Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O impacto negativo de uma paixão

Em 29/1, o semanário eletrônico Nature Communications, irmão-caçula da centenária revista científica Nature, publicou um artigo, intitulado (em tradução livre) “O impacto dos gatos domésticos criados soltos sobre a vida selvagem dos Estados Unidos” , de Scott R. Loss, Tom Will e Peter P. Marra (LOSS et al. 2013). Os três pesquisadores estadunidenses lidam com o estudo e a conservação de aves e já haviam publicado antes um artigo de revisão tratando do impacto de atividades humanas sobre esses animais (LOSS et al. 2012). De acordo com eles, nenhum outro fator antropogênico (e.g., colisões com prédios, janelas, veículos, torres de transmissão ou turbinas eólicas; envenenamento acidental ou deliberado; poluição) tem tido tanto impacto negativo sobre as populações de aves como as mortes causadas por gatos domésticos. O assunto não é propriamente uma novidade (e.g., CHURCHER & LAWTON 1987), mas dada a abrangência da análise e a magnitude dos números que Loss e seus colegas divulgaram – bilhões de mortes por anos –, a notícia ganhou destaque…

Ainda no dia 29, por exemplo, o jornal The New York Times publicou uma matéria sobre o assunto – ver “That cuddly kitty is deadlier than you think” , de Natalie Angier. A BBC também registrou a notícia – ver “Cats killing billions of animals in the US” , de Rebecca Morelle.

A BBC Brasil logo publicou uma versão em português – ver “Gatos matam bilhões de animais e ameaçam vida selvagem dos EUA”. A versão da BBC Brasil, por sua vez, foi reproduzida (o título inclusive) pelo jornalO Estado de S. Paulo e pelo portal G1 – ver aquie aqui, respectivamente. O jornal O Globo publicou matéria própria – ver “Gatos matam até 3,7 bilhões de pássaros por ano nos EUA”, de Renato Grandelle.

A família dos felinos

A Folha de S.Paulo não tratou do assunto logo de imediato. No dia 17/2, porém, o jornal publicou a matéria “Donos de gatos não têm ideia do dano que eles causam”, de Débora Mismetti. Trata-se, a rigor, de uma pequena entrevista com um empresário neozelandês que está promovendo uma campanha, intitulada “Cats to go”, cujo objetivo é alertar seus conterrâneos do perigo que os gatos domésticos representam para a vida selvagem daquele país. A Nova Zelândia, assim como a vizinha Austrália, recebeu inúmeras espécies exóticas levadas pelos colonizadores europeus e isso teve (e ainda tem) um impacto bastante negativo sobre a biota nativa daquele país.

Se a ideia dos editores da Folha era “repercutir” o assunto, acho que o resultado ficou bem abaixo do esperado. Faltou sal na entrevista, como também faltou contexto. A campanha iniciada pelo empresário neozelandês não foi motivada pelos resultados da pesquisa conduzida por Loss e seus colegas (LOSS et al. 2013), embora o jornal tenha ilustrado a matéria com dados divulgados no referido artigo da Nature Communications. Também não custava informar que, em resposta à campanha “Cats to go” (algo como “Gatos, sumam”), alguns neozelandeses apaixonados organizaram uma espécie de contracampanha, intitulada “Cats to stay” (“Gatos, fiquem”) – ver aqui. De resto, acho que a matéria ganharia muito em consistência se o jornal também tivesse conversado com algum estudioso do assunto, e não apenas com um sujeito fanfarrão.

O gato doméstico é um felino ou felídeo – i.e., um mamífero carnívoro da família Felidae. Existem em todo o mundo umas 5,4 mil espécies viventes de mamíferos (classe Mammalia), das quais cerca de 290 integram a ordem Carnivora. Os integrantes dessa ordem se caracterizam, entre outras coisas, pela presença de um par de dentes cortantes (os chamados “dentes carniceiros”) em cada lado da boca. Apesar do nome, muitos mamíferos carnívoros exploram dietas onívoras ou mesmo vegetarianas, como é o caso do panda-gigante e do panda-vermelho (para detalhes, ver EWER 1973; para comentários em português, ver POUGH et al. 2003).

As grandes linhagens

O ramo ancestral que daria origem a todos os carnívoros viventes dividiu-se, logo no início de sua história evolutiva, há uns 50 milhões de anos, em duas grandes linhagens: os feliformes (latim, felis, gato + -formis, forma ou aspecto de, semelhante a) e os caniformes (latim, canis, cão + -formis). Essas duas linhagens são habitualmente tratadas como subordens (para detalhes, ver FLYNN et al. 2005, WILSON & REEDER 2005, 2011, EIZIRIK et al. 2010; para comentários em português, ver ORR 1986, POUGH et al. 2003), a saber:

Subordem Feliformia. Abriga 123 espécies, arranjadas em 56 gêneros e sete famílias: 1) Nandiniidae (1 espécie; a nandínia); 2) Felidae (40 espécies; felinos); 3) Prionodontidae (2 espécies; linsangos); 4) Viverridae (34 espécies; civetas, ginetas e afins); 5) Hyaenidae (4 espécies; hienas); 6) Herpestidae (34 espécies; mangustos, suricatos e afins); e 7) Eupleridae (8 espécies; fossa e afins).

Subordem Caniformia. Abriga 161 espécies, arranjadas em 72 gêneros e nove famílias: 1) Canidae (35 espécies; cães, lobos, raposas e afins); 2) Ursidae (8 espécies; ursos, incluindo o panda-gigante); 3) Otariidae (16 espécies; focas orelhudas e leões-marinhos); 4) Odobenidae (1 espécie; a morsa); 5) Phocidae (19 espécies; focas peludas ou sem orelhas e elefantes-marinhos); 6) Ailuridae (1 espécie; o panda-vermelho); 7) Procyonidae (12 espécies; quatis, guaxinins e afins); 8) Mephitidae (12 espécies; doninhas fedorentas e cangambás); e 9) Mustelidae (57 espécies; doninhas, furões, a irara, lontras, texugos e afins).

Grandes e pequenos gatos

É costume dividir informalmente os felinos em dois grupos, os “grandes gatos” e os “pequenos gatos”. Os primeiros correspondem às quatro espécies do gênero Panthera (o tigre, o leão, a onça-pintada e o leopardo), além de outras quatro de tamanho intermediário: a onça-parda (Puma concolor), o guepardo (Acinonyx), o leopardo-da-neve (Uncia) e o leopardo-nebuloso (Neofelis). As demais espécies de felinos, incluindo o gato doméstico, são coletivamente referidas como “pequenos gatos”.

A fauna brasileira abriga oito espécies nativas de felinos: seis pequenos e dois grandes (para detalhes, ver GENARO et al. 2001). Essas oito espécies estão distribuídas em três gêneros:

Leopardus– cinco espécies de pequenos gatos: o gato-do-mato-grande (L. [= Oncifelis]geoffroyi), o gato-do-mato-pequeno (L. tigrinus), o gato-maracajá (L. wiedii), o gato-palheiro (L. [= Oncifelis]colocolo) e a jaguatirica (L. pardalis);

Panthera– a onça-pintada (P. onca), também conhecida como jaguar, jaguaretê, onça-preta ou pantera; e

Puma– um grande gato, a onça-parda (P. concolor), também conhecida como suçuarana, e um pequeno gato, o gato-mourisco (P. [= Herpailurus]yagouaroundi).

O gato doméstico, como se vê, não é um animal nativo do país. Trata-se, a rigor, de uma espécie exótica (não nativa). Para nós, brasileiros, o leão, o tigre e o guepardo também são animais exóticos.

Todos os felinos, sejam eles grandes ou pequenos, se alimentam exclusivamente de “carne” (i.e., músculos e órgãos internos do corpo de outros animais) e, por isso mesmo, são chamados de hipercarnívoros. (Entre os vertebrados, as serpentes, os gaviões e as corujas também são exemplos de hipercarnívoros.)

A domesticação: onde e quando

Além do gato doméstico (Felis catus), hoje amplamente disseminado em todo o mundo, o gênero Felis abriga mais cinco ou seis espécies viventes, encontradas principalmente na África e na Ásia (ver EWER 1973, WILSON & REEDER 2005). Uma dessas espécies é o chamado gato-selvagem. Já foi costume distinguir entre o gato-selvagem europeu (F. silvestris) e o africano (F. libyca). Tal distinção, no entanto, caiu em desuso e os gatos-selvagens passaram a ser abrigados em uma única espécie (F. silvestris), esta subdividida em algumas subespécies. Análises recentes indicam que o gato doméstico descente de uma linhagem da subespécie F. s. libyca (ver DRISCOLL et al. 2009).

Até poucos anos atrás, era costume atribuir a domesticação do gato aos egípcios, um processo que teria ocorrido há cerca de 4 mil anos. Achados (arqueológicos e moleculares) mais recentes, no entanto, mudaram o local e a época dessa história. Acredita-se hoje que o gato tenha sido domesticado (talvez mais de uma vez) no Oriente Médio, há cerca de 10 mil anos (ver DRISCOLL et al. 2009). Com a domesticação, veio a disseminação – e o gato ganhou o mundo…

Por volta do ano 500 a.C., já havia gatos domésticos na Grécia; no século 3 da era moderna, eles já haviam alcançado a Grã-Bretanha. Séculos mais tarde, os colonizadores europeus se incumbiram de espalhar o animal pelos demais continentes. Não havia gatos na América do Norte, quando os espanhóis lá chegaram, em 1492; assim como não havia gatos em território brasileiro, quando os portugueses aqui chegaram, em 1500. A Austrália, a Nova Zelândia e diversas ilhas próximas foram alguns dos últimos lugares a serem invadidos pelos gatos. Na grande maioria dos casos, os felinos foram levados deliberadamente pelos colonizadores europeus, pois se tornou um costume mantê-los a bordo dos navios na expectativa de que pudessem dar conta dos roedores que proliferavam em meio aos alimentos estocados.

Gatos criados soltos

A introdução (deliberada ou não) de espécies exóticas tende a empobrecer as comunidades nativas e, nesse sentido, trata-se de uma das maiores ameaças à manutenção da biodiversidade em escala planetária. O rol de animais, plantas e micro-organismos exóticos já disseminados pelo mundo é impressionante, ultrapassando a marca de 100 mil espécies (ver PIMENTEL et al. 2001). Claro que, de um ponto de vista antropocêntrico, muitas delas são benéficas, como é o caso do milho, do trigo, da galinha doméstica e do gado bovino. Muitas outras, contudo, são extremamente danosas, não apenas para as comunidades biológicas nativas, mas também para as populações humanas.

Esses casos envolvem algumas espécies que o grande público já aprendeu a “odiar”, como o caramujo-africano (Achatina fulica), originário do leste da África, e o mosquito-da-dengue (Stegomyia aegypti; ver, neste Observatório, o artigo “Qual é o nome do mosquito?” ), originário da Ásia. Mas a lista também abriga diversos personagens danosos insuspeitos, como o pinho-americano (Pinus elliottii), originário da América do Norte, e o personagem central deste artigo, o gato doméstico. O gato é um animal exótico em todos os lugares onde vive. Trata-se, além disso, de uma espécie invasora – i.e., um organismo que prospera de modo acelerado nos hábitats que coloniza. O oportunismo é uma das razões do sucesso desses felinos e ajuda a explicar como eles se tornaram uma espécie tão numerosa e disseminada, a ponto de se converter em uma praga (e.g., JARVIS 1990, McLEOD 2004).

Ao longo do século 20, com a urbanização da humanidade, um número cada vez maior de gatos passou a viver dentro de casas e apartamentos. Nessas circunstâncias, os tutores precisam de vez em quando levá-los para um passeio. De fato, essa é uma atividade relativamente comum entre os tutores de cães, embora não tanto entre os tutores de gatos. Estes últimos tendem a compensar a falta de passeios deixando que os animais saiam de casa e entrem livremente. O grau de confinamento dos gatos criados por brasileiros é, ao que parece, bem inferior ao dos cães (ver SILVA et al. 2010).

Para os propósitos deste artigo, podemos classificar os gatos domésticos em três categorias básicas: 1) confinados – são aqueles criados dentro de casa, sem livre-acesso ao exterior; 2) delinquentes – são aqueles cujos tutores permitem que eles saiam e entrem livremente; e 3) ferais – são aqueles que vivem na rua, com pouco ou nenhum contato com seres humanos. Os animais das categorias 1 e 2 formam o conjunto dos “gatos com tutores”, em contraposição aos sem tutores (3); os animais das categorias 2 e 3, por sua vez, formam o conjunto do “gatos criados soltos”, em contraposição aos que nunca saem sozinhos (1).

A população mundial de gatos

Quantos gatos existem em todo o mundo? Não é fácil responder a esta pergunta, mas não é nada impossível. Em meados da década de 1980, a população mundial foi estimada em 400 milhões de indivíduos (LEGAY 1986); a estimativa atual gira em torno de 600 milhões (DRISCOLL et al. 2009). Só nos Estados Unidos vivem mais de 100 milhões de gatos. No Brasil, com base em resultados parciais (e.g., DIAS et al. 2004, ALVES et al. 2005), é possível estimar que existam entre 6 e 12 milhões de gatos com tutores. O número de gatos ferais, contudo, é desconhecido, embora talvez não seja exagero afirmar que eles representem cerca de 50% de todo o contingente.

A maior parte da população mundial de gatos parece estar vivendo nas proximidades de assentamentos humanos (cidades, vilas, fazendas etc.), ainda que nem todos esses animais tenham tutores. Nos Estados Unidos, por exemplo, estima-se que 80-90 milhões de gatos tenham tutores, enquanto outros 30-80 milhões não têm (LOSS et al. 2013). A maioria dos gatos com tutores vive em cidades, embora nem sempre a maior parte da população de gatos de um país viva em áreas urbanas e tenha um tutor. Um caso extremo parece ser a Austrália: de uma população total estimada em 21 milhões de indivíduos, 3 milhões tinham tutores e viviam principalmente em cidades, enquanto 18 milhões não tinham tutores e vagavam pelo país, inclusive pelas regiões mais áridas do interior (McLEOD 2004).

Apesar dessas diferenças na distribuição e abundância das populações de gatos de cada país, uma coisa parece certa: o contingente mundial continua crescendo.

Gatos que ajudam ratos

Quem convive com gatos nem sempre está ciente das interações que eles mantêm com outros animais. Não são poucos os tutores que criam esses felinos acreditando que eles podem afugentar ou mesmo controlar visitantes indesejáveis, como os ratos domésticos. É fato que os gatos podem abater várias espécies de roedores (mamíferos da ordem Rodentia), principalmente os de pequeno porte, mas será que isso indica que eles são capazes de exercer algum tipo de controle populacional, sobretudo no caso das espécies mais comuns de ratos domésticos?

De acordo com o Ministério da Saúde (ver FUNASA 2002), três das espécies mais comuns de roedores encontrados em cidades brasileiras são a ratazana (Rattus norvegicus), o rato-de-telhado (R. rattus) e o camundongo (Mus musculus). Essas três espécies são originárias da Ásia e, a exemplo do gato, se converteram em invasores muito bem-sucedidos. Na falta de estudos locais a respeito da ecologia das interações entre gatos e ratos, podemos olhar para o que tem sido descoberto em outros lugares. Na cidade de Baltimore (EUA), por exemplo, cujas populações de ratazanas vêm sendo monitoradas há décadas, descobriu-se que as chances de um indivíduo ser atacado e morto por um gato declinam bastante com a idade (e.g., CHILDS 1986, GLASS et al. 2009). Isso acontece porque os felinos concentram seus ataques nos estrados mais jovens (25-100 g de massa corpórea) da população de ratazanas, evitando os indivíduos mais velhos e maiores (> 200 g). Os roedores, portanto, se tornam “imunes” a essa fonte de mortalidade à medida que crescem. Os gatos, por sua vez, não parecem exercer um impacto negativo sobre a população de ratazanas.

Quando se fala em gatos e ratos domésticos, há, na verdade, bons motivos para acreditar que esteja acontecendo exatamente o oposto: os primeiros, ao contrário do que o senso comum imagina, podem estar facilitando a vida dos últimos. Trata-se de um fenômeno ecológico mais amplo, de acordo com o qual predadores podem facilitar a proliferação de presas, assim como a presença de presas exóticas pode levar ao desaparecimento de presas nativas (e.g., ZHANG et al. 2006). No nosso caso em particular, o processo de facilitação decorre do comportamento de forrageio dos gatos, um carnívoro oportunista cujos ataques costumam se concentrar sobre as presas mais abundantes. Quando isso acontece, as presas exóticas (inicialmente pouco numerosas) tendem a proliferar com mais facilidade, a ponto de estabelecerem populações locais numericamente equivalentes ou superiores às populações nativas (inicialmente mais numerosas). Além disso, se as presas exóticas forem competitivamente superiores, as nativas poderão ser levadas à extinção.

Mesmo na ausência de interações diretas entre elas, as presas exóticas ainda podem ter um impacto negativo sobre as presas nativas. Por exemplo, a presença de uma presa exótica pode sustentar um número extra de predadores e essa “superabundância” pode ter um impacto devastador sobre as presas nativas. Algo semelhante a isso acontece quando os gatos criados soltos são alimentados por seres humanos. Com uma base de recursos adicionais “grátis”, a população de predadores não sofre os efeitos de uma ocasional escassez numérica de suas presas, mantendo uma taxa de ataques em níveis permanentemente elevados. Nessas circunstâncias, as presas nativas vão sucumbindo paulatinamente. Por fim, a comunidade nativa é desmantelada e os invasores tomam conta do lugar. Uma vez que a comunidade passa a ser dominada por espécies invasoras, a situação tende a perdurar, principalmente quando as presas exóticas são tolerantes à presença de predadores exóticos, como é o caso do sistema envolvendo os gatos domésticos e as ratazanas. Diante de tudo isso, é uma ilusão imaginar que a população de ratazanas possa vir a ser controlada pelos gatos.

Problemaantigo e universal

A presença de uma espécie invasora, notadamente no caso de predadores, pode ter um impacto negativo bastante significativo sobre a biota nativa. Isso inclui o declínio numérico de populações de presas, a simplificação de teias alimentares, o desmantelamento de comunidades locais e, em última análise, a perda de serviços dos ecossistemas. O gato doméstico tem tido um impacto bastante negativo sobre populações de presas nativas, em diferentes partes do mundo. Além de declínios numéricos, esses felinos já provocaram o completo desaparecimento de diversas espécies ou populações. Um exemplo famoso é o da chamada cotovia-da-ilha-stephens (Traversia lyalli), ave endêmica da ilha Stephens e de outras ilhas da Nova Zelândia, que foi rápida e inteiramente dizimada pela ação de uns poucos gatos (ver GALBREATH & BROWN 2004).

A grande novidade trazida agora pelo artigo publicado na Nature Communications decorre de sua natureza abrangente: uma revisão que compila os resultados de pesquisas conduzidas por diversos cientistas, em diferentes lugares. Com base nisso, os autores construíram um modelo para descrever o que estaria ocorrendo nos Estados Unidos como um todo (excetuando-se apenas o Alasca e o Havaí). Todavia, embora eles tenham se debruçado sobre uma área geográfica específica, cabe ressaltar que o alcance de suas conclusões não se restringe a essa área. Gatos domésticos são encontrados em todo o mundo, até mesmo em ilhas remotas já abandonadas pelo ser humano (ver NOGALESet al. 2004). Em todos esses lugares, os hábitos alimentares desses felinos são essencialmente os mesmos, ainda que a identidade das presas abatidas possa variar de um lugar a outro. Em termos estritamente científicos, caberia agora descobrir até que ponto o modelo construído pelos pesquisadores estadunidenses se aplica em outras partes do mundo. E isso, claro, depende da realização de pesquisas adicionais.

Entre nós, pesquisas sobre a ecologia do gato doméstico ainda são raras e incipientes (e.g., LESSA & BERGALLO 2012) e pouco ou nada sabemos a respeito do impacto de carnívoros exóticos sobre a biota nativa (e.g., GALETTI & SAZIMA 2006). Nesse sentido, ouso dizer que os pesquisadores brasileiros deveriam buscar respostas mais precisas para três perguntas básicas: quantos gatos (com ou sem tutores) existem no país, onde eles estão e o que estão fazendo? Até lá, penso que as conclusões obtidas por Loss e seus colegas (LOSS et al. 2013) poderiam ser adotadas por quem queira dimensionar o impacto negativo que os gatos criados soltos têm sobre a biota nativa. Eis alguns números importantes:

os gatos com tutores abatem em média de 3 a 13 aves e de 9 a 22 mamíferos a cada ano; e os gatos ferais abatem em média de 30 a 48 aves e de 177 a 300 mamíferos a cada ano.

Combinando essas duas categorias de presas, os números indicam que os gatos com tutores abatem em média de 1 a 3 presas a cada mês, enquanto os gatos ferais abatem em média de 17 a 29 presas a cada mês. É importante notar que, embora aves e mamíferos correspondam à maioria das presas mortas, outros animais (e.g., répteis e anfíbios) também estão sendo abatidos em quantidades bastante significativas.

O que fazer?

Nos casos mais simples, a remoção dos gatos domésticos pode ser o suficiente para que as presas nativas se restabeleçam. Na verdade, a remoção física de gatos ferais vem sendo adotada com sucesso em diversas ilhas, de diferentes tamanhos, em diversas partes do mundo (ver NOGALES et al. 2004). Nos casos mais complexos, porém, a erradicação dos gatos por si só pode não ser o suficiente. Assim, quando gatos e ratos invasores proliferam conjuntamente, a restauração de comunidades nativas pode depender da remoção de ambos os invasores.

No plano estritamente científico, todos esses casos devem ser equacionados em dois níveis: o individual e o coletivo. No nível individual, cabe pensar no bem-estar dos animais envolvidos. No plano coletivo, porém, as decisões devem ser tomadas em função de argumentos apropriados para esse nível de análise. Por exemplo, diante das mortes de presas nativas causadas por gatos domésticos, muitos tutores argumentam que os animais estão apenas dando vazão aos seus “instintos mais fundamentais”. O argumento não está de todo errado, mas é completamente inapropriado para enfrentar a questão no plano coletivo.

Argumentos de natureza comportamental ou fisiológica – e.g., argumentos envolvendo coisas como “instinto”, dor, fome ou sofrimento em geral – são apropriados para aquelas situações nas quais estamos lidando com organismos que estão sendo mantidos por nós em circunstâncias artificiais. É o caso dos animais que vivem confinados em zoológicos, em biotérios ou em fazendas. Em todos esses casos, cabe analisar a situação no plano individual – i.e., em termos de bem-estar dos animais envolvidos.

No plano coletivo, porém, o eixo central é outro: o impacto que a espécie invasora tem (ou pode vir a ter) sobre a dinâmica ecológica local. Vivendo na rua ou durante suas excursões diárias, os gatos criados soltos estão interagindo com outros organismos, sejam eles nativos ou igualmente introduzidos. Nesse nível de análise, estamos lidando com comunidades (de presas, predadores etc.) e as decisões, portando, devem ser norteadas por argumentos de natureza ecológica. Permitir que um gato doméstico – ou qualquer outra espécie invasora – se alimente ou não de presas nativas é uma questão que deve ser resolvida com base em argumentos ecológicos.

Precisamos ter respostas para perguntas do tipo: o impacto da interação entre os gatos domésticos e as presas nativas é significativo? As comunidades locais correm risco de serem desmanteladas? As conclusões apresentadas por Loss e seus colegas (LOSS et al. 2013) não apenas reforçam suspeitas antigas – “sim, os gatos domésticos têm um tremendo impacto negativo sobre a biota nativa” – como também oferecem uma estimativa em larga escala para o tamanho do impacto. Com base no que já sabemos a respeito da ecologia do gato doméstico, parece seguro afirmar o seguinte: deixar que esses animais sejam criados soltos é uma permissividade cujos resultados podem ser desastrosos. Para equacionar e resolver um problema dessa magnitude, a paixão dos criadores precisa ser temperada com algumas pitadas de sabedoria em prol dos bens comuns.

Coda

Sempre que se fala em erradicação de invasores exóticos (i.e., remoção física, envolvendo ou não sacrifícios), a conversa facilmente descamba para um conflito entre “amantes” e “carrascos” de animais. É uma polarização simplista e, quase sempre, paralisante.

Considere a posição do blogue “Vox felina”, do engenheiro mecânico e professor universitário estadunidense Peter J. Wolf, um defensor intransigente dos gatos ferais. Wolf se diz afetivamente envolvido com os gatos, mas garante que a sua luta se dá sobre bases científicas. Ocorre que ele habitualmente rechaça todo e qualquer esforço dos estudiosos no sentido de obter um quadro mais confiável da situação. Os resultados do trabalho de Loss e seus colegas (LOSS et al. 2013), por exemplo, foram classificados por ele como “exagerados”. Nessa mesma linha de raciocínio, tempos atrás ele criticou duramente a zoóloga estadunidense Nico Dauphiné. Envolvida com um estudo sobre a ecologia de gatos criados soltos (e.g., DAUPHINÉ & COOPER 2009), Dauphiné teria ficado bastante transtornada ao constatar a extensão do impacto negativo que esses invasores têm sobre a fauna nativa. Denunciada por alguns vizinhos, sob a acusação de ter tentado envenenar alguns gatos, ela foi afastada de suas atividades profissionais e terminou sendo condenada a cumprir uma pena de 120 horas de trabalho comunitário, embora não tenha admitido a sua culpa durante o julgamento – ver artigo “Cat fight”, de John Carey, publicado na revista Conservation, em março de 2012.

Curiosamente, porém, nem todos os animais provocam reações tão acaloradas. Na verdade, enquanto alguns apaixonados gritam contra os programas de erradicação de gatos ferais, a sorte de invasores menos “fofinhos” está sendo decidida de um jeito bem diferente. Veja o caso do “Desafio Píton” (“Python Challenge”), uma patética, sinistra e contraproducente iniciativa patrocinada pelo governo da Flórida (EUA) para combater a disseminação de serpentes invasoras naquele estado. O alvo principal foi a píton-birmanesa (Python molurus), uma espécie originária da Ásia, cuja proliferação pelo sul da Flórida tem tido um impacto ecológico bastante negativo (ver DORCAS et al. 2012). A origem do problema, ao que parece, tem a ver com o fato de que alguns criadores arrependidos andaram se livrando dos animais – algo que nunca deve ser feito, nem com o mais “inocente” peixinho de aquário.

A imprensa brasileira pouco ou nada disse sobre o evento. A rigor, só consegui localizar um pequeno (e equivocado) registro: no dia 17/2, os portais G1 e R7 reproduziram uma mesma matéria da Agência EFE – ver, por exemplo, “Termina polêmico concurso na Flórida de captura de pítons birmanesas”. Essa matéria, contudo, contém erros e mal-entendidos. O leitor é levado a pensar, por exemplo, que o “Desafio Píton” foi um concurso de captura, e não foi. As serpentes capturadas tinham de ser mortas pelos competidores. Os animais que fossem apenas capturados simplesmente não seriam computados. No fim do dia, os esforços de uns mil e poucos aventureiros resultaram em 68 serpentes decapitadas. Os governantes, “satisfeitos”, agradeceram aos participantes. No dia seguinte, no entanto, a cara mansa da insanidade veio à tona: as lojas de animais continuavam funcionando, sem grandes problemas – as importações continuam liberadas, inclusive de serpentes, salvo uma ou outra restrição.

Para relatos mais informativos a respeito dessa pequena “epopeia”, tão emblemática dos dias atuais, sugiro duas leituras (pena que estejam em inglês): o artigo “Florida’s great snake hunt is a cheap stun”, de Bryan Christy, publicado na revista National Geographic, em 22/1; e a matéria “Florida holds high-profile hunt for low-profile creatures”, de Lizette Alvarez, publicada no The New York Times, em 23/1. O artigo de Christy é particularmente valioso e inspirador.

Referências citadas

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003) e A curva de Keeling e outros processos invisíveis que afetam a vida na Terra (2006)