Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Brasil de “fé” e circo

Promessas humanas de ordem e de paz: ao longo da história, o planeta vivenciou episódios violentos, como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que vitimou milhões e marcou sequelas irreparáveis após a explosão da bomba atômica. No cenário brasileiro, um dos principais períodos de conflito se escreve nas páginas de repressão do regime militar, que vigorou no país na época de 1964 até 1985, quando os últimos vestígios da ditadura foram apagados pela emenda constitucional. Exércitos e grupos extremistas fazem munição da vida humana para defender ideologias e impor seu poder sobre as civilizações.

Cada gota de sangue derramada nunca é suficiente para matar a sede dessas pessoas, homens e governos movidos poder econômico e moral. No Brasil, acreditávamos estar livres de tais cenas de tortura, mas o que se tem presenciado com bastante intensidade é uma série de comandos, projetos e declarações combativas que atentam os direitos humanos e caminham na direção de uma “Nova Guerra Fria”, cuja principal bandeira passa pelos territórios da sexualidade humana.

Já em 2011, situações polêmicas estiveram associadas a resoluções e medidas propostas e determinadas no panorama político e judiciário brasileiro. No dia 25 de maio, os vários protestos das bancadas religiosas no Congresso ocasionaram a suspensão do “Kit Anti-Homofobia”, elaborado pelo Ministério da Educação para distribuição nas escolas. Os três vídeos que faziam parte do kit (“Probabilidade“, ”Torpedo“ e ”Encontrando Bianca“) foram considerados como tentativas de indução ao comportamento homossexual pelas crianças, o que resultou no veto por parte da presidente Dilma Rousseff, que declarou então que nenhum órgão do governo adotaria a postura de “fazer propaganda de opções sexuais”, em entrevista nacional.

Antes disso, no dia 5 de maio, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união civil entre pessoas do mesmo sexo, episódio que assegurou aos casais homoafetivos direitos patrimoniais que antes não eram garantidos, tais como herança, pensão por morte ou separação do cônjuge e declaração compartilhada no Imposto de Renda. A decisão do STF causou incômodo a grupos políticos conservadores, formados principalmente por militares e religiosos, tendo como principais expoentes o deputado federal Jair Bolsonaro (RJ), o pastor protestante e televangelista Silas Malafaia e a ex-atriz e deputada estadual Myrian Rios (RJ), inclusive associando homossexualidade a atos de pedofilia.

Fundamentando-se no conceito de atentado aos princípios morais e “bons costumes”, os variados discursos ganharam representação e apoio de outros parlamentares, geralmente provenientes de alguma classe religiosa. Os mecanismos para afirmação do espaço dos heterossexuais na sociedade ganharam força em movimentos que se estenderam na mídia, principalmente na internet. Como protagonistas de tais episódios estão não somente os nomes, mas uma série de ideologias políticas e interesses econômicos que confundem pastores de rebanhos a generais e magnatas da denominada fé.

Grandes igrejas, pequenas graças, negócios divinos

No começo de 2013, uma lista publicada pela revista norte-americana Forbes [“The Richest Pastors in Brazil”, 17/1/2013, disponível aqui.] trouxe dados numéricos sobre fortunas acumuladas por pastores evangélicos brasileiros. A reportagem, que começa relacionando religião a um negócio lucrativo, apresenta o ranking dos líderes protestantes mais ricos do país, em cuja relação constam, do primeiro ao último lugar, os nomes de Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus), Valdemiro Santiago (Igreja Mundial do Poder de Deus), Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo), R. R. Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus), Estevam Hernandes Filho e bispa Sônia Hernandes (Igreja Renascer).

Contra as afirmações declaradas pela revista especializada, em entrevista ao programa De Frente Com Gabi [SBT, 3/2/2013] o pastor televangelista Silas Malafaia contestou o ranking publicado e teceu comentários abertos de combate à homossexualidade e ao aborto, dois dos principais assuntos explorados pelo programa. A polêmica entrevista tornou-se alvo imediato das críticas em redes sociais da internet, recebendo mensagens de repúdio de instituições, autoridades e pesquisadores dos campos jurídico, médico e biológico, especialmente por utilizar a genética como fundamento superficial de suas declarações.

Graduado em psicologia, Malafaia também é presidente da editora Central Gospel e apresenta o programa Vitória em Cristo [transmitido pela Rede Bandeirantes de Televisão, está há quase 30 anos no ar, sendo retransmitido para outros países e exibido em outras emissoras nacionais de televisão, tais como CNT e RedeTV!] que, a exemplo de outros pastores, realizam cultos, pregações e coletam doações financeiras via ligações telefônicas. O pastor Marco Feliciano segue a mesma linha em programa televisivo que leva seu nome e é exibido pela CNT. Deputado federal pelo PSC de São Paulo e criador do Ministério Tempo de Avivamento, o líder religioso é acusado de declarações homofóbicas e racistas, mas foi eleito Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, o que gerou uma série de protestos públicos pelo país, principalmente em atos e passeatas de repúdio e mobilizações via internet.

Em matéria da revista Veja [“Vinde a mim os eleitores: a força da bancada evangélica no Congresso”, 23/3/2013, disponível aqui] foi chamada a atenção para a atuação organizada de uma bancada evangélica no Congresso Nacional, que se articula em defesa de seus interesses morais, entre eles as lutas contra o casamento gay, a legalização do aborto, a eutanásia e a liberação das drogas. Todos estes princípios estão fundados na valorização supremacia das escrituras e ensinamentos sagrados, instituídos pela religião. Os dados apresentados pela revista mostram que estes evangélicos representam um total de 14,2% dos deputados e 5% dos senadores.

Linhas do tempo, tendências e discussões online

“Vamos transformar o Brasil em uma Jesuscracia” foi um slogan que circulou pelas redes sociais da internet de forma massiva. No cartaz constavam nomes de partidos e igrejas, e a distribuição da mensagem tinha como intuito sensibilizar os eleitores a votar em candidatos cristãos para compor maioria no poder legislativo do país. Caracterizada como “luta por um Brasil de Deus”, a mobilização dividiu opiniões entre fiéis, ateus e laicos, na ocasião em que o cenário político nacional apresentava um momento delicado na discussão de valores éticos e religiosos.

Um episódio ao qual esse capítulo se remete foi quando entre os principais tópicos comentados no Twitter se destacou a expressão “Orgulho Hetero”, que deu margem a debates sobre conquistas de direitos aos casais homoafetivos no país. Inclusive, em agosto de 2011 um projeto de lei chegou a ser aprovado na Câmara Municipal de São Paulo pelo então vereador Carlos Apolinário (DEM), instituindo o Dia do Orgulho Heterossexual [“Câmara de SP aprova Dia do Orgulho Hétero”, G1 SP, 2/8/2011, disponível aqui], sob a justificativa de um manifesto contra os excessos de privilégios à comunidade LGBT em território brasileiro. Mesmo com o apoio de outros vereadores, o projeto não obteve sanção do prefeito Gilberto Kassab.

“Heterofobia” foi outro termo bastante explorado durante o período. Acionado por militantes da causa religiosa, sua circulação teve a mesma função que a expressão defendida pelo vereador Apolinário em São Paulo. Fundamentando-se na ideia de uma “ditadura gay” caracterizada pela imposição do “estilo de vida homossexual” em deterioração ao “modelo de família cristã”, a palavra amplamente divulgada e adotada por conservadores previa a revogação de decisões judiciais, principalmente no que diz respeito à legalização do casamento gay no Brasil e à criminalização da homofobia.

Entre os discursos de cunho agressivo e que foram compartilhados entre usuários, além dos questionamentos sobre arranjos familiares, sexualidades e direitos afetivos, as concepções sobre “normalidade”, ”hostilidade” e “perversão” foram assuntos mais debatidos sem profundidade de conhecimento. Qualquer internauta em posse de um perfil nestas redes online poderia incluir comentários a favor ou contra, gerando ondas de argumentação e disputa em movimentos de desordem que, de certa forma, acarretam na banalização dos termos.

O Brasil é de todos

Entre magnatas jesuscratas e pastores milionários, o que parece mesmo é que a Bíblia Sagrada mudou seu status de livro de conforto espiritual para armamento em uma guerra moral na mídia, nas bancadas políticas e redes sociais de formação de opinião pública. Enquanto impérios são erguidos por meio dos negócios da fé, o respeito aos direitos humanos e à diversidade das minorias é ameaçado às ruínas pela destituição da Constituição civil brasileira em favor de um sistema de governo evangélico com características de regime militar.

A afirmação – ou imposição, melhor dizendo – do espaço ”heterossexual” na sociedade brasileira aparece revestido em cápsulas de ideologias religiosas que, sob a tentativa de reclamar a possível derrubada dos modelos cristãos, findam por estigmatizar e hostilizar direitos comuns aos cidadãos de um país democrático. Se a espécie humana se individualiza pela diversidade cultural, de credos, étnica e racial, o ato de motivar discursos de ódio a qualquer camada da população poderia ser configurado como ato criminoso de etnocentrismo, para não cair nos discursos instantâneos de preconceito e discriminação dos quais geralmente todos tentam se esquivar.

Ignorar realidades culturais, especificidades biológicas e identidades individuais, ao mesmo tempo em que se sobrepõem os interesses menores de determinado grupo é prática que determina uma verdade na condição de absoluta. Ao contrário do que se presencia nas discussões destas redes, e ainda mais em termos de miscigenação que marca o processo de formação da sociedade brasileira, não há qualquer questionar qualquer característica como sendo essencial ao tipo humano, muito menos nos ensaios e dicotomias que tratam pecado e pureza, pecado e virtude, bem ou mal, nem inferno ou céu. Como definir perversão, sodomia ou normalidade então? Somente a partir de um referencial? E os outros referenciais, como classificam os mesmos exemplos?

O orgulho heterossexual é tão diferente do orgulho gay, quanto a denominada “heterofobia” não se situa no mesmo patamar que a homofobia historicamente encontrada nos escritos científicos a nível internacional. Enquanto a camada LGBT apresenta um histórico de militâncias políticas para contornar um estigma cristalizado há séculos para garantir igualdade de direitos, a população que designa sofrer de “heterofobia” se apropria de um termo científico para zombar, com repulsa e violência simbólica, dos cidadãos e vítimas agredidas por conservadorismos civis e religiosos no momento em que lhes é negada a concessão de legitimidade de suas expressões afetivas. E depois, ainda usam o nome de “Deus” para pregar o “amor universal”.

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Jo Fagner é mestre em Antropologia Social (UFRN) e bacharel em Comunicação Social (UFRN)