“Espero não ler essa conversa daqui a 25 anos na mídia”, disse o ex-secretário-geral do Itamaraty Jorge de Carvalho e Silva, a um diplomata americano no começo de 1973, em plena ditadura militar. Carvalho e Silva estava reclamando da política americana de liberação de documentos oficiais, quase 40 anos antes da Lei de Acesso à Informação brasileira ser aprovada. O tema da desclassificação de documentos era “muito sensível” para a ditadura brasileira, relatou o então embaixador americano John Crimmins em um despacho diplomático no qual comentava o diálogo. Segundo Crimmins, o Itamaraty e o Conselho de Segurança Nacional haviam decidido que documentos secretos do Brasil só deveriam ser liberados após 50 anos, e ainda assim, os pedidos seriam analisados “caso a caso”.
Carvalho e Silva não podia imaginar que, quatro décadas depois, não apenas sua conversa poderia ser publicada pela mídia, mas estaria disponível para 2 bilhões de usuários da internet pelo mundo. O relato em questão pode ser facilmente acessado através do projeto PlusD, Biblioteca de Documentos Diplomáticos dos EUA, lançado pelo WikiLeaks em parceria com 15 veículos internacionais, incluindo as agências de notícias AP e AFP e os jornais La Repubblica, da Itália, La Jornada, do México, Página 12, da Argentina – e a Agência Pública, no Brasil.
Pela primeira vez, a organização de Julian Assange traz não um vazamento, mas uma nova maneira de buscar documentos que já estavam em domínio público. O PlusD agrega 1,7 milhão de documentos diplomáticos de 1973 a 1976 – quando Henry Kissinger dirigia a política externa americana – e 250 mil de 2003 a 2010, constantes no vazamento mais famoso da organização, oCablegate.
Os documentos da era Kissinger constantes no PlusD foram desclassificados e colocados online pelo National Archives and Records Administration (NARA), o arquivo nacional americano, a partir de 2006, após passarem por uma detalhada revisão do Departamento de Estado e do próprio National Archives. Desetes, cerca de 320 mil são documentos originalmente classificados – cerca de 250 mil confidenciais e 70 mil, secretos.
Dentre 1,7 milhão de documentos, mais de 300 mil estão em formato microfilme na sede do National Archives em Washington (não disponíveis no site); e há entre eles 250 mil “cartões de retenção”, indicando os documentos que não foram liberados para desclassificação por serem, ainda hoje, considerados sensíveis para os EUA.
Para o Brasil, o novo projeto do WikiLeaks tem especial importância. Embora parte dos documentos já tenha sido publicada pela imprensa brasileira, o arquivo completo expõe em detalhe as ações de Kissinger em relação à ditadura brasileira entre 1973 e 1976 – em especial, durante o governo do general Ernesto Geisel. Até agora não se sabia a real dimensão deste arquivo. São mais de 8.500 documentos enviados pelo Departamento de Estado dos EUA para o Brasil e mais de 13.200 documentos enviados da embaixada americanas em Brasília e consulados a Washington – mais de 1.400 são confidenciais, e mais de 115 secretos.
Dezenas de despachos mostram que a missão americana acompanhava de perto os relatos de tortura e de censura à imprensa. Também há dezenas de registros de treinamentos policias e militares, sempre encorajados pelo próprio Crimmins e por Henry Kissinger, que primava por ter uma relação próxima com o Brasil – em especial nos temas hemisféricos, como o embargo a Cuba. Também há detalhes sobre como a embaixada lidou com a prisão e tortura de dois cidadãos americanos, o ex-deputado estadual Paulo Stuart Wright, que tinha dupla cidadania, e o missionário Frederick Morris.
Facilitando a liberação de novos documentos americanos
“Esses documentos são difíceis de acessar, então, na verdade, ainda estão envoltos em uma cortina de segredo”, explica o porta-voz do WikiLeaks Kristinn Hrafnsson. “Eles também dão uma visão geral do que ainda está escondido”. O PlusD traduz na prática premissas defendidas pelos ativistas de dados governamentais abertos – em suma, que as informações devem ser disponibilizadas a todos, de maneira aberta, não proprietária e em formato facilmente pesquisável e manuseável na web. “Isso deveria ser trabalho dos governos, mas eles têm tendência de fazer o oposto”, diz Kristinn.
Segundo a equipe do WikiLeaks, além dos documentos do National Archives estarem disponíveis em arquivos de PDFs isolados – de difícil busca e manuseio – havia imperfeições técnicas que dificultavam a busca por um público amplo. No site do NARA, grafias diferentes para as mesmas palavras levavam a erros na busca. Kissinger, por exemplo, estava escrito de 10 formas diferentes. A equipe do WikiLeaks realizou uma “engenharia reversa” de todos os PDFs, além de uma análise de campos individuais, através de programas desenvolvidos para lidar com o grande volume de dados e corrigir os erros. “É uma expansão do Cablegate. O projeto mostra que o WikiLeaks aprimorou sua capacidade técnica para processar e apresentar ao público grandes bases de dados”, explica o porta-voz.
O PlusD permite busca em formato de texto, permitindo uma maior variedade de campos de pesquisa, como por tipo de documento (despachos diplomáticos, memorandos, relatórios de inteligência), agência que o produziu, classificação original e tamanho do texto. Os telegramas contêm links para todas as outras comunicações que fazem parte da correspondência. O Plus D também está aberto para pessoas que possuem documentos diplomáticos dos EUA e queiram incorporar a essa biblioteca, através do email plusd@wikileaks.org.
“Esses documentos cobrem um período muito turbulento da história contemporânea – em especial em países que sofreram com ditaduras diretamente apoiadas ou endossadas pelos EUA, como na América Latina. É importante que esses países tenham um acesso rápido e fácil para todas as informações relevantes na busca de entender o que acontecer”, diz Kristinn. “O WikiLeaks quer ver isso acontecer no Brasil e em outros países”.
No Brasil
Um dos principais objetivos do PlusD é facilitar os pedidos pela Lei de Acesso à Informação americana para liberar documentos que ainda são mantidos em segredo, o que pode ser feito através das informações nos milhares de “cartões de retenção” constantes no site.
Entre os documentos da embaixada no Brasil ainda não liberados – o total é de 2.108 – que podem ser úteis à Comissão da Verdade estão, por exemplo, um telegrama secreto de Brasília, de 26 de abril de 1973, intitulado “Aumento em prisões relacionadas a subversão e alegações de tortura”; outro, do consulado do Rio de Janeiro de 15 de dezembro de 1976 intitulado “Terrorismo da direita: acontecimentos relativos à aliança anti-comunista no Brasil”, de 15 de dezembro de 1976; e outro, do consulado de São Paulo de 6 de agosto de 1975, chamado “Mortes e desaparecimentos de extremistas chilenos”.
Os documentos já liberados sobre o Brasil traçam uma detalhada narrativa histórica das relações bilaterais. Há por exemplo dezenas de trocas de correspondência entre Henry Kissinger e o ministro do exterior Azeredo da Silveira, além de relatos de conversas com altos membros do governo militar, como o ministro da Justiça Armando Falcão, jornalistas e religiosos como o Cardeal de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns.
O público pode ver na íntegra o documento que relata as ameaças recebidas pelo adido político do consulado dos EUA em São Paulo Claris Halliwell, que costumava frequentar a sede do Departamento de Ordem Política e Social entre 1971 e 1973. Halliwell era identificado como “cônsul”, segundo o registro de visitas do DOPS e chegou a ir ao prédio no Largo General Osório – onde ocorriam torturas – duas vezes por mês. A ligação foi feita por um anônimo com sotaque paulista, segundo um telegrama de 26 de outubro de 1973, que disse: “se você não parar de nos atacar, nós vamos tomar medidas contra você”. A Comissão Estadual da Verdade de São Paulo pediu ao Itamaraty que interceda junto aos EUA para pedir mais informações sobre Halliwell.
Outros documentos são particularmente intrigantes, como um breve e ríspido despacho confidencial enviado pelo embaixador americano durante o período, John Crimmins, ao Departamento de Estado em 22 de dezembro de 1976, com o aviso “não distribuir”, no qual ele afirma que “um oficial da embaixada viu Vernon Walters no estacionamento do Ministério do Exterior ontem”. Segundo Crimmins, “o oficial conhece Walters bem e não há absolutamente nenhuma dúvida da sua cabeça de que a pessoa que ele viu foi Walters”. Indignado, o ex-embaixador pergunta a Kissinger: “Walters não deu a conhecer sua presença à embaixada. Qual é o propósito da sua visita?”.
Vernon Walters, que foi adido militar da embaixada brasileira entre 1962 e 1967 – em pleno golpe militar – acabava de deixar o cargo de vice-diretor da CIA, que ocupou de maio de 1972 a julho de 1976. Não há nenhum registro oficial de sua visita ao Brasil em dezembro daquele ano.
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Desclassificação e reclassificação de documentos nos EUA
Desde que foi criada em 1966, a Lei de Liberdade de Informação dos Estados Unidos prevê a liberação ao público de documentos oficiais classificados (confidenciais e secretos) com mais de 25 anos de idade. Os documentos são revisados pelos Departamentos que os produziram para permitir a sua transferência para o National Archives, que possui algumas bibliotecas abertas ao público. Documentos considerados sensíveis à segurança nacional, ou que contém informações pessoais (nomes completos, número de passaporte), continuam classificados.
“Não dá para dizer que há uma regra geral”, explica o pesquisador Jeremy Bigwood, que há quase duas décadas pesquisa o arquivo e faz pedidos de liberação de documentos restritos. “Cada departamento tem seus critérios e o seu modo de revisar documentos. O pedido de um grupo determinado de documentos de certa época pode trazer resultados diferentes de outro grupo de documentos de outra época”.
A partir de 2006, o National Archives passou a publicar parte do seu gigantesco acervo online, permitindo pesquisas pelo público. Além de documentos diplomáticos, há listas de prisioneiros japoneses na Segunda Guerra, registros de imigrantes que desembarcaram no porto de Nova York no final do século 18, relatórios de inteligência, registros de hospitais e mortuários. “As pessoas usam esses documentos para os mais diversos fins”, explica Bigwood. “Havia muita pressão para liberarem os documentos sobre o Vietnã, por exemplo, pois os soldados precisavam comprovar que foram expostos ao agente laranja para poder pedir indenizações na justiça”.
Quanto aos documentos diplomáticos, pertencentes ao Departamento de Estado, apenas uma pequena fração deles, entre 1973 e 1976, está disponível. Milhares de arquivos foram perdidos quando os documentos foram transferidos em formato digital. Em especial documentos referentes à primeira metade de dezembro de 1975, de março e junho de 1976.
Depois de publicá-los em 2006 e 2007, o NARA diminuiu o ritmo e parou de publicar documentos diplomáticos por ano, limitando-se a coleções temáticas apenas – como os papéis do Chile, por exemplo.
Além disso, desde o final da década de 90, milhares de documentos que haviam sido liberados ao público sumiram das prateleiras do NARA por iniciativa da a CIA, do Pentágono e de outras agências, que passaram a “reclassificar” documentos que consideravam sensíveis, retirando-os do domínio público. Muitos destes documentos eram despachos diplomáticos do Departamento de Estado, liberados durante a administração de Bill Clinton, que, segundo a CIA, continham informações de propriedade da agência, indevidamente liberadas.
O processo se acelerou desde o ataque às Torres Gêmeas em 2001. “Logo depois dos ataques se via muitos espiões nos arquivos revisando documentos”, lembra Bigwood. “Em muitos casos, os funcionários deixam um aviso de que os documentos foram retirados, mas em outros não há nem isso”. Ele se lembra, por exemplo, de um documento que analisava como seria a invasão turca do Chipre em julho de 1974 antes mesmo dela acontecer. “O documento havia sido visto por um pesquisador, mas quando fui aos arquivos, ele havia sumido. Tive que fazer um pedido de acesso à informação para obtê-lo de novo”, diz Jeremy.
Depois de protestos por parte da Associação Nacional de Historiadores em 2006, um auditoria oficial detectou que cerca de 55 mil páginas e documentos haviam sido removidos do domínio público.
Quando a lei de acesso dos EUA bateu às portas da ditadura
Os tempos eram outros, e o governo militar nem sonhava com a possibilidade do Brasil adotar uma Lei de Acesso à Informação. Mas a lei americana já estava em pleno vigor. Através dela, em dezembro de 1976 o jornalista Marcos Sá Corrêa, então correspondente do Jornal do Brasil, obteve acesso a documentos desclassificados sobre a participação dos EUA no golpe de 64, que estavam na biblioteca Lyndon Johnson, no Texas.
A série de reportagens revelava as articulações dos americanos antes do golpe, mostrando que eles sabiam nos mínimos detalhes o que iria acontecer. Além de gravações de reuniões e despachos diplomáticos, havia documentos da CIA e diversos perfis de altos funcionários do governo militar. Os documentos também revelavam, pela primeira vez detalhes sobre a Operação Brother Sam, um plano de contingência do governo dos EUA que enviou parte da frota naval americana no Caribe em direção ao porto de Santos com 100 toneladas de armas leves, munições, carregamentos de petróleo e aviões de caça para apoiar militarmente o golpe, caso houvesse resistência.
No dia anterior à publicação, a bomba estourou na embaixada. O embaixador John Crimmins recebeu uma ligação de um nervoso José Magalhães Lins, sobrinho do então presidente do Senado Magalhães Pinto, relatando a publicação. “Magalhães Lins diz que ele recebeu essa informação do vice-presidente executivo do Jornal do Brasil Nascimento Brito, um amigo pessoal. Nascimento Brito lhe contou sobre a obtenção dos documentos porque o nome de Magalhães Lins, ao lado de outros brasileiros proeminentes, aparece em muitos deles como fonte de informação (da embaixada)”, escreveu Crimmins em um despacho diplomático em 16 de dezembro. O diretor do jornal prometeu que o nome do amigo seria poupado. Mas o mesmo não poderia ser garantido se O Estado de São Paulo e a Revista Veja obtivessem os mesmos documentos – eles não teriam tanta “consideração”.
Consternado, Crimmins pediu a Kissinger orientações sobre como lidar com a imprensa. “Magalhães Lins está tentando através de contatos de alto nível com os serviços de segurança impedir a publicação pelo menos dos documentos mais sensíveis”, escreve o embaixador, acrescentando que “a embaixada, claro, não está tendo nenhum papel nesse esforço. Magalhães Lins tem consciência da nossa postura de não pôr as mãos nisso, e concorda totalmente”.
Mas em resposta, Kissinger limitou-se a dizer que os documentos haviam sido “desclassificados ou ‘higienizados’ como resultado do processo mandatório de revisão sob ordem executiva” e que estavam todos disponíveis ao público. “Nos casos em que há nomes, nem o contexto nem a substância do evento foi considerado de natureza sensível”.
Para irritação dos militares, a reportagem especial do Jornal do Brasil, publicada ao longo de três dias, explicava que os documentos podiam ser obtidos na biblioteca por apenas 15 centavos.
Antes disso, a embaixada tentara entrar em contato com a alta cúpula do Itamaraty para avisá-los de antemão. Mas só conseguiu contatar o embaixador João Hermes Pereira de Araújo, chefe do Departamento das Américas do Itamaraty, quando a reportagem já estava na rua.
Dias depois, em 23 de dezembro, Crimmins relataria em outro despacho que tanto Hermes Pereira de Araújo quanto o chefe de gabinete do Itamaraty, Luiz Pereira Souto Maior, o haviam procurado, demandado explicações. “Enquanto o ocorrido não nos ajudou muito, já que envolve pessoas ainda ativas e joga dúvidas sobre elas, também implica certos contatos por obter informação. A coisa toda é um pouco desconfortável”, lamentara, ao telefone, o chefe de gabinete Souto Maior.
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Natalia Viana é jornalista