Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Imprensa e escola omissas

Deu no jornal, nos dias 30 de abril e 1º de maio: uma aluna dá uma facada em colega em escola de ensino médio na periferia de São Paulo. Só que não deu bem assim. Na Globo, pernambucanaesfaqueia colega em São Paulo. “Atingido pela menor, o aluno de 16 anos sofreu…” Ela é menor, ele é aluno. O Diário do Grande ABC deu a manchete “Adolescente vítima de Bulling (sic) esfaqueia colega na escola”, informando que ela havia chegado há pouco tempo de Pernambuco e que “o adolescente tirava sarro dela por conta do sotaque”. O Jornal do Brasil também sugere o motivo do crime na manchete: “Alegando bullying, aluna esfaqueia colega dentro de escola em SP”. Também foi um dos únicos a anunciar que a escola programou “uma reunião na unidade de ensino para alertar aos pais sobre casos de violência e bullying”. Infelizmente, nenhum dos dois veículos menciona que ela é negra, um dos dois motivos do bullying.

A Folha de S.Paulo repete a manchete, “Adolescente esfaqueia colega dentro de escola em Ribeirão Pires (SP)”, sem usar o “bullying”, indicando que o motivo seria apenas ela se sentir “ofendida” pela perseguição dele “por ter sotaque nordestino”. O Diário de Pernambuco, naturalmente, deu manchetes de “aluna pernambucana”. O Diário foi o único veículo para quem a mãe da vítima/ agressora, residente em Ribeirão Pires, concordou em dar informações [áudio disponível aqui]. A família viera para a região metropolitana de São Paulo há apenas três meses. A mãe se surpreendera com a facilidade com que a jovem fez amizade, várias colegas vinham regularmente à casa: “Eu fazia bolinho pra elas”. E conta que o rapaz vinha há tempos perseguindo ela, chamava-a constantemente de “nega recalcada”, escondia apostila e trabalhos da jovem, além de um álbum de fotos que ela levara para a escola. E, cada vez que ela falava algo, “tirava sarro” do sotaque “de nordestina”.

Ela é “menor”, “pernambucana”, “jovem negra” ou, na melhor das hipóteses, “adolescente”. Ele é “a vítima”, “o colega”, “menino (!) [que] leva facada no peito”. Nada ficamos sabendo sobre o rapaz: por que não o “jovem paulista branco”?

Temos lei para isso

Para nossos jornalistas, assim como para a maioria dos brancos “sudestinos”, ser branco é o “normal”. Para muitos, ser paulista também. A agressão verbal de chamar (e continuamente) alguém de “nega recalcada” já é motivo, por si só, de processo criminal. Eu era bem menina (e ainda sou branca), e já sabia da Lei Afonso Arinos, e que empregada preta (naquele tempo não se dizia negra) não podia ser proibida de subir no elevador social dos prédios. Transgredir a Lei Afonso Arinos podia dar cadeia.

A jovem em questão desconhece ou descrê em nossas instituições. A mãe diz que aconselhava ela “todo dia: quando ele falar alguma coisa, você fica calada, fica quieta. Se ele te ameaçar, chama a polícia”. Mas agressão não se aguenta quieta – e, por outro lado, justiça não se faz com as próprias mãos. A jovem, em plausível desespero, não sabia.

Para a justiça, agora, ela é criminosa: tentativa de homicídio. Mas espero e torço ardentemente para que os togados que estão cuidando do caso indiciem também a “pobre vítima”, branco, sudestino, por duplo racismo. Não é admissível que o moleque saia dessa impune.

A imprensa bem que poderia procurar, pelo menos, as organizações de defesa da mulher e de defesa dos negros, além de órgãos de defesa de direitos humanos, para interceder junto à justiça da criança e da/o adolescente.

E a escola nisso tudo?

Segundo o Diário do Grande ABC, “na última semana, os dois estudantes já haviam se envolvido em uma briga, em que a garota havia atirado uma carteira no adolescente”. Na ocasião, ela foi suspensa por dois dias e ele, por um. Várias matérias mencionam esse antecedente en passant. A mãe da jovem relata que nesse dia o rapaz tinha passado do limite, xingando-a de vários nomes, inclusive “puta”, e ela não se conteve, lançando-lhe o que tinha à mão. Quando desse incidente, o rapaz ameaçou: “Se eu for suspenso, vou estourar sua cabeça na parede.” Ele foi suspenso, então a ameaça ainda estava valendo.

Os docentes dessa escola suspenderam a menina e o agressor dela e não fizeram mais nada? Se isso já tinha sido motivo de suspensão, a escola sabia do que acontecia. E a escola é precisamente o lugar de se obter informação, conhecimento. É (novamente) inadmissível que a escola, todos os professores, coordenadores, diretor, não tenham tomado qualquer medida a não ser punir ambos – e ela, com o dobro da “pena”! À jovem, não ocorreu recorrer ao corpo docente para queixar-se das agressões constantes e das ameaças. E a imprensa também não parece ter procurado o corpo docente. Apenas a Globo obteve uma declaração desastrosa de um senhor Felippe Angeli, “assessor da Secretaria Estadual de Educação”: “Aparentemente uma brincadeira que acabou se transformando em uma agressão.”

Aparentemente, digo, uma escola que não faz a mínima ideia do que seja educar. Uma jovem com a vida em frangalhos, que vai com certeza nutrir denso ódio pelos jovens sudestinos brancos. E um rapaz branco que vai continuar acreditando que pode impunemente agredir uma pessoa devido à cor da pele ou ao estado onde nasceu.

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Tina Amado é socióloga