Se encontrar Bob Silvers para o almoço é uma perspectiva intimidadora, é porque ele representa não apenas uma instituição como também uma era – ou melhor, várias. Silvers tem o dom de testemunhar momentos históricos em primeira mão.
Nascido em 1929, Robert Benjamin Silvers foi criado durante a crise iniciada naquele ano, numa fazenda em Long Island onde seus pais criavam galinhas e caprinos. Aos 15 anos, frequentou a Universidade de Chicago com pracinhas recém-chegados da guerra; ao se formar, foi secretário de imprensa do governador de Connecticut Chester Bowles. Durante a Guerra da Coreia (1950 – 1953), foi arregimentado para Paris, onde trabalhou como redator de discursos e adido de imprensa para a Otan e, depois, na revista literária Paris Review.
Ao voltar a Nova York, em 1958, Silvers ingressou na Harper's Magazine, tornando-se, cinco anos mais tarde, o primeiro editor, ao lado de Barbara Epstein, de uma nova publicação literária. Naquela época o sindicato dos trabalhadores gráficos de Nova York estava em greve, os jornais tinham deixado de chegar às bancas havia vários meses e os anunciantes estavam ávidos por páginas. Idealizada num jantar pelo poeta Robert Lowell (1917- 1977) e sua mulher, a escritora Elizabeth Hardwick (1916- 2007), juntamente com o editor Jason Epstein e sua mulher Barbara – que coeditou a revista com Silvers até morrer, em 2006 –, a The New York Review of Books (NYRB), esperavam seus fundadores, revigoraria a vida intelectual dos Estados Unidos.
A revista quinzenal, uma das instituições literárias mais respeitadas do mundo, oferece comentários críticos de cultura e acontecimentos políticos há 50 anos, com colaboradores que vão de Joan Didion a VS Naipaul, de Vladimir Nabokov (1899- 1977) a Tony Judt (1948- 2010). Traz também matérias exclusivas, como a revelação de Mark Danner, em 2007, do conteúdo de um relatório secreto sobre o tratamento dado a 14 “detentos de alto valor” sob custódia da CIA.
A NYRB computa lucros desde seu terceiro ano de circulação e tem tiragem de 143 mil exemplares; com a ajuda de um blog, seu público está crescendo.
Aos 83 anos, Silvers dá a impressão de estar bem e em boa forma. Ele tem um charme de “gatão de terceira idade” – hoje realçado pelo terno alinhado e um vistoso lenço de pescoço listrado – e irradia agradável afabilidade. Seu restaurante preferido em Nova York, diz, é o Perry Street, que está fechado desde o furacão Sandy. Sua segunda opção é a EN, uma brasserie japonesa que ele descreve como “de acesso muito fácil” – fica no mesmo prédio da Hudson Street (uma antiga empresa gráfica) que a NYRB. A EN (“destino”, em japonês) revela ser um grande espaço, tipo “loft”, com paredes forradas de madeira de lei e mesas e cadeiras baixas, que dá aos comensais a sensação de serem muito pequenos.
Silvers se interessa por comida apenas “até certo ponto: para ser sincero, fico no escritório a maior parte do tempo, e as pessoas acabam me trazendo uma coisa ou outra…”, diz ele, rindo, como tende a fazer, ao responder a perguntas sobre si mesmo.
Universo da prosa
Como editora de uma revista literária, considero a ética no trabalho de Silvers inspiradora, embora difícil de imitar. Ele fica no escritório sete dias por semana, muitas vezes até a meia-noite, onde mantém uma cama no armário. Edita pessoalmente os artigos da NYRB. Os colaboradores falam de seus longos e educados memorandos, que revelam conhecimento enciclopédico mesmo dos assuntos mais obscuros, bem como um desprezo pelo expediente regular de trabalho. Muitos contam histórias sobre ter recebido perguntas de “Bob” no meio da noite ou à mesa do almoço de Natal.
Daniel Mendelsohn, um dos críticos que colaboram com a NYRB, me contou que Silvers lhe ligou no dia 31 de dezembro (também aniversário de Silvers) para discutir algumas ideias. Quando menciono isso a Silvers, ele faz uma pausa para recordar a ocasião. “Suponho que eu estava no escritório”, admite. “Mas, devo dizer, estava retornando o telefonema dele.”
“Adoraria um pouco de água de Nova York”, diz ele à garçonete, em seu sotaque antiquado com um toque ligeiramente britânico, e ri de novo. Ele diz que lê todas as cartas dos leitores à NYRB – para ter uma noção de como a revista está sendo avaliada. “Quando temos artigos sobre o Oriente Médio, independentemente do que dissermos, recebemos sempre cartas raivosas.” Sorri. “Nunca dá para acertar.”
A delicadeza de Silvers é mais do que polidez; é parte do papel do editor, diz, não se deixar dominar pela amizade com os autores, e sim permitir que os críticos manifestem seus autênticos pontos de vista. A necessidade de distanciamento é decisiva na NYRB, conhecida por publicar trabalhos de um grupo relativamente pequeno de críticos regulares, que muitas vezes dissecam obras uns dos outros.
O primeiro número traz vários casos de resenhas cruzadas: Dwight Macdonald (1906- 1982) escreve sobre Arthur Schlesinger (1917- 2007) e tem seu próprio livro examinado por Barbara Probst Solomon; os trabalhos de W.H. Auden (1907-1973) como crítico são analisados por John Berryman (1914-1972), enquanto Auden entra com um comentário sobre a poesia de David Jones (1895-1974). Silvers não dá importância a essas “sobreposições”, mas diz gostar da ideia de uma elite intelectual.
Silvers cita resenha de Naked Lunch, de William Burroughs (1914- 1997), elaborada por Mary McCarthy e publicada no primeiro número da NYRB, na qual ela analisa o efeito da dependência de drogas sobre a vida sexual do protagonista (e sobre a prosa de Burroughs), descrevendo-a como “uma resenha muito original”.
Menciono recente artigo de Zadie Smith, intitulado “Joy” (Alegria), e ele solta exclamação de encantamento. “Zadie Smith tem uma visão muito original de coisas um tanto comuns”, diz Silvers. Para ele, os editores devem ser impulsionados pela admiração pelos escritores de seu catálogo.
Chega um garçom e Silvers recomenda o bacalhau. Ouvi dizer que ele é vegetariano, mas, quando lhe transmito a informação, ele se limita a dizer que ficou impressionado com os ensaios do filósofo australiano Peter Singer, que escreveu sobre direitos dos animais. “A gente tem de fazer o que pode”, diz Silvers, e pede “shira ae”, prato de couve-de-bruxelas e tofu, com arroz e sopa de missô.
Alguns dias antes do nosso encontro, Silvers tinha me mandado o livro The Decline of Book Reviewing, de Elizabeth Hardwick, publicado pela primeira vez pela Harper's em 1959. Trata-se de uma acusação espirituosa a um tipo de “resenhinha leve” que faz as vezes de um “oculto argumento dissuasivo, ao negar suavemente, delicadamente, respeitosamente qualquer vivo interesse que possa haver em livros ou em questões literárias de modo geral”.
O ensaio, diz Silvers, foi uma inspiração para a NYRB, que, em seu primeiro editorial, anunciou que não abordaria livros “banais em suas intenções ou venais em seus efeitos, a não ser ocasionalmente, a fim de reduzir uma reputação temporariamente inflada”.
Pergunto a Silvers se ele acha que a crítica séria sobreviverá à transição do jornalismo impresso para o jornalismo on-line. “Ah, é simplesmente impensável!”, diz ele, sobre um futuro sem longas críticas. Os críticos literários têm uma missão diferente da dos escritores, argumenta ele, ao serem obrigados, sobretudo, a serem “interessantes” – afirma, citando Hardwick – até sobre os assuntos mais enfadonhos.
As resenhas dos jornais, diz, caem na armadilha de tentar ser abrangentes. Isso significa que não se consegue bons resenhistas porque “é muito difícil convencer escritores muito bons a escreverem sobre livros, digamos, medíocres” – embora, se apressa em dizer, ele seja admirador da seção de livros do Financial Times.
A NYRB tem um blog de sucesso desde 2010, mas Silvers acha que muitas novas mídias ainda não encontraram sua “função crítica”. “Pense no modelo do Twitter”, diz, ao descrever os tuítes como às vezes “adequados e pertinentes”, mas muitas vezes como “não mais do que brincadeiras de improviso”. O desafio é encontrar uma maneira de avaliar essas coisas, diz, “da mesma forma pela qual lançamos um ponto de vista crítico sobre outras formas de prosa”.
Ele faz uma pausa e olha pela janela. “Esse é um enorme… universo da prosa”, diz, nostalgicamente, “que está simplesmente se esvaindo pela consciência do tempo sem qualquer crítica sistemática ou criteriosa”.
Desenhos de Levine
O garçom põe na minha frente uma bandeja cheia de tigelinhas – de arroz, salada, tofu, picles, cogumelo e peixe sobre uma folha. Silvers, que tem apenas três tigelinhas à sua frente, ri jovialmente da minha porção, e diz ter recebido o suficiente.
Pergunto se ele acha que a desconfiança com que algumas pessoas encaram os críticos implacáveis e as críticas negativas pode ser uma reação à crueldade dos comentários anônimos on-line, e ele concorda. “Bem, é preciso sempre ser justo”, diz ele, manipulando com habilidade seu hashi. “Pedimos aos nossos leitores que esclareçam suas discordâncias e deem exemplos.”
Editar, diz Silvers, é um instinto. É preciso escolher cuidadosamente os críticos, depois de ler toda a sua obra, em vez de deixar-se influenciar por “reputações que passaram, digamos, por superpromoção”, e prever suas necessidades, enviando-lhes livros e artigos de jornal.
“Você vê alguma coisa num artigo que você não consegue entender, e tem de dizer: 'Será que isto pode ficar mais claro?' As questões deixadas de lado você tem de levantar. Se você vir metáforas mortas ou surradas, tem de se livrar delas.” Ele explica como várias palavras estão desgastadas ou são mal-empregadas: “compelling” (irresistível), “key” (chave, fundamental), “massive” (enorme), “context” (contexto). “Sobre a mesa!”, grita. A metafórica mesa, diz, está sobrecarregada com “questões”, “expressões”, “tratados”, “guerras”. Quando pergunto se ele tem um guru (“role model”), ele faz uma expressão de desagrado. “Aliás, essa é outra palavra”, diz, e me fala sobre Talcott Parsons (1902- 1979), o sociólogo americano que inventou o termo para um uso específico. Silver diz que admirava o crítico Philip Rahv (1908- 1973), que editou a “Partisan Review” e escrevia para a NYRB, e Edmund Wilson (1895- 1972), que escreveu no segundo número. Vaclav Havel (1936- 2011), o dramaturgo e dissidente que veio a se tornar o primeiro presidente da República Tcheca e escreveu para a NYRB, era outra pessoa que ele admirava.
Silvers passou à sua sopa, enquanto me sinto como se estivesse brincando com a comida.
Ouvi rumores de que os “Documentos do Pentágono” – que mostraram que o presidente Lyndon B. Johnson (1908-1973) tinha mentido sobre seus motivos para travar a Guerra do Vietnã (1955-1975) – foram guardados no escritório da NYRB. “Ah, sim”, diz, como se pudessem ainda estar em alguma gaveta. Daniel Ellsberg, analista militar e colaborador da NYRB, tinha perguntado se poderia “guardar uma mala no armário por pouco tempo”, diz, “e em seguida veio um homem de um escritório de advocacia e levou-a embora”.
Sugiro que tomemos chá. “Oolong, por favor”, diz ao garçom. Pergunto se ele alguma vez tira folga, e ele conta que às vezes viaja com Grace, Condessa de Dudley, sua companheira desde 1975 e com quem mora num apartamento na Upper East Side [um dos bairros mais chiques de Nova York]. “Ela tem um tipo de fineza de espírito e de inteligência e intelecto tão rigoroso que é grande inspiração para meu trabalho e minha vida.”
Silvers não gosta de falar sobre o que pode acontecer com a NYRB quando ele deixar o cargo, limitando-se a dizer que existem “três ou quatro editores brilhantes que poderão administrar a revista, e pessoas que farão uma edição empolgante. Eles fariam talvez uma coisa, em certa medida, diferente”.
Fica mais à vontade em falar sobre sua vida antes da NYRB – como estudante da Universidade de Chicago, onde era amigo de um piloto de bombardeiro, e vivendo em Paris, onde morou num barco ancorado no Sena e uma vez ajudou a acomodar um grupo que fugia da Revolução Húngara. Embora insista em dizer que não é escritor, será que poderia estudar a possibilidade de escrever uma autobiografia? “Não é impossível. Mas não pensaria nisso, pois teria de encontrar a forma certa”, diz. “Não conseguiria contemplar isso agora; há tanta coisa por fazer.”
Ele parece, de repente, um pouco preocupado, por isso pago a conta. Pegamos nossos sobretudos e adentramos na tarde de janeiro [mês da entrevista] e depois estamos de novo num ambiente fechado, no hall vizinho. Subimos de elevador ao escritório, um grande espaço branco e bege, passando uma parede de desenhos de David Levine, cujas caricaturas ilustraram a NYRB por 40 anos, até sua morte, em 2009.
Ele vai até uma sala de estar vazia para me mostrar uma estante de livros que, diz, foi mantida exatamente como Barbara Epstein a usava. Continuamos, e passamos por outra salinha. “Este é Andy”, diz ele sobre um jovem com alguns manuscritos, e entramos no escritório principal, onde há uma mesa grande sobre um palanque em frente a três assistentes, todos digitando sem parar. O telefone está tocando, e ele vai até sua mesa. Agradeço-lhe pelos bons conselhos e o deixo para atender ao telefonema.
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[Emily Stokes, do Financial Times]