Existe um gênero de programas que proporciona qualidade para seus telespectadores, prestígio para os seus anunciantes e para os donos das redes de televisão, além de alcançar excelentes índices de audiência, premiações internacionais e até um certo número de boas críticas. São os programas de documentários para TV.
Sempre adorei esse tipo de filme que insiste em privilegiar a “realidade” ainda mais do que a ficção. Mas, ao contrário de muitos, aprendi a gostar dos documentários – o primeiro dos gêneros cinematográficos – não no cinema, mas assistindo à televisão. Ainda na infância, clássicos como Expedições famosas e tantas outras ótimas séries descreviam lugares e culturas estranhas. Preenchiam a curiosidade de toda uma geração de jovens que sonhavam com um mundo um pouco maior do que o noticiário e o entretenimento da TV, ou os limites impostos pela ditadura.
Os documentários sempre foram os meus programas favoritos na televisão. Mas nunca fiquei satisfeito em apenas assistir, pesquisar e comentar suas propostas em reuniões assíduas nos cineclubes. Queria aprender a produzi-los. E foi em busca da realização de um sonho que um dia, em março de 1973, ainda estudante da PUC-RJ, realizador precoce com algumas participações irreverentes em festivais de cinema amador então promovidos pelo Jornal do Brasil, e munido de muita cara de pau, me dispus a bater na porta da antiga TV Globo, no Jardim Botânico, e tentar a minha sorte. Queria trabalhar no melhor programa de documentários da época, o histórico Globo Shell.
Refinamento perdido
Consegui o emprego, ou melhor, o estágio não remunerado, mas o Globo Shell, assim como tantas outras boas coisas na TV brasileira, não sobreviveria por muito tempo.
Mal sabia eu que naquela mesma época, era lançado o mais longo, bem-sucedido e ousado capítulo da história dos documentários brasileiros. Apesar do clima de repressão e desconfiança, sem muito planejamento, de forma improvisada, como quase tudo em nosso país, estava sendo criada uma das principais escolas de formação profissional e realização de documentários no Brasil. Março de 1973 marcou o início do Globo Repórter, um dos programas jornalísticos mais antigos da nossa TV.
Para mim, era a reafirmação de uma paixão e o começo de uma grande aventura. Tal como muitos estudantes de hoje, eu sonhava com a oportunidade de produzir o melhor do jornalismo para TV. Não me interessava nem me contentava com as matérias do dia a dia que preenchem os nossos telejornais. Sonhava com os grandes temas que encontram no documentário o seu mais importante meio e linguagem. Buscava um jornalismo mais investigativo, ousado, que aprofundasse temas políticos e sociais em tempos que, como hoje, limitavam as ideias e as transformações sempre tão urgentes.
Com uma origem nobre, os documentários possuem raízes diretas nos grandes nomes da história do gênero cinematográfico como Flaherty, Grierson, Vertov, Jean Rouch e tantos outros que venerávamos silenciosamente em sessões concorridas na cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) ou, ruidosamente, em debates políticos apaixonados. Naqueles tempos conturbados, além de tantas discussões sobre o cinema novo ou velho, dava-se início a um dos projetos mais ousados e criativos da televisão brasileira.
O modelo original deveria ser o Sixty Minutes, da CBS – programa que ainda hoje lidera a audiência na televisão americana. Mas a ideia original se transformou muito: o mais importante era a ousadia da proposta de combinar a sofisticação da linguagem e da tecnologia cinematográfica com o poder massivo da televisão aberta na realização de filmes sobre a nossa realidade. Era um projeto ambicioso que deu certo.
Mas que fim levaram esses documentários jornalísticos em nossa televisão? O que aconteceu com os herdeiros de nomes como Paulo Gil Soares, Eduardo Coutinho, Walter Lima Júnior, Mauricio Capovilla, Luís Carlos Maciel e tantos outros? Todos grandes profissionais da imagem, do som e do texto refinado que criaram alguns dos melhores documentários já produzidos em nosso país. E o mais incrível é terem conseguido este feito na Globo, durante o pior período da ditadura.
Novo modelo
Hoje vivemos um clima de ressurreição dos documentários. Só que, agora, restrito às televisões segmentadas como a GNT, a BBC, o Discovery Channel e o National Geographic. Muitos estudantes e apreciadores dos bons documentários não conseguem acreditar que um dia o Globo Repórter tenha sido um programa ousado e que, apesar do nome, não tinha nem repórter nem estilo ou formato definidos. Como dizia o seu criador, Paulo Gil Soares, “era um programa autoral” – com diretores convidados que traziam em sua bagagem cinematográfica toda um cabedal de experimentação de linguagem e irreverência profissional para o mundo restrito e conservador do telejornalismo.
E aquele foi realmente um convívio subversivo, no bom sentido. Como todo bom documentário, essa relação incomodava muita gente, inclusive os militares e os censores de plantão. Mas para todos nós, jovens sonhadores e idealistas que acreditavam que, apesar de todas as restrições, era pela televisão que alcançaríamos o grande público e as grandes mudanças, o convívio como os novos cineastas era emocionante.
Hoje, tudo isso soa pretensioso e utópico. Mas creio que muitos de nós nunca deixaram de acreditar no verdadeiro potencial da televisão no Brasil para fazer alguma coisa boa –não somente para uma minoria, mas para muitos. Produzir qualidade na TV aberta brasileira sem o elitismo de uma boa programação voltada somente para o público de TV segmentada.
Produzir bons documentários para o grande público da TV aberta já foi mais do que um sonho. Era isso que representava o Globo Repórter. Além de oferecer a oportunidade de conviver, mesmo de longe, com o ritmo cinematográfico da produção de uma televisão de qualidade, eram realizados documentários sobre temas importantes. Para quem estava acostumado a produzir matérias de alguns minutos em poucas horas para os telejornais, ver como se lapidavam verdadeiras obras-primas durante semanas e que, ainda por cima, abordavam temas fortes, coerentes e perigosos era mais do que uma simples oportunidade – era uma verdadeira escola de “cinema verdade” para TV.
Essa nova relação com o mundo do cinema influenciou durante muito tempo, e de forma positiva, toda uma geração de jornalistas de TV. Era instigante ver como os “cineastas” lidavam com a maior intimidade com a película, a luz, o enquadramento e, principalmente, com os personagens.
Nas mãos de diretores como Eduardo Coutinho, eles falavam além das declarações “objetivas” e das distorções editoriais do famigerado “povo fala”. Os jornalistas de TV ofereciam em troca a experiência voltada para a agilidade das notícias e a criatividade nas soluções imediatas. Era um casamento difícil e delicado, mas muito produtivo.
O Globo Repórter viveu a sua melhor fase até 1983. Com as novas pressões para que o programa se tornasse “mais jornalístico” (ou seja lá o que isso significava), além das restrições às experimentações de linguagem, consideradas onerosas e até mesmo perigosas, o programa foi se descaracterizando, afastando-se da proposta original, até se tornar o que é hoje. Estabeleceu-se um novo modelo econômico e político para o país e para o programa.
Vaga lembrança
O projeto pioneiro do Globo Repórter sobreviveu à ditadura, mas não sobreviveu ao peso da sua própria história de sucesso, criatividade e inovação. Foi aos poucos se tornando um programa cada vez mais “telejornalístico” e menos “cinematográfico”. Passou a ser mais um programa com reportagens longas sobre temas óbvios e abandonou definitivamente a experimentação de novas linguagens audiovisuais. Os cineastas também se foram, alguns para carreiras de muito sucesso, mas longe da TV.
No modelo atual do Globo Repórter, a presença cada vez mais insistente e persistente dos repórteres aproximou o gênero do que há de pior no telejornalismo moderno. Os temas passaram a privilegiar, com raras exceções, a vida dos animais estranhos e o turismo em locais exóticos, em programas burocráticos e pouco criativos. Os temas sociais e as denúncias de um jornalismo investigativo e impessoal, características fundamentais do gênero documental, foram substituídos pela produção institucional tímida e bem comportada.
Em 2013, o velho Globo Repórter, o mais importante e relevante espaço para os documentários na TV brasileira, comemora os 40 anos. Infelizmente, não cria mais polêmicas ou nos ensina a apreciar o melhor gênero do jornalismo de TV. Hoje, com belas cenas e muita presença de repórter fazendo “turismo” no Vietnã, o Globo Repórter é cada vez mais é uma vaga e distante lembrança do passado. Após 40 anos, envelhecemos, mas envelhecemos juntos. Inevitável.
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Antonio Brasil é jornalista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina