Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A produção de versões sobre a realidade

Margaret Thatcher se foi. Uma amiga escreveu nas redes sociais que o falecimento da “dama de ferro” fez o diabo coçar a cabeça. Gargalhei bastante imaginando a cena. No entanto, os sorrisos logo foram embora. Algumas horas depois de findar o dia do jornalista, eis que os “especialistas em generalidades” dedicam elogios e reverências à introdutora do neoliberalismo na Inglaterra. A partir disso, entrelaçarei dois pontos nesta rápida crônica: 1) o papel dos jornalistas e do jornalismo na realidade contemporânea; 2) um comentário crítico ao governo Thatcher.

Nunca na história da humanidade tivemos a possibilidade de lidar com tanta comunicação e informação. É comum pensarmos que o advento das novas tecnologias faz de qualquer portador de um telefone celular um potencial jornalista. Será? Confesso não ter tanta certeza. Ainda que qualquer pessoa possa veicular um acontecimento, disseminá-lo mundo afora, não acredito que isso a torne um jornalista.

Talvez compartilhe de uma visão ultrapassada relativa a estes profissionais. Se eu fui capaz de entender alguma coisa dos quatro anos e meio que circulei entre eles, a ideia do jornalismo é produzir versões acerca da realidade, apurando os “fatos”, equilibrando os discursos e engendrando uma informação que esteja tão próxima quanto possível da veracidade. Procurar-se-ia uma versão fidedigna do ocorrido, a fim de informar a sociedade daquelas coisas que os limites do espaço-tempo não permitem o contato presencial.

Os interesses dos anunciantes

Desse ponto de vista, parece-me importante a existência dos meios de comunicação de massa. Eles teriam, em tese, a incumbência de selecionar os “conteúdos” de interesse público e organizar a produção de versões relacionadas. Isso significaria, volto a dizer, a tarefa de equilibrar as percepções disponibilizadas pelas fontes. Sem nenhuma intenção de neutralidade, uma busca pela construção informativa que fornecesse os elementos para que todos pudessem discernir por si próprios a valoração de tudo que vira pauta.

Só que essa perspectiva cai por terra frente ao cenário que se apresenta todos os dias. O que vemos é a elaboração de simulacros atrás de simulacros. Trata-se de uma reprodução exageradamente imperfeita e tendenciosa da vida social – o “produto” oferecido pelas empresas de mídia de larga escala. Mais do que encaminhar o seu viés dos acontecimentos, de modo desequilibrado, não são honestas em admitir aos “consumidores” o lado ao qual elas estão vinculadas, o time em que estão jogando. Daí o descrédito cada vez maior que recai sobre os enormes conglomerados jornalísticos.

No capitalismo financeiro atual, portanto, a possibilidade de que cada ser humano consiga expressar para todo o planeta o seu olhar sobre algum episódio preenche as lacunas que o jornalismo com J maiúsculo não tem como ocupar. Num contexto em que o mercado atravessa quase todas as relações sociais, os interesses dos anunciantes perpassam o teor das versões erigidas por aqueles que são pagos pelos mesmos anunciantes. Não digo que determinam, mas as evidências mostram que condicionam – tanto as empresas, quanto a formação dos seus futuros funcionários e a prática deles no exercício do seu trabalho.

Versão exclusiva da realidade

Um cristalino e triste exemplo é a cobertura da morte de Margaret Thatcher. Os “especialistas em generalidades” distribuem elogios e saudações às “fundamentais reformas” propulsadas pelo governo conservador na Inglaterra. Mergulhados na concepção de sociabilidade embebida pela “liberdade” de mercado, acreditando ser essa a via única da história, os jornalistas não equilibram as versões.

No mínimo, uma rápida consulta aos intelectuais ingleses faria um bem gigantesco. Por que não colocar as críticas do historiador Perry Anderson em jogo? Ora, apenas porque Anderson sublinharia:

“Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado.”

A confluência do dia do jornalista com o falecimento da dirigente política defensora dos desmontes dos direitos sociais doravante indica que precisamos refletir sobre o que a grande mídia anda dizendo por aí. Passou da hora de darmos um forte voto de confiança aos meios de comunicação alternativos. Do contrário, corremos o sério risco de ficarmos mais e mais reféns de uma exclusiva versão da realidade cotidiana.

Referência

ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pósneoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. Páginas 09-23.

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Bernardo Caprara é sociólogo, professor e jornalista