Centenas de livrarias abriram e fecharam as portas no Rio desde o século XVIII, quando os primeiros negociantes portugueses perceberam que havia, na nova capital brasileira, um público crescente para aquele objeto que Monteiro Lobato dizia ser difícil de vender pois “não interessa nem ao nosso estômago nem à nossa vaidade”. Mais que estabelecimentos comerciais, elas foram testemunhas, protagonistas ou vítimas de momentos cruciais da história da cidade, palco da vida literária, termômetro de expansões e crises econômicas, central de intrigas e debate político da Independência à ditadura. Elas são as protagonistas de História das livrarias cariocas (Edusp), estudo de amplitude inédita do jornalista Ubiratan Machado, que funciona a um só tempo como crônica de três séculos e meio do Rio, compilação inestimável de dados e casos pitorescos do mercado livreiro, e tributo à “esperança e capacidade de sonhar de um grande número de profissionais que, com ou sem sucesso, contribuem para a circulação do livro na cidade”.
Fruto de 13 anos de pesquisa, a obra repassa em mais de 500 páginas a trajetória de 660 livrarias, de nomes gravados na história cultural do país – Paula Brito, Laemmert, Garnier, Francisco Alves, Kosmos, São José, José Olympio, Civilização Brasileira, Leonardo da Vinci – a casas de vida breve ou resistentes insuspeitos, como a Real Engenho, único sebo de Realengo, e a Livraria Che, há 20 anos um bastião do marxismo no Andaraí. Organizado cronologicamente, o estudo começa com estabelecimentos onde o livro era só mais um produto em meio a porcelana, chá, bilhetes de loteria e itens insólitos como “uma boa parelha de mulas” ou “o que mais se precisar para celebrar missa”, e chega até 2010, discutindo o avanço das grandes redes, como Travessa, Saraiva e Cultura, a influência da internet e a criatividade de sebos como Berinjela e Baratos da Ribeiro.
Livrarias do Rio têm vida média de cinco anos
Ubiratan revisita eras de ouro do mercado local, como os anos 1930, quando o Centro parecia “um grande bazar de livros” e a Rua do Ouvidor, estalando de vitrines elegantes, era “a maior passarela de tipos humanos da cidade”. Narra também fases críticas, como a década de 1870, quando a capital exaurida pela Guerra do Paraguai viu o número de sebos superar o de lojas de novos, e os anos 1980, dominados por recessão e inflação. E conclui que as livrarias cariocas têm vida média de apenas cinco anos.
– Livrarias são o ramo comercial mais sensível aos altos e baixos da vida econômica do país. Nos períodos de crescimento, de euforia, elas se expandem e se fortificam. Nas horas de crise, elas se retraem mais que outros segmentos de comércio, pois a primeira coisa que as pessoas deixam de comprar são livros – diz Ubiratan.
Carioca nascido em 1941, o autor já demonstrou sua paixão pelo assunto em obras como A vida literária no Brasil durante o romantismo, Dicionário Machado de Assis e A etiqueta de livros no Brasil. Para construir sua História das livrarias cariocas, uniu pesquisas na Biblioteca Nacional a conversas com livreiros tradicionais da cidade, como Alberto Abreu, da Padrão; José Germano, da São José (a mais antiga casa em atividade no Rio, fundada em 1935 e hoje instalada na Rua Primeiro de Março); e Margarete Cardoso, que trabalhou por décadas na Kosmos e hoje é sócia da Carioca Rio Antigo. O estudo é fartamente ilustrado pelo acervo pessoal de Ubiratan: folhetos de publicidade, marcadores de página, etiquetas, papel de embrulho, comunicados, anúncios de jornal e até notas fiscais. Material valioso, geralmente menosprezado por pesquisadores, que abre uma janela para a história do design no mercado livreiro.
A pesquisa meticulosa permite a Ubiratan afirmar que, em 1799, o Rio tinha duas livrarias – e 334 tabernas, 40 cafés e 20 barbeiros. E que o primeiro livreiro da cidade foi muito provavelmente o português Antonio Máximo de Brito, que aparece nos registros da censura imperial em 1775 por importar 20 títulos da metrópole, entre eles A arte de furtar.
Ubiratan localiza na década de 1830 o surgimento de um traço marcante da cidade: a vida literária nas livrarias. Até então, no auge do romantismo, os escritores se reuniam em boticas e saraus, e as livrarias eram dominadas por debates políticos (“Havia, provavelmente, intolerância dos proprietários em relação a literatos”, brinca o autor). Foi com a chegada ao Rio dos livreiros franceses, “cordiais, sagazes, amigos do debate de ideias e da volúvel arte de jogar conversa fora”, que elas se transformaram no que um cronista maldoso da virada do século XX definiu como “laboratórios de desentendimento, onde as línguas de ponta serpenteavam seteando as almas e as reputações”.
A tradição foi cultivada por livreiros que se tornaram protagonistas da vida cultural da cidade. Paula Brito, nos anos 1850, fez de sua loja na praça da Constituição um “centro de estímulo aos escritores nacionais”: divulgava brasileiros com mesmo destaque de estrangeiros, foi o primeiro editor de Machado de Assis e publicou o primeiro romance do país (O filho do pescador, de Teixeira e Sousa). Nos anos 1860, o francês B.L. Garnier ganhou prestígio, e o injusto apelido de “Bom Ladrão” Garnier, com sua requintada e cara livraria, a primeira do Rio a ter vitrines, ponto de encontro de gerações de autores (Machado estimava as conversas que tinha ali com José de Alencar sobre “negócios de arte e poesia, de estilo e imaginação, que valem todas as canseiras deste mundo”).
A política, porém, nunca deixou de movimentar as conversas. Ubiratan faz muitas alusões à militância nas livrarias, da influência de livreiros franceses na Independência até a ditadura militar, quando estabelecimentos cariocas “se tornam frentes de batalha” contra o regime.
Tradição de resistência ao arbítrio
O autor cita o caso da Civilização Brasileira, dirigida por Ênio Silveira a partir dos anos 1950. A editora de esquerda mantinha uma loja na qual vida literária e política se confundiam, atraindo intelectuais militantes como Carlos Heitor Cony, Antônio Callado e Di Cavalcanti. No dia seguinte ao AI-5, em 1968, a livraria na rua Sete de Setembro, decorada com o famoso cartaz com os dizeres “Quem não lê mal fala, mal ouve, mal vê”, foi atingida por uma bomba. Esse e outros golpes nos anos seguintes comprometeram o edifício, que precisou ser demolido em 1971.
– A história de Ênio lembra, com as diferenças de época e estrutura social, a de Evaristo da Veiga (livreiro, jornalista e político de tendências antilusófonas que sofreu atentado a tiros em sua loja nos anos 1820) , consolidando uma tradição de resistência ao arbítrio de século e meio.
Outras casas do século XX ganham destaque no livro, como a José Olympio, que a partir dos anos 1930 reinou na Ouvidor (José Lins do Rego esbravejava por lá e Graciliano Ramos via tudo de um banquinho de madeira, fumando cigarros Selma), e a São José, cujo antigo dono, o incansável Carlos Ribeiro, promoveu a primeira tarde de autógrafos do Rio, em 1954, para Itinerário de Pasárgada, de Manuel Bandeira.
Ainda que os lançamentos tenham se tornado de praxe, e gerado diversos tipos de eventos nas livrarias de hoje, a vitalidade delas vem esmorecendo desde os anos 1960, avalia Ubiratan:
– Não há mais vida literária e nem livreiros interessados em reunir escritores ao seu redor – provoca o autor, que no livro cita um comentário desencantado de Drummond sobre as livrarias dos anos 1980: “Já não são lugares tão simpáticos à convivência dos intelectuais e sim lojas magnificamente equipadas para vender um produto que tem a aparência física de livro, mas que nem sempre se justifica pelo conteúdo, ermo de criação ou novidade legítima”.
Um novo significado para o termo “livraria”
O tom pessimista é matizado nos últimos capítulos, que narram as mudanças do mercado entre 1990 e 2010, quando o número de livrarias da cidade se estabilizou em torno de 225. Ubiratan mostra a expansão da Travessa, de um ponto no Centro para as sete lojas (e abrirá outra em breve, em Botafogo) que formam hoje a “única rede livreira inteiramente carioca”. Comenta que os shoppings levaram para os subúrbios lojas de qualidade comparável às do Centro e Zona Sul. Mas aponta que o termo “livraria” passa a significar, “em definitivo, um ponto de venda de múltiplos objetos, onde com frequência o livro ocupa área inferior aos artigos denominados culturais”. E teme que a concentração do mercado nas megastores e a especulação imobiliária liquidem as pequenas livrarias de rua e, com elas, a diversidade:
– Isso é muito ruim para a cultura, significa discriminação de gêneros literários (a poesia, por exemplo), de ideologias e de autores ainda não consagrados – diz Ubiratan, que tem esperança na capacidade da internet de “abrir caminhos” e considera que, no Brasil, o livro digital ainda não tem impacto grande no mercado.
Ubiratan lembra a sensação de entrar, ainda criança, no sobrado da Francisco Alves, na Ouvidor, ou na sede da Freitas Bastos, na Carioca (“um deslumbramento semelhante ao êxtase dos santos”). Hoje, frequenta a Padrão, na rua Miguel Couto, e a Rio Antigo, na rua Gonçalves Dias, “para buquinar e conversar”, ou Travessa, da Vinci e Cultura para “xeretar novidades”. Com a experiência de quem diz ter conhecido todas as livrarias da cidade desde 1960 (“em Copacabana, Jacarepaguá, Madureira ou Campo Grande”), dá sua definição de qualidade:
– Bons livros, variedade de estoque, renovação constante. Tudo o mais é secundário.
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Guilherme Freitas, do Globo