O assassinato de uma dentista em São Bernardo do Campo (SP), na quinta-feira (25/4), reforçou a mais recente campanha a favor da redução da maioridade penal e/ou de punição mais severa e longa a menores que cometem crimes bárbaros com este, em que a vítima foi queimada viva porque não tinha dinheiro suficiente em sua conta. Como se sabe, foi um adolescente de 17 anos que assumiu a responsabilidade por ter tocado fogo na mulher.
A campanha, retomada sempre que algum crime de grande repercussão é cometido por – ou tem a participação de – adolescentes, está na ordem do dia desde que um jovem universitário foi assassinado ao chegar em casa, em São Paulo, na noite de 10/4, por um rapaz que estava a três dias de completar 18 anos e que disparou aparentemente sem motivo, depois de lhe levar o celular. O episódio provocou passeatas a favor da redução da maioridade penal e o governador do estado, Geraldo Alckmin, logo veio a público anunciar seu projeto de emenda constitucional para permitir o agravamento da punição a adolescentes que cometessem esse tipo de crime. Depois do assassinato da dentista, voltou à carga: “Lamentavelmente mais um menor, a gente tem visto menores em crimes extremamente hediondos (sic)”.
A notícia de fatos como esses, que chocam pela extrema crueldade ou pela aparente gratuidade flagrada por câmeras de segurança, tende a provocar no público a ideia de que este é o padrão de comportamento de jovens delinquentes, que precisam ser contidos a qualquer custo. Os próprios jornais contribuem para essa percepção, sobretudo quando aproveitam para fazer pesquisas no calor da hora: assim, a Folha de S.Paulo não teve dificuldades em confirmar – e, subsidiariamente, alimentar – o clamor pelo endurecimento da lei ao realizar pesquisa logo após o assassinato do jovem universitário, anunciando os 93% de apoio à proposta de redução da maioridade penal para 16 anos no alto da primeira página da edição de 17/4.
Profecia autocumprida
Bem a propósito, o diretor do DataFolha comentou: “Há um acúmulo de eventos dessa natureza, que tiveram grande repercussão e geram sensação de impunidade que influenciam na opinião da população”.
A profecia autocumprida da pesquisa facilita a suíte, em 18/4: “Redução da maioridade opõe analistas e sociedade”, ao lado da foto em que os pais do jovem morto recebem a homenagem de Neymar, no gramado da Vila Belmiro, antes do início de um jogo do Santos na Copa do Brasil.
Claro: os “analistas” – que são frios, racionais, insensíveis e distantes – não estão em sintonia com a “sociedade” – ou, melhor dito, com o “senso comum”, que sofre com os eventos da vida prática. E a tendência, como se sabe, é valorizar a “voz do povo”, sem questionar como essa voz é modulada e como ela pode equivocar-se, bastando entre tantos exemplos o da eleição de Adolf Hitler para chanceler da Alemanha, num contexto histórico que nenhum de nós deveria ignorar.
Nesse quadro, a abertura de espaço a críticas ao recrudescimento punitivo acaba sendo inócua, porque não há qualquer disposição pública para o debate: as posições já estão cristalizadas e só diferem no grau de radicalização da punição a ser aplicada.
A negação do debate
Por isso não surpreendem os comentários contestadores, irônicos e muitas vezes grosseiros ao depoimento de uma jornalista que ousou expor sua história de humilhação vivida ainda na década de 1970, diante de um menor que a estuprou quando ela era estudante e estagiava num escritório. O relato ganhou página inteira na edição da Folha de domingo (28/4). A intenção do jornal, aparentemente, era mostrar esse “outro lado” da vítima que, apesar da violência, rejeita o apelo ao endurecimento da lei:
“O principal argumento dos defensores da redução da maioridade penal pode ser sintetizado em uma frase: ‘Queria ver se fosse com você’. Pois foi com a jornalista Luiza Pastor, 56, casada e mãe de uma menina. Com apenas 19 anos, Luiza, ainda estudante da USP, foi estuprada por um garoto menor de idade. Experiência tão traumática, entretanto, não a transformou em defensora da redução da maioridade penal”.
Ninguém pareceu ter percebido a referência ao histórico do rapaz, filho de mãe prostituta e pai desconhecido, criado por uma avó evangélica “que tentara salvar-lhe a alma à custa de muitas surras”. Nem se fez muito caso dos motivos que levaram a vítima a não procurar a polícia, num tempo de ainda intensa repressão política. A enxurrada de protestos e acusações foi impressionante, embora previsível: “covarde”, “apresente ele para sua filha”, “se tivesse sido queimada viva, assassinada, mutilada, cegada, talvez não fosse tão complacente”, “com a maior certeza possível ela deve ter adorado, e pedido mais”, além das várias menções à famosa “Síndrome de Estocolmo”. Não faltaram, tampouco, críticas à própria Folha pela “matéria tendenciosa”, acusando o jornal de ir contra a vontade da maioria.
É a reação automática, irrefletida, tão comum nas caixas de comentários dos sites noticiosos ou nas redes sociais, que mata qualquer possibilidade de discussão. É como se essas pessoas não tivessem condições de raciocinar fora de sua lógica já estabelecida, e então se aproximassem de qualquer texto já armadas de suas convicções.
O articulista Hélio Schwarstman padeceu do mesmo problema: como ainda estava “recebendo ofensas eletrônicas” pelo artigo publicado na semana anterior (12/4, “Maioridade penal“) nos estreitos limites de sua coluna na página 2, ele resolveu voltar ao tema no dia 18/4 (“Os menores e as penas“) valendo-se “do mais generoso espaço proporcionado pela internet”. Não adiantou muito, a julgar pelos poucos comentários, em geral desabonadores, a começar pelo primeiro, que o aconselhava a exercitar o dom da síntese.
“Emoção e racionalidade”
No mesmo dia em que saiu a pesquisa do DataFolha, o articulista Marcelo Coelho (“No país das masmorras“) questionava os argumentos dos que, como Schwartsman, deploravam o clima emocional em torno de tema tão delicado e complexo quanto aquele. No entanto, não se trata apenas de alertar para o equívoco de se legislar com o fígado, mas de mostrar que as reações emocionais – do público, em seus comentários – partem de prejulgamentos e resultam na inviabilização de qualquer debate.
Ao mesmo tempo, a chamada de capa para o artigo era muito significativa: “Quem pede leis rigorosas quer o fuzilamento”. E era assim a conclusão:
“Quem pede leis mais rigorosas simplesmente usa um eufemismo: queria que todo criminoso fosse fuzilado. Quem é contra leis mais rigorosas sabe que, na verdade, as que existem são outro eufemismo. Falam em ‘instituição correcional’, em ‘presídio’ , quando deveriam dizer ‘campo de concentração’, ‘pocilga’ ou ‘masmorra’.
“Antes, dizia-se ‘Carandiru’”.
Tentar averiguar se a “sensação de impunidade” sugerida pelo DataFolha tem alguma base concreta poderia ser objeto de outra pesquisa, decorrente de uma desejável série de reportagens que mostrassem a trajetória desses menores capazes de cometer barbaridades, em que contexto social vivem, como funcionam as tais “medidas socioeducativas” nas instituições às quais são recolhidos. Mas isso não parece estar na pauta.
Há quem procure aparecer como a voz sensata a equilibrar “emoção e racionalidade” nesse turbilhão e defenda a redução da maioridade penal associada a um “mutirão de inclusão social”, como faz o professor Carlos Alberto di Franco em artigo (“Criminalidade – emoção e racionalidade“) no Estado de S.Paulo de segunda-feira (29/4). Cita o projeto do governador Alkmin sobre a “possibilidade de um juiz determinar, após avaliação multiprofissional, a internação de até oito anos para jovens que cometem crimes”. Naturalmente ninguém indaga sobre a existência e os métodos dessa competente equipe multidisciplinar, capaz de aferir cientificamente quem serve e quem não serve para o convívio social; tampouco é preciso muito esforço para concluir que, uma vez trancafiados os jovens bárbaros – uma vez aplacado o clamor público por justiça, ou vingança –, o “mutirão de inclusão social” trilhará o caminho habitualmente reservado às boas intenções.
Ao mesmo tempo, a própria menção à inclusão social sugere que a delinquência juvenil é coisa de pobre, de quem não teve educação e formação adequadas. Não se sabe da origem social dos assassinos da dentista: consta que um dos menores envolvidos era egresso da Fundação Casa, mas o líder do grupo que vinha roubando consultórios, um rapaz de 21 anos, pilotava o Audi da mãe. A propósito, a reportagem do Fantástico de domingo (28/4) refaz o percurso da quadrilha na sequência de assaltos, informa inclusive o ano de fabricação do carro de luxo – 2003 –, mas aparentemente não se interessa em conversar com a mãe do rapaz.
A seletividade da punição
Em 20/4, o advogado Túlio Vianna escreveu artigo no Estado de S.Paulo (“Maioridade seletiva“) apontando o alvo e as consequências dessa mais recente onda de radicalização punitiva:
“O público-alvo dos projetos de redução da maioridade penal é o adolescente pobre que pratica crimes patrimoniais ou de tráfico e uso de drogas. Desses adolescentes, 62% vivem em lares com renda familiar inferior a dois salários mínimos. É esse adolescente marginalizado que a sociedade brasileira quer colocar no cárcere, já que nosso poder público em sua incompetência não cumpriu seu dever constitucional de colocá-los nas escolas.
“Resta saber se essa mesma sociedade que clama hoje pela redução da maioridade penal vai aceitar amanhã que seus filhos também sejam presos pelas brigas nas quais se envolverem na saída dos colégios; ou pelos insultos aos professores e colegas nas redes sociais; ou pelas violações de direitos autorais na internet; ou pelo uso de drogas; ou por dirigirem sem habilitação. Ou será que a proposta seria punir apenas os adolescentes pobres?”
Mais uma vez, não é preciso muito esforço para concluir que os filhos da classe média e, menos ainda, os da burguesia, embora sejam perfeitamente capazes de atos bárbaros – lembremos do índio Galdino, queimado vivo num abrigo de ônibus em Brasília – ou de irresponsabilidades que resultem em tragédias – recordemos a morte da menina atingida por um adolescente que pilotava um jet ski em Bertioga (SP) –, esses meninos bem nascidos muito dificilmente cairão nas malhas desse sistema, exatamente porque a lei não é feita para eles. E porque suas famílias podem arcar com as despesas dos bons escritórios de advocacia.
Nada disso, entretanto, altera o discurso de quem está convicto da eficácia do aumento da carga punitiva “para ricos e pobres, indistintamente”, como forma de apaziguamento social. Os fatos – e o fato de que, historicamente, apenas os pobres são punidos – são o que menos interessa.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)