Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Filme traz à tona debate sobre uso de imagem

O documentário Paulo Moura – Alma Brasileira, que estreou na sexta-feira (3/5), foi um dos principais desafios na carreira do cineasta Eduardo Escorel, montador de marcos do cinema brasileiro como Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha; Cabra Marcado para Morrer (1985), de Eduardo Coutinho; e Santiago (2007), de João Moreira Salles. Um mês antes do início das gravações, em 2010, o grande instrumentista retratado no longa morreu, em virtude de um câncer linfático. A ideia de um documentário baseado em filmagens com o músico teve que se restringir a um longa com basicamente imagens de arquivo.

Mas os problemas do cineasta estavam apenas começando. Muito do material existente não pôde ser utilizado por falta de liberação pelos detentores dos direitos de imagem do músico – ou por “poderes mesquinhos”, nas próprias palavras do diretor. “O filme foi prejudicado e demorou a ser concluído por causa de uma ação deliberada de oposição ao filme”, diz Escorel, preferindo não citar nomes ou dar detalhes sobre o caso. “Em muitos momentos, achei que não conseguiria concluir o filme. Mas desistir seria uma segunda morte para o Paulo. Algumas pessoas me cederam o direito de exibir imagens, mas depois mudaram de ideia. Outras se recusaram a ceder porque se opunham ao filme. E mais outras pediram valores [pelos direitos] muito acima do mercado.”

Ele diz acreditar que sua obra só foi possível porque Moura havia autorizado a filmagem por escrito pouco antes de morrer. Ainda assim, o filme não pôde contar com 15 minutos que o diretor julgava importantes para o projeto.

“Um tema muito delicado”

As dificuldades de Escorel não são caso raro. Vários diretores no Brasil veem a realização de seus projetos ameaçada devido a dificuldades impostas pelos direitos da personalidade – divulgação da imagem física, do nome ou da biografia de alguém.

De acordo com a legislação brasileira, a imagem de uma pessoa (seja em movimento ou em fotografias) só pode ser incluída em um filme se ela própria autorizar seu uso em documento. No caso de alguém já morto, a liberação (ou não) dos direitos cabe aos seus herdeiros (o cônjuge e parentes em linha reta, como filhos, pais, netos e bisnetos – os que estiverem em grau mais próximo), pelo menos até cair em domínio público, 70 anos após sua morte. Negociações podem envolver cifras consideráveis, chegando a inviabilizar projetos.

O diretor João Jardim já chegou a mudar radicalmente um de seus projetos para evitar tais questões. Seu longa Amor? (2011), sobre histórias de relacionamentos que envolvem violência, foi idealizado como um filme em que as próprias pessoas dariam seus depoimentos. Mas para fugir de imbróglios judiciais, Jardim fez o filme em formato “docudrama” – atores interpretam esses depoimentos verídicos. “A ideia inicial era um documentário. Mas enquanto eu fazia a pesquisa, fui vendo que não seria possível. Os depoimentos eram muito fortes”, diz Jardim. “Se optasse por mostrar as próprias pessoas na tela, falando de intimidades com seus parceiros, estes poderiam alegar que aquilo iria contra eles. Eu teria então que consultá-los e pedir autorização, sob risco de eles negarem ou fazerem censuras aos depoimentos. É um tema muito delicado.”

Famílias são rígidas

A Constituição brasileira garante a defesa da liberdade de expressão dos indivíduos, mas também defende a privacidade dos cidadãos. “No artigo 5, inciso 10, é defendido o direito de cada pessoa à incolumidade da sua vida privada, sua honra e imagem, que são atribuições ligadas à personalidade do indivíduo. Mas também no artigo 5, inciso 9, fica dito que é livre expressão da propriedade intelectual”, afirma o advogado Rodrigo Salinas. “Até onde vai a liberdade artística de uma pessoa e onde ela esbarra com o direito das pessoas que aparecem nesse produto? Esses conceitos ficam misturados.”

Segundo Salinas, em muitos casos as dificuldades de estabelecer os limites entre uma coisa e outra são tão grandes que somente um juiz pode decidir. “Ele pode entender que uma obra sobre a vida de uma pessoa pública pode ter mais relevância que os danos causados pela sua perda de privacidade e permitir que sua vida seja retratada em uma obra. Ou achar que fere sua honra e não permitir”, diz.

Algumas famílias de pessoas públicas são rígidas em relação à questão. Familiares do artista plástico Di Cavalcanti (1897-1976) não permitiram que o documentário Di (1977), de Glauber Rocha (1939-1981), fosse lançado oficialmente – o filme pode ser visto no YouTube. Herdeiros de Guimarães Rosa (1908-1967) e Elis Regina (1945 – 1982) também já vetaram pedidos de cineastas.

Herdeiros têm direito sobre a obra

A família de Elis só recentemente aprovou um longa sobre a vida da cantora, que será dirigido por Hugo Prata. Mas a biografia mais conhecida da gaúcha, Furacão Elis, da jornalista Regina Echeverria, foi lançada em uma época (1985) em que a prática de pedir autorização não era tão institucionalizada. A obra teve nova edição no ano passado. “Eu até venderia os direitos do meu livro. Mas como o cineasta vai fazer o filme se não tiver o direito de imagem liberado pela família?”, diz Regina, referindo-se a um outro projeto de filme sobre Elis.

Desde o novo Código Civil, que entrou em vigor em 2003, ficou mais claro que os herdeiros têm direito sobre a personalidade de um parente morto. Mas essa situação pode mudar em breve. Tramita na Câmara o projeto de lei nº 393/2011, do deputado federal Newton Lima Neto (PT-SP), que discute “a afastabilidade da exigência de autorização para a elaboração de obras biográficas sobre personalidades notoriamente conhecidas”. Isso tornará possível a publicação de livros e realização de produtos audiovisuais não autorizados, sem prejuízo de sanções futuras por mau uso ou ofensa à memória do retratado.

Essa regra é usada nos EUA e Reino Unido. “Os herdeiros devem ter direito sobre a obra do artista, mas acho errado quando é sobre sua história de vida”, diz Regina Echeverria, que se dedica a uma biografia sobre a Princesa Isabel (1846-1921). “É domínio público! Ninguém aguenta mais ficar dependendo da família das pessoas.”

******

Bruno Ghetti, para Valor Econômico