O programa de Cesar Millan O encantador de cães, exibido no Brasil no canal pago Animal Planet, merece alguns comentários a mais para explicar a controvérsia que o mesmo provocou nos Estados Unidos e Europa sobre os métodos empregados pelo adestrador nos cães em seu programa. Não é apenas um show de TV que trata do adestramento de caninos. É também um programa sobre pessoas e personalidades, e que acabou por gerar um debate ainda não terminado sobre os métodos do adestrador e protestos de organizações de proteção aos animais contra os procedimentos de Cesar e seu programa.
Em primeiro lugar, em grande destaque e pompa, temos o próprio apresentador: um mexicano zen, de personalidade magnética. Sua meta é ambiciosa: ele trabalha a mudança de comportamentos dos animais, mas diz que seu objetivo de fundo é a transformação do comportamento humano. Em quase todos os casos em que ele teve que enfrentar rebeldias e comportamentos inadequados para animais domésticos, o problema não era unicamente o bicho. A criatura animal, abandonada aos seus próprios instintos em ambiente urbano familiar, pode ser um elemento de perturbação da paz doméstica, se limite não lhe for imposto.
A falta de autoridade da maioria dos donos de animais “problemáticos” geralmente é a maior dificuldade que Cesar tem que superar. Na sociedade contemporânea, há uma tendência a um liberalismo preguiçoso e irresponsável em todas as pedagogias da sociedade, que vê em atos necessários de disciplina a todas as criaturas (animais ou humanas), como violência ou agressão. Há uma explicação para isso.
Alcateia de lobos significa uma família
Uma sociedade comprometida com o “imperativo da felicidade” (como todas as sociedades ocidentais) “identifica toda aflição como ‘ anomalia’”, explicou o filósofo espanhol Germán Cano ao El País (13/08/2010). Como consequência, vivemos em “uma sociedade frágil, excessivamente preocupada com a ameaça da dor, sempre em risco, desamparada e infantilizada pela necessidade de proteção”, explicou o estudioso. Uma sociedade assim produz criaturas fragilizadas. Aos olhos delas, os métodos do “encantador de cães” vão sempre parecer brutais.
Cesar tenta mostrar o contrário, mas ainda está longe de obter a aprovação dos adestradores profissionais para seus métodos. Com mansidão firme, ele domina os animais com carinho mais também faz uso de métodos mais intensos que muitos consideram agressão. Ele é duro quando acredita haver necessidade. Cesar acredita que cães vivem em estrutura hierárquica que vem de sua herança ancestral selvagem: sempre há que haver o “macho-alfa” na matilha. Adestradores profissionais e veterinários dizem que esta crença é errada, e seus métodos e concepções de trabalho têm sido duramente contestados por eles. A revista PetAdviser (16/01/2012) informou que Cesar carece das credenciais necessárias: ele é um autodidata e não tem qualquer tipo de formação ou certificação formal.
Seus ensinamentos ficaram abalados com a sólida argumentação apresentada no site do centro de adestramento canino 4Paws University (2006), que argumentou que o peso da herança ancestral selvagem do cão não determina totalmente seu comportamento. E que a ideia do “macho-alfa” nunca passou de um mito criado por estudos empíricos equivocados, datados dos anos de 1940. A ideia do macho-alfa entre os lobos, do jeito que Cesar a apresenta, é uma concepção falha, pois todo lobo macho que sobreviver em boas condições até certa idade pode afastar-se do grupo, formar sua própria estrutura familiar e virar um “macho-alfa”. É isto que uma alcateia de lobos significa: uma família.
Estúdio invadido
A autora do artigo, Lisa Mullinax, adestradora veterana credenciada e autora do artigo, apontou principalmente para os seguintes problemas na abordagem de Cesar:
>> Sua concepção de “psicologia canina” é falha desde sua origem. Cães não são lobos (a não ser do ponto de vista genético) e a noção de “macho-alfa” para lobos é baseada em argumentação equivocada;
>> Acreditar que se pode modificar o comportamento de um cão em uma hora é uma ilusão pueril voltada para o espetáculo televisivo, e não para a realidade. A supressão temporária de uma conduta inconveniente não significa mudança real de comportamento no longo prazo.
>> Ele estressa muito os animais; imagine o impacto sobre um pobre animal diante da chegada súbita uma equipe externa de televisão com toda a parafernália eletrônica envolvida numa gravação. É demais para muitas pessoas, que dizer para um cão.
No final de 2012, o Daily MirrorOnline (24/10) mostrou o jardineiro/apresentador da ITV Alan Titchmarsh atacar duramente a Cesar durante uma entrevista. O apresentador do canal inglês denunciou Cesar por usar coleiras de espinhos e choques elétricos nos animais. Millan, impassível, respondeu que as coleiras já estavam nos cães quando ele chegava para gravar o programa. Que ele não usava ferramentas em adestramento no México: “De onde eu vim não existem lojas de animais”, declarou ele ao apresentador britânico. Cesar disse que estava apenas a ensinar os donos de animais a usar as ferramentas de adestramento, nada mais.
Titchmarsh replicou: “Uma coisa é você usar as ferramentas. Mas um dono de animal inexperiente pode machucar o animal.” O famoso adestrador concordou e acrescentou que “é por isso que eu sempre aviso aos donos de animais para procurarem um profissional”. O público e a mídia ficaram divididos: houve protestos na porta do estúdio do jornal e no Twitter, antes e durante o programa. O estúdio da entrevista foi invadido e a segurança teve que ser chamada para por ordem na casa. Mas o que mais chamou minha atenção foi o fato de Cesar jamais ter aceitado as provocações que apresentador inglês lhe fez durante a entrevista, impedindo que a mesma descambasse numa discussão ou pior. O homem é mesmo um mestre zen.
Mais crítico e mais justo
Todas as críticas, entretanto, parecem não ter afetado a credibilidade de Millan junto aos produtores e canais com os quais ele trabalha. Mas ninguém quis correr riscos: o “encantador de cães”, em sua versão original, foi ao ar pela última vez no final de 2012 nos Estados Unidos, e agora, neste ano, Millan apareceu com um programa novo focado na adoção de cães: O melhor amigo do cão, na Natgeo. Nada polêmico, mais comportado e meio sem graça. Estará o grande Cesar a evitar novas controvérsias?
O show de Cesar terminou nos Estados Unidos, mas as temporadas antigas continuam no ar em muitos países. Inclusive o nosso. O programa dividiu público e mídia. Nada foi provado contra Cesar Millan e seus métodos. Mas ele é um homem que fez um show sobre adestramento canino que provocou fortes contestações por parte de adestradores e de gente credenciada para o trato com cães. Que tal agora manter distância da personalidade “dominante” de Cesar, e observarmos mais os animais, durante o programa? Como se comportam durante as gravações? Que tipo de sinais ou humores tentam comunicar? Há traços de estresse em seus comportamentos?
Pessoalmente, não creio na truculência de Cesar com os cães. Mas também não sou ingênuo e não creio que uma hora de adestramento diante de uma equipe de televisão vá mudar o comportamento de nenhum cão pelo resto de sua vida. Por outro lado, expor um cão à gravação de um programa de televisão pelo mesmo período de tempo pode levar o animal a grande estresse. Cães são animais sensíveis, no fim das contas. O show de Cesar já terminou em seu país de origem, mas o debate continua. Junto com reapresentações do programa. Pois tratemos de vê-las agora com um olhar mais crítico e mais justo. Tanto para Cesar quanto para os cães.
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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor