Recentemente, importantes publicações – nos Estados Unidos e no Brasil – dedicaram matérias de capa a avanços referentes ao casamento gay. Metade da tiragem da Time norte-americana ilustrava, na capa, um beijo entre duas mulheres; a outra metade da tiragem foi dedicada a um beijo entre dois homens. Na revista Época, edição São Paulo, a capa (versão única) foi integralmente dedicada a uma “sugestão de beijo” entre duas mulheres jovens, bonitas, maquiadas, editadas à perfeição.
Em reportagem do dia 28 de março de 2013, a Folha de S.Paulo noticiou: “Revista Time publica capa em defesa do casamento gay nos EUA”. A edição da revista Time, com duas capas (contendo beijos de casais do mesmo sexo), foi lançada no mesmo dia contendo a headline: Gay Marriage already won.
Não obstante carreguem uma mensagem enfática, visões discriminatórias de gênero persistem nas representações das capas da Time.
Agressividade implícita
No dizer de Jutta Weldes e Mark Laffey (1997) [Laffey, M. & Weldes, J. (1997). “Beyond Belief: From Ideas to Symbolic Technologies”. European Journal of International Relations, 3(2), p. 193-238], representações são “tecnologias simbólicas” – sistemas intersubjetivos de representações e de práticas que produzem outras representações. Nesse processo, perpetuam uma determinada narrativa sobre a vida em sociedade. O poder das representações não advém apenas do seu uso por agentes socialmente poderosos – mas de sua capacidade de fixar o mundo social através da definição social (indexação) dos agentes. Nesses termos, representações estão inextrincavelmente envolvidas na produção e consecução de interesses.
Por um lado, as personagens das capas parecem reais. Remetem a pessoas que você poderia encontrar na rua, sem toneladas de maquiagem. O tom sóbrio da caracterização é reforçado pelo uso de tons de preto contra o fundo branco. Porém, o contraste entre as representações de cada capa produz uma sensível divisão entre os sexos.
Por um lado, as mulheres da esquerda estão em pose beatífica, num beijo idealizado que invoca a Renascença, se desvelam no amor como elevação espiritual e entrega. Seus olhos se entrecruzam no fechar. Ao passo que os homens da direita parecem desconfortáveis, atravancados forçosamente em uma agressividade implícita, à medida que encenam a tomada de posse do homem de óculos pelo homem barbudo (cada qual uma representação de diferentes estereótipos do homossexual masculino).
Em outra concatenação de estereótipos, a revista Época São Paulo, na edição de 24 de março de 2013, apresentou reportagem de capa versando sobre “Casamento Gay – como a conquista desse novo direito civil afeta a vida de homens e mulheres homossexuais”.
O contexto se torna fetiche
Por um lado, a capa escolhida pela Época São Paulo (adiante falaremos sobre essa escolha) mantém o olhar beatífico, extático da mulher posicionada à direita. Mas o faz ressaltando o contraste entre a pele branca com várias camadas de maquiagem, a sombra roxa dos olhos e o vermelho batom dos lábios à espreita. Pela esquerda, uma das mulheres fita a câmera (esta mulher se posiciona e confronta a expectativa da/o leitor/a).
As representações do amor feminino entre iguais da Época São Paulo parecem ambivalentes. Reiteram, por um lado, o caráter beatífico, o êxtase do amor que é associado à figura feminina como estereótipo de passividade passional. Por outro lado, a possibilidade de autonomização e questionamento do olhar trazido pela mulher da esquerda. Além disso, a insinuação de um beijo, em sutil distanciamento frente às capas da Time que encenam o ato. Porém, o que escapa ao olho da câmera – tornado obsceno – na capa da Época São Paulo é a ausência de uma capa masculina referente à mesma reportagem. Conforme mencionado em parágrafo anterior, tratou-se de uma escolha da revista (uma capa masculina foi feita em paralelo à capa feminina e, posteriormente, foi descartada).
Essa ausência estrutura as representações contidas na capa em termos de uma audiência específica, afastando-as da mensagem de capa referente aos “homens e mulheres homossexuais”. A capa torna-se chamariz para uma audiência heterossexual masculina, agregando à maquiagem e ao uso contrastante das cores tons de fetiche (o lesbianismo como fetiche machista no Brasil). O olhar da mulher da esquerda, ao se desviar da mulher da direita, se fixa no leitor. As mulheres retratadas se encaixam com desenvoltura no padrão de beleza da indústria heterossexual; o que poderia ser um momento de intimidade entre elas transborda. O olhar da modelo à esquerda confere à presença do observador a garantia do encontro – elas não estão ali por vontade própria ou em situação de autonomia. Os queixos não se inclinam para o beijo, mantendo o suspense no ar. O contexto se torna fetiche, o que não é visível se torna o centro da imagem e o que deveria ser visível fica oculto.
Repetição incessante de uma representação
Diferentemente da discussão acerca do lugar da mulher na sociedade, já com extenso passado, a discussão sobre a homossexualidade é mais recente como parte integrante da agenda de direitos humanos – mas herda o mesmo estranhamento e oposição radical que encontraram as mulheres até o século 20. A mídia, como agente social, age em meio a movimentos conflitantes. Por vezes, tenta uma posição conciliatória, de acompanhar a evolução dos debates e embates sociais, mas sem desagradar profundamente facções conservadoras, que se veem ofendidas pela crescente visibilidade atribuída a parcelas da sociedade dantes menosprezadas – não apenas mulheres e homossexuais. No caso do Brasil, tentativas de conciliação são visíveis em uma mídia mais concentrada do que em outros países – o que amplifica as polarizações, bem como reações de setores desagradados (como na polêmica referente à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados).
A resistência que ambas as revistas encontram em segmentos conservadores da sociedade, portanto, não denota necessariamente uma aproximação integral ou identificação completa das publicações com a audiência (supostamente homossexual) às quais teriam visado “representar” (vocalizar, empoderar). O caráter polêmico da agenda veiculada por publicações respeitadas, de larga circulação, se faz visível na própria tessitura das matérias, na concatenação das representações e “representados”.
O tom é de cauteloso alerta – na cor amarela dos caracteres da capa da Time, em contraste com a moldura vermelha da capa (em chave freudiana, esse uso de cores traduz interdição mais do que endosso). No caso da capa da Época São Paulo, o uso do vermelho para a headline reforça com ainda maior veemência a proibição. O que é manifestamente dito carrega as tintas de interdito – no espaço de disputa social, isso equivale a ocultar a visibilidade de dado segmento da sociedade. Essa performance das revistas se afasta polarmente da ideia de que “homens e mulheres homossexuais” sintam-se, de fato, representados (vocalizados, empoderados, dignificados) ao passo que são apresentados (de forma questionável) através de representações. Quando a circulação da produção cultural referente a certo conjunto de indivíduos é limitada e desvalorizada, o pouco que é oferecido torna-se “fato”; fomenta um ciclo que dita a posição que essas pessoas ocupam para o observador, bem como suas próprias autoimagens. A repetição incessante de certo tipo de representação é uma prática social relevante que produz e delineia estereótipos, abundantes em questões relativas ao gênero.
Manchete aponta avanços
A capa da Época erotiza (modelos bonitas que se insinuam uma para outra e em seguida, para a câmera), ao passo que a da Time idealiza (um casal maduro sem volúpia), figuras femininas. O problema dos estereótipos não reside apenas no contraste entre desejo encarnado e amor idealizado, mas igualmente (e fundamentalmente) na ausência da capa masculina. O desvio do olhar, que poderia encabeçar uma postura crítica, se aproxima de uma modulação aquiescente; o desejo da representação se descola do contexto dos lábios para o voyeurismo do olhar que centraliza a cena (para Lacan, um “olhar soberano” que se debruça sobre figuras passivas).
Esse tipo de modulação estereotípica – na qual figuras femininas são trazidas para o background do desejo masculino – se torna ainda mais marcante no relato do diretor de arte da Época São Paulo, Marcos Marques:
“No ensaio fotográfico, disse para o Christian que não poderia ter beijo, apenas uma sugestão de beijo, pelo simples fato de a foto ser feita com modelos menores de idade que não eram homossexuais.”
Nessa avalanche de estereótipos o processo de edição foi “disciplinando” e silenciando as figuras femininas, ao passo que as figuras masculinas foram literalmente limadas de cena. Esta performance (que censura um beijo gay masculino) se coaduna com extensos precedentes na mídia brasileira (na própria TV Globo, associada da revista Época São Paulo). Mas o faz sob um headline que aponta avanços para “os homens e mulheres homossexuais”.
Capa não utilizada, revista Época São Paulo, edição de 24 de março de 2013
Capas delimitam divisões de gêneros
Na seleção dos modelos que ocupariam a capa a edição censurou não apenas o beijo masculino, mas caracterizações femininas que prescindissem da maquiagem e encenação fetichista. A capa masculina censurada também faz uso do distanciamento entre os lábios (sem maquiagem) dos modelos; o modelo à direita também fita o olho da câmera. Ao passo que retoma estereótipos da capa da Time (a barba), o beijo gay masculino permanece em contraste “velado”: a distância entre lábios sugere menos o beijo e mais a hesitação, a ocultação da capa implica ruptura com a expectativa soberana do olhar da audiência. No lugar do beijo “velado” masculino, é preciso “sugerir” o beijo gay feminino.
Em paroxismo notável, a capa da Época São Paulo sobre o casamento gay não confere voz aos representados – os gays. E mais. A representação dos objetos sexual no background do desejo masculino está longe de ser específica da homossexualidade feminina. O que se observa nesta capa é uma reiteração da figura feminina – no contexto de relacionamentos lésbicos – como fetiche do homem heterossexual. A prova disso é a censura à tentativa de dedicar metade das capas a um beijo entre homens. A “sugestão de beijo” entre duas mulheres é muito menos ofensiva aos olhos do conservadorismo, no dizer de Simone de Beauvoir [Beauvoir, S. (1949, 2011). The Second Sex. New York, Vintage Books, pp. 420]:
“A man is more irritated by an active and autonomous heterosexual woman than by a nonaggressive homosexual one; only the former challenges masculine prerogatives; sapphic loves in no way contradict the traditional model of the division of the sexes: in most cases, they are an assumption of femininity and not a rejection of it.”
Uma vez que a homossexualidade feminina não tem lugar como performance que independa da figura masculina machista, as representações da capa descambam para o fetiche, especialmente adorado pela indústria de pornografia.
As capas da revista Time ecoam obliquamente o conservadorismo de Época São Paulo. Apesar de concederem uma visibilidade muito mais concreta à causa representada, também não logram a equidade que a oposição estaria inclinada a enxergar. Refletem posicionamentos de normalidade que delimitam as divisões de gêneros que regem as relações sociais, apesar de abraçarem a quebra de papel que seria a homossexualidade.
Performance política com viés conservador
Como explorado por Beauvoir [ibid], a ideia de gênero corresponde a um papel que o indivíduo deve cumprir baseado em sua construção biológica, e neste papel incluem-se o gestual corporal, traços de comportamento, o vestuário e a opção sexual. O beijo feminino retratado pela Time retrata duas mulheres com trejeitos tipicamente femininos, em um ambiente claro e iluminado, com toda a suavidade e sensibilidade normativamente atribuída às mulheres. Ao passo que o beijo masculino, entre dois homens com aparência e trejeitos tipicamente masculinos, tem lugar num fundo mais escuro e forte do que o anterior. A quebra com papéis é parcial.
Entre estereótipos mais e menos sutis, a mensagem de que o preconceito está vencido parece wishtful thinking, senão ironia. A produção cultural feita por, e sobre gays, por volumosa que seja, dispõe de pouco espaço (e este carece de dignidade) no emaranhado de representações. A representação de romances entre mulheres cai, via de regra, num lugar-comum que coloca pelo menos uma delas num processo de descoberta de uma bissexualidade latente, ou em fuga de um relacionamento prévio com um homem. A produção sobre homossexualidade masculina, por sua vez, também via de regra, não concede destaque ao relacionamento entre os homens por si mesmos, mas aos desafios enfrentados por eles em relação à sociedade. A homossexualidade masculina é uma afronta à sociedade, a homossexualidade feminina é desacreditada como elemento independente.
Nas capas – como na produção cultural sobre homossexualidade – dificilmente encontraremos personagens que transitem entre as atribuições de gênero (homens com trejeitos femininos, mulheres com trejeitos masculinos, transexuais ou travestis) em situações da vida cotidiana, que não tenham como foco as dificuldades enfrentadas pelo indivíduo em questão, ou que não o coloque como personagem cômico ou secundário em relação ao roteiro central. A homossexualidade jamais é colocada como situação ordinária ou normal; e o principal aspecto sobre os homossexuais acaba sendo a homossexualidade, colocando à sombra todas as outras nuances de personalidade.
Como repositório de representações, a imprensa ocupa papel importante na negociação da posição de segmentos populacionais negligenciados nas sociedades. Padrões de normalidade, que vão resultar em maior aceitação e igualdade no espaço social para todos os cidadãos, perpassam a comunicação em massa. A retratação do casamento gay na mídia (brasileira, norte-americana), nesse caso, segue como performance marcadamente política e com viés conservador. Mesmo em matérias dedicadas ao tema e auferindo destaque no conjunto das matérias das respectivas publicações, as/os principais interessados/as continuam com suas vozes silenciadas.
Conquistas sociais parecem menos sólidas
O estranhamento com relação à homossexualidade, gêmeo do estranhamento que recaía sobre as mulheres algumas décadas atrás em sua luta por direitos sociais, deixa traços nítidos na abordagem da imprensa, especialmente no Brasil. Através da análise da imprensa e dolócus simbólico por ela concedido às minorias podemos delinear a posição da sociedade em questão com relação a determinado assunto; o espaço e a influência exercida por movimentos sociais e por sua oposição, bem como prospectos de posições futuras e possibilidades de avanços produzidos por esses movimentos.
Nesse sentido, conquistas sociais parecem menos sólidas a olho nu. Aqui e nos EUA. Computando as representações, o conservadorismo segue vencendo – Com desníveis notáveis. As headlines da Time aparecem na cabeça dos modelos – pensamentos, convicções? As da Época São Paulo, nas bochechas – qual tatuagens fossem, abaixo dos olhos (do olhar “soberano” do leitor). No Brasil, o debate prossegue nesses termos.
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Thais de Bakker Castro, Carlos Frederico Pereira da Silva Gama e Ariane Cristina Gervásio da Silva são, respectivamente, graduanda em Relações Internacionais na PUC-Rio, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio, pesquisador do CNPq e autor de Modernity at Risk: Complex Emergencies, Humanitarianism, Sovereignty(2012), ed. Lambert Publishing (com Jana Tabak Chor) e graduada em Jornalismo pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH), com pós-graduação em Estudos Diplomáticos pelo Centro de Direito Internacional (Cedin). Atualmente é jornalista na TV UFMG