Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Noticiário padronizado, o ufanismo e a ‘agenda-setting’

O noticiário recente sobre o atentado ocorrido durante a maratona de Boston, nos Estados Unidos – em particular aquele veiculado entre sexta-feira e sábado (19 e 20/4) – acendeu um “alerta vermelho” sobre o processo de apuração das editorias internacionais. Uma análise técnica, com o mínimo de distanciamento da comoção do atentado que deixou um saldo de 3 mortos e 176 feridos, aponta para uma série de questionamentos pontuais que, segundo os manuais de redação dos principais veículos de comunicação, são essenciais para uma reportagem.

No entanto, o que se observa é uma “padronização” do noticiário, altamente contaminado pelo “ufanismo” que envolve o clamor popular contra os atos de terrorismo e que afetaram diretamente a agenda-setting dos principais veículos de comunicação do Brasil e da Europa. Uma pequena mostra desse cenário foi demonstrada, no sábado à noite, pela cobertura dos principais telejornais brasileiros. As reportagens exibidas pelo Jornal da Band, Jornal Nacional, Band News, Globo News e Record News, para citar alguns que, inclusive, contam com correspondentes nos Estados Unidos, apresentaram o mesmo discurso oficial.

A versão divulgada reproduzia somente o sucesso da operação, mesmo sem apresentar nada de concreto capaz de fundamentar as declarações. Pior do que isso, os jornalistas brasileiros, em um processo de “espetacularização” da notícia, reproduziram o “ufanismo” contra o terrorismo sem qualquer preocupação com a apuração.

Primeira notícia foi pelo Twitter

Isso ficou evidente na cobertura do Jornal Nacional, por exemplo, ao descrever a perseguição cinematográfica que se estendeu por mais de 12 quilômetros, contou com mais de 200 disparos, explosão de granadas (segundo os policiais), entre outras coisas, e nenhuma das três equipes da Globo teve a “curiosidade” de conferir o cenário descrito – ou será que a explosão de uma granada não deixa vestígios em ruas e locais públicos?

Outra dúvida no mesmo bloco, a prisão do “suspeito” que está hospitalizado e que foi preso em um barco, ocorreu após um tiroteio de mais de uma hora. Dúvida: o “suspeito” estava ferido, dentro de um barco, foi visto pelo dono da casa e não reagiu, mas diante de dezenas de policiais e militares com armamento pesado, ele resolveu reagir e teve poder de fogo por uma hora (vamos pensar somente na quantidade de munição necessária para isso)?

Mesmo assim, foi amplamente divulgada a comemoração dos moradores e o desespero dos brasileiros que vivem no bairro. Mas, e o desespero dos moradores que moram ou estavam no trajeto da perseguição, de 12 quilômetros até Watertown, onde ocorreram as explosões de granadas e o intenso tiroteio? Será que ninguém viu ou não ficou nenhum vestígio? Essa mesma situação ganhou as redes sociais com muita velocidade e eficiência. Aliás, a primeira notícia foi veiculada por meio do Twitter da polícia norte-americana por meio da mensagem: “CAPTURADO! A caça acabou. A busca terminou. O terror chegou ao fim. E a justiça venceu. Suspeito sob custódia”.

Perguntas básicas

A partir disso, a reprodução foi quase instantânea nos principais portais de notícia como, por exemplo, o do G1: “2º suspeito por atentado na maratona de Boston é capturado vivo nos EUA“.

No entanto, o que ganha mais destaque ainda é que o mesmo conteúdo do noticiário foi disponibilizado pelos principais portais de notícia da Europa, como a BBC, da Inglaterra, com “Suspeito de atentado à maratona de Boston é capturado com vida“, o DW (Deutsche Welle), da Alemanha, “Obama elogia captura de suspeito do atentado na maratona de Boston“ ou RFI (Radio France Internationale), da França, “Polícia americana prende suspeito de atentado na maratona de Boston“. Para quem está acostumado ou conhece o cotidiano de uma redação, a justificativa é que a fonte de informação de todos esses veículos sejam as mesmas agências internacionais como Reuters, Associated Press, entre outras.

Por outro lado, fica a dúvida sobre a repercussão ou “reprodução” indiscriminada dos fatos sem o menor questionamento sobre pontos básicos da investigação, que vão dos critérios de reconhecimento ao poder de reação dos suspeitos. A única exceção neste universo de notícias, entre as que tive acesso, foi na rádio CBN durante um boletim em que uma correspondente nos Estados Unidos se disse constrangida em fazer as perguntas básicas sobre a ausência de provas concretas diante da euforia da polícia e da população de Boston, mesmo tendo dúvidas sobre o procedimento adotado para o reconhecimento e ação de caçada aos suspeitos.

A possibilidade de uma “barriga” mundial

Não quero parecer insensível em relação aos fatos, principalmente, em respeito às vítimas e seus familiares, mas do ponto de vista jornalístico essa ação toda representa um grande risco social em razão da proporção que tomou e ainda pode tomar.

O primeiro fator é a força dessa agenda-setting mundial, que estimula comportamentos e juízos de valor em momentos de crise e de forte apelo emocional. De acordo com José António Afonso Santana Pereira, da Universidade de Lisboa, em O Poder da Imprensa (2007) [disponível aqui], a credibilidade da imprensa interfere diretamente na construção da realidade da população e em seus valores sociais.

“Por sua vez, a percepção de importância relativa de um determinado tema é influenciada pelos media, uma vez que as pessoas, em vez de realizarem uma análise mais complexa e cognitivamente mais exigente, utilizam os meios de comunicação social como base para a realização destes juízos de importância” (PEREIRA, 2007, p. 34).

Outro fator de reflexão envolve o fato de que a imprensa, principalmente a norte-americana, é passível de erros, como demonstra a história recente. No Brasil, o caso clássico envolve a Escola Base, em 1994. Nos Estados Unidos, temos os clássicos de jornais de credibilidade como o New York Times e o USA Today envolvidos em caso de manipulação das informações e a publicação de históricas fantasiosas.

Será que toda essa falta de questionamento não representa, no mínimo, uma queda na qualidade da informação dessas coberturas internacionais? Será que a possibilidade, até remota, mas possível, de ser uma grande “barriga” mundial não foi questionada em nenhuma redação? Será que esse sentimento de “ufanismo” contra o terror não pode gerar um sentimento de “caça às bruxas” – “atiro primeiro depois pergunto” ou “é culpado até que se prove ao contrário” – como sendo situações corriqueiras onde o “fim justifica o meio”?

Enfim, acredito que tudo o que foi narrado pelo noticiário e refletido neste espaço acabou deixando mais dúvidas do que certezas. Se isso está acontecendo, está na hora de ficar atento ao “alerta vermelho” do noticiário mundial.

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Angelo Sastre é jornalista e professor universitário