Uma semana depois de ter escrito sobre o suicídio do ator Walmor Chagas, na edição nº 529 do Jornal Pessoal, recebi o impacto direto de um fato que podia ser associado ao anterior. Meu amigo paulista José Eduardo de Faro Freire voltou de uma consulta médica e se matou com um tiro de revólver no peito.
Foi sua reação à má notícia de que tinha um tumor incurável no cérebro. Era o golpe mais duro numa sucessão de infortúnios de saúde. Aos 71 anos, Zé Eduardo pressentiu um destino cruel, que sempre rejeitara: tornar-se inválido nos momentos finais da sua vida.
O corpo já vinha dando sinais de esgotamento, fazendo-o recorrer a uma cadeira de rodas. O câncer tornava inútil o combate que ele travava por sua vida. Não valia mais a pena viver. Ela iria se tornar vegetativa, dependente de terceiros. Descaracterizaria completamente sua vítima.
Todos nós, seus amigos, tínhamos de José Eduardo de Faro Freire a imagem de um ser vital, cheio de energias, vivendo intensamente cada dia, entusiasmado pelo que fazia e inteiramente solidário ao que os outros faziam. Um centauro sob a armadura de um cético, iconoclasta, quase um anarquista. Um autêntico personagem, aquele tipo ideal de que nos fala a sociologia quando quer tratar de pessoas que impõem sua marca em todos os lugares pelos quais passaram.
Pessoa vital
Zéduardo foi meu chefe de reportagem no Diário de S. Paulo(quando o jornal ainda pertencia aos Diários e Emissoras Associados) entre 1969 e 1971. Um chefe vibrante, apaixonado. Daqueles que acompanham o repórter da saída à volta do serviço, olham sobre os ombros o que o repórter escreve, leem o texto, discutem o que foi escrito e dão sugestões posteriores à pauta, que saiu muitas vezes de sua inspiração ou foi por eles aperfeiçoada. Quantos chefes assim há atualmente na imprensa?
Dou só dois exemplos de muitos em que essa presença do Zé foi marcante. Saí da redação em busca de Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, vetado pelo regime militar. Vetado pelo regime, não pelo Zé. Percorri várias casas religiosas atrás do “arcebispo vermelho”. Fui bater no convento dos dominicanos, na rua Caiubi, em Perdizes, já quase três da tarde (e o Zé esperando na redação pelo resultado da longa jornada).
Fui até o grande portão de entrada, bati e, ao contrário das outras vezes em que lá estive, quase fui enxotado. Mas senti que a reação do porteiro era estranha. Ao voltar à discreta Rural Willys do jornal, lambuzada de tinta amarela e vermelha, vi uma inconfundível camionete Veraneio (a “perua” de SP) da Chevrolet. Deve ser a “dura”, a repressão, a Operação Bandeirantes (OBAN), pensei.
Como chefe da expedição, disse que ficássemos ali até esclarecer mais duas circunstâncias:o veículo estava na contramão e não tinha placa. Algum longo tempo de espera depois, o portão se abre e de lá sai um grupo de gente. São agentes da polícia, armados de metralhadora, e, no centro, frei Ivo. Pulo do carro e vou em cima do grupo. Alguns policiais levantam suas armas e mostro minha identificação.
Frei Ivo está magro. Apresso-me a perguntar se ele está bem, naquela abordagem inesperada em que temos chance de 100% de fazer uma pergunta idiota. E ele, olhando em torno daquela muralha de brutamontes, me responde com a pergunta devida: “O que é que você acha?”
Bom, me virei para os policiais, enquanto eles impunham uma caminhada acelerada pela rua de paralelepípedos em declive; me informaram que frei Ivo tinha ido buscar roupas. Segui forçando a conversa até que eles entraram na Veraneio e saíram em velocidade.
Voltei para minha própria “viatura” certo de que o fotógrafo tinha feito tudo. Era o grande furo: pela primeira vez via-se um dos frades dominicanos que, presos, levaram Marighella à armadilha montada pelo delegado Fleury e à morte, na alameda Água Branca, à noite (fui o primeiro repórter a chegar lá, mas essa é outra história).
Retornei para a redação, faminto e frustrado. O fotógrafo (cujo nome omito caridosamente aqui) não conseguira se desprender do banco em que estava sentado, pálido e em estado de choque. Quando vi a cena contei com o endosso mudo do motorista, que parecia enojado. Mas Zé me recebeu elétrico e disse para mandar bala.
Mesmo sem a necessária foto documental, a matéria sairia ainda na edição final do Diário de Notícias, um dos vespertinos do doutor Assis Chateaubriand naquele fim de império. Saímos juntos da redação para beber e comentar aquele episódio, bem ilustrativo daqueles tempos. Zé foi um personagem marcante desses tempos, difíceis, aos quais caberiam os versos de Bertolt Brecht sobre os tempos de guerra do nazismo.
Seus gestos e palavras me acompanharam para sempre e para sempre ficarão na minha memória, enquanto respeito eu puder ter por profissionais como ele e afeto pelas pessoas vitais, daquelas que outro poeta considerou indispensáveis, como o Zé.
Gesto final
Outro episódio foi ainda mais marcante. Depois de deixar o exército israelense, em meio a divergências com Moshe Dayan, Itzhak Rabin, que fora chefe do Estado Maior de Israel, passou por São Paulo a caminho de Nova York, onde assumiria o posto (promoção para baixo) de embaixador do seu país. Zé me mandou participar da entrevista coletiva com o general.
Foi num daqueles enormes e vistosos apartamentos em Higienópolis, de propriedade de uma personalidade judia. Eu era o único estranho à comunidade. Até o repórter do Jornal do Brasil, o sempre alegre e amigo Bernardo Lerer, era judeu. Por isso, fui o único a não levantar bola para o entrevistado cortar.
Ele ficou irritado já com minha primeira pergunta, sobre os atritos no comando militar. Quando quis saber sobre o fornecimento de água pesada para a fabricação de bombas nucleares, ele deu um poderoso murro na mesa e se levantou, encerrando literalmente manu militaria conversa. Certamente eu era agente provocador árabe infiltrado naquele convescote. Vendo que o clima ia ficar instável, sujeito a chuvas e trovoadas, puxei o fotógrafo, chamei o elevador (que dava entrada direta ao apartamento). Todos me olharam, ainda indecisos.
Quando a porta do elevador se abriu, cumprimentei os presentes e torci para que a porta se fechasse antes de ser alcançada pelos agentes da Polícia Federal. Rompendo a indecisão, partiram na minha direção. Felizmente, já era tarde. Saímos correndo, entramos no nada discreto carro dos Associados e às pressas deixamos o local.
A cada lauda que eu tirava da máquina, Zé se lançava febril à leitura. Acho que a matéria rendeu umas quatro páginas, que meu chefe leu num zás. Depois mandou para a edição e mais uma vez fomos comemorar no bar do Redondo, um dos redutos dos jornalistas no centro da cidade.
Essa capacidade de se interessar por tudo de humano, do fato mais grandioso ao detalhe quase imperceptível, era outra característica da personalidade de José Eduardo. Ele era múltiplo. Por abranger tantas coisas, parecia contraditório ou paradoxal. O que unia as várias peças da sua engrenagem era esse elemento vivo de curiosidade, atenção e solidariedade pela vida. Assim, fumante inveterado, era também o comandante do barco no qual navegava pelo litoral de São Paulo, desatracando da paradisíaca (ainda?) Ubatuba. Parecia um marinheiro. Quem o visse numa redação jamais o imaginaria, velho lobo do mar, enfrentando as ondas.
Zé enfrentou muita coisa. A invalidez lhe tiraria essa capacidade. Ele preferiu antecipar o fim doloroso e fatal. Nós, seus amigos, lamentamos muito. Mas, como em relação ao ato derradeiro de Walmir Chagas, entendemos. Sabemos muito bem o quanto Zé sofreu para dar aquele tiro.
Ao gesto final, oponho o trecho de uma conversa por e-mail que tivemos mais de 10 anos atrás. Mesmo pequeno, dá uma ideia de quem foi o jornalista José Eduardo de Faro Freire, registro minúsculo e insosso na crônica jornalística destes nossos dias de sensaboria.
Vida difícil
Neste trecho tratávamos do maravilhoso arquivo do jornal, que depois passou para a Folha de S. Paulo e agora, felizmente, chegou ao Arquivo Público do Estado. Era lá que atravessávamos de sexta para domingo, preparando matérias para o suplemento Jornal de Domingo, do Diário de S. Paulo. De madrugada Luís Monteiro, que era diretor do jornal, costumava aparecer com enormes pizzas, de gosto inesquecível, que devorávamos. Saíamos pela manhã, quando a primeira turma de sábado já estava na redação.
Nosso minidiálogo, que sobreviveu à fúria dos vírus:
Zé – Com relação aos arquivos dos Diários, vou tentar verificar na Abril. O arquivo me lembra sempre Dona Alzira. Não sei se você chegou a conhecê-la. Foi quem montou o arquivo. Velha (cerca de 70), magríssima, saias longas e esvoaçantes, unhas longa e pintadas de vermelho intenso. Muito culta, havia sido muito amiga de intelectuais das décadas de 30 a 60. Tinha uma coleção de quadros das namoradas dos grandes pintores. Eles as pintavam e quando rompiam davam os quadros para a amiga. Quando gostava um jovem repórter era uma mestra incalculável. Achava a redação muito ruim intelectualmente. Então amadrinhava os jovens em que acreditava. Dava dicas, contava histórias, acompanhava tudo. E cada vez que pegava um erro dava um puta coque na cabeça da gente. Carajo, como eram doloridos. Mas como me ensinou e como era boa amiga. Uma vez, chegou uma namorada minha, do Rio, à minha procura. Eu estava viajando e era casado. Ela não teve dúvidas, hospedou a menina até eu voltar.
Eu – Como é bom lembrar. Sabe que eu tinha apagado a existência da dona Alzira da minha memória? Lembro-me dela e de um senhor negro, muito distinto. Mas, sobretudo, de uma moça magra, que, vista de certo ângulo, até parecia bonita. Estava sempre ao lado da dona Alzira. Era muito tímida. Com as minhas muitas subidas ao arquivo, que era pouco frequentado, acabamos nos tornando amigos. Ela tinha certa queda para o meu lado. Mas eu também era tímido. E também apressado. A vida era difícil. Faculdade de manhã, o trabalho das 2 da tarde até oito, nove horas da noite. Houve um tempo em que eu emendava para a Rádio Eldorado, onde preparava dois jornais (22,30 e 6,30). Não pude dedicar mais tempo. Nem a elas, nem ao arquivo propriamente dito. Mas era muito rico. Valia a pena sondar por ele.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]