que não saiu da ‘agenda’ foi o problema político resultante da decisão de perda de mandato, com Macário Correia a manter-se no cargo enquanto aguardava uma decisão sobre o recurso que interpusera junto do TC, alegando que sobre os actos concretos de licenciamento considerados ilícitos pelo STA decorriam ainda processos judiciais por concluir. A pressão do calendário político, com o PSD — que vê aproximar-se o período de anúncio das candidaturas autárquicas — a fazer depender a confirmação do seu apoio inicial a uma recandidatura do presidente da Câmara de Faro de uma decisão ‘atempada’ do TC, e este a recusar-se a avançar uma data concreta para anunciar um veredicto (notícia de Idálio Revez no PÚBLICO de 6 de Janeiro), terá feito crescer o nervosismo nos meios políticos locais.
Foi neste contexto que Macário Correia decidiu recuperar, no final do ano, a antiga alegação de ‘falsidade’ da notícia de Julho, o que levou o seu autor a prestar-lhe, então, as explicações solicitadas. Em consequência, foi desmentida pela primeira vez de forma clara nas páginas do jornal a informação errada que em 4 de Julho atribuíra essa decisão judicial ao caso ‘Palmeiras Resort’ (notícia de José Augusto Moreira na edição de 6 de Janeiro). Poderia dar-se o caso por encerrado, se o jornalista não tivesse entendido, e bem, obter informação actualizada sobre o tema ‘Palmeiras Resort’. A isto respondeu Macário Correia, conforme foi publicado, que os tribunais tinham concluído pela legalidade do licenciamento desse empreendimento turístico.
Sucede que, à data destas declarações, a verdade era outra, conforme o PÚBLICO noticiou no passado dia 26. Após uma decisão judicial de facto favorável ao autarca, tomada em Fevereiro pelo Tribunal Administrativo de Loulé, e tendo os ambientalistas recorrido da sentença, o Tribunal Central Administrativo Sul (TAC) obrigou à reabertura do processo na primeira instância, num acórdão em que é criticada em termos inusitadamente severos a decisão da juíza de Loulé e declarada a ‘nulidade absoluta e total’ da sentença que proferiu. Este acórdão é datado de 6 de Dezembro passado, não parecendo crível que o presidente da Câmara de Faro o pudesse desconhecer quando afirmou ao PÚBLICO ser esse um assunto já ‘arquivado’ pela justiça.
Entretanto, e como o PÚBLICO relatou com destaque a 16 de Janeiro passado, Macário Correia viu confirmada, através da posição tomada pelo TC, a perda do mandato em Faro. Tem agora à sua frente dias difíceis no plano jurídico — procurando adiar através dos últimos expedientes legais disponíveis o cumprimento da deliberação que o obriga a abandonar a autarquia — e no plano político, se ainda tiver razões para acreditar numa indigitação do PSD para a sua recandidatura.
Quanto ao processo, afinal reaberto, do mega-empreendimento em Tavira, que surpreendentemente decidiu recordar — ao insistir, seis meses depois, num desmentido do PÚBLICO sobre factos acerca dos quais o jornal informou correctamente os leitores, tendo no entanto errado ao associá-los, na notícia de 4 de Julho, às causas da sua condenação judicial —, dificilmente o interesse público deixará de ser lesado, seja pela construção de centenas de vivendas em espaço protegido, seja por indemnizações ou contrapartidas a que a autarquia se veja obrigada perante os promotores.
Tendo cometido, por falta de verificação em tempo útil, um erro informativo que só tardiamente reconheceu de forma clara, o PÚBLICO evitou no entanto, com as notícias publicadas nas últimas semanas, o erro maior de se deixar instrumentalizar por manobras políticas num tema de evidente interesse público. Embora Macário Correia diga agora não saber ‘se chegou a ser emitido o alvará’ para o ‘Palmeiras Resort’, o que se passa, segundo o jornalista que acompanhou o caso, é que os promotores ‘tiveram o cuidado de não o deixar caducar’ e estão ‘na posse de um licenciamento que lhes permite construir as tais 800 vivendas’ numa área especialmente sensível do ponto de vista ambiental. O que só vem reforçar a importância de uma investigação jornalística aprofundada acerca do controverso empreendimento.”