Em primeiro lugar, louvemos a iniciativa de traduzir “Uma História das Histórias: de Heródoto e Tucídides ao século 20” [trad. Nana Vaz de Castro, revisão técnica de Vera Chacham. Record, 598 págs., R$ 69,90], uma história geral da historiografia de autoria do britânico John Burrow (1935-2009), internacionalmente consagrado. Trata-se de um fato importante no contexto editorial brasileiro, uma vez que, salvo a obra de Josep Fontana (“História: Análise do Passado e Projeto Social”, Edusc, 1998), as publicações em língua portuguesa de histórias gerais da historiografia que temos disponíveis são obras de caráter introdutório, oriundas de Portugal ou aqui publicadas.
No Brasil, a iniciativa pioneira nesse sentido cabe a José Honório Rodrigues, consignada em alguns capítulos de uma obra cujo escopo é mais amplo, a “Teoria da História do Brasil” (1949). Oxalá a presente publicação sirva de incentivo para que se produzam mais traduções de histórias gerais da historiografia, na medida em que, entre nós, os estudos historiográficos têm aumentado substancialmente em volume e qualidade, bem como consagrados centros de pesquisa, estudos e debates vêm promovendo encontros entre especialistas. É o caso, por exemplo, do Núcleo de Estudos da História da Historiografia e Modernidade e da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia, sediados no campus de Mariana da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
John Burrow destaca-se por aquilo que podemos designar como “o ponto de vista da história geral da historiografia”, isto é, toma a história-discurso considerada na sua inteireza, desde os gregos até a atualidade. Não considera as mudanças a partir do século 19 (“história científica”) como uma “ruptura epistemológica” como fazem normalmente outros historiadores da historiografia. O que o diferencia entre os seus pares é de suma importância porque permite distinguir a especificidade da história em relação às demais ciências sociais. Não se trata de apenas mais uma história geral da historiografia, mas a obra é especialíssima por este motivo.
Além da introdução e do prólogo, seguem-se cinco partes nas quais o autor nos oferece o contexto histórico da produção dos historiadores desde a Grécia até a atualidade. As cinco partes – uma forma possível de periodização da história da historiografia– são as seguintes: “Grécia”, “Roma”, “Cristandade”, “O Renascimento da História Secular” e “Estudando o Passado”. Cada parte, por sua vez, divide-se em capítulos nos quais o autor seleciona os historiadores que considera significativos para cada período.
O prólogo merece uma atenção especial pois estabelece a distinção entre “fazer registros” e a constituição do “discurso histórico” para que possamos entender por que a história-discurso emerge na Grécia antiga e não nas anteriores civilizações da Antiguidade Oriental. A história-discurso passa a se constituir como algo fundamental para a definição de identidades coletivas bem como para a construção da memória social.
A quinta e última parte (“Estudando o Passado”) é brilhantemente apresentada. Destaca que a partir do século 16 a história passa a ser objeto sistemático de estudo. Não depende mais somente dos antigos recursos para a reconstrução do passado, ou seja, os testemunhos, os cronistas e os historiadores dos períodos anteriores.
Acrescenta-se agora a pesquisa histórica em arquivos, de certa forma dando autonomia de trabalho e critérios mais efetivos para fortalecer o “compromisso com a verdade” caro aos historiadores. Daí o merecido destaque dado ao humanista italiano Lorenzo Valla (1407-57), que demonstrou que a “Doação de Constantino” não poderia ter sido escrita no século 4º e que não passava de um documento forjado na Idade Média.
Para que fique mais claro o que queremos dizer com “o ponto de vista da história geral da historiografia”, implícito na obra de Burrow, essa perspectiva consiste em não considerar as mudanças ocorridas ao longo do século 19, consolidadas na “belle époque”, como uma “ruptura epistemológica”, pois esse último ponto de vista leva os historiadores da historiografia a considerar todo o período anterior à “historiografia científica” como “pré-história”, com o que, se perde exatamente a especificidade da história no seu relacionamento com as ciências sociais.
Na obra de Burrow, esse ponto de vista já desponta no título “Uma História das Histórias”, na distinção entre “fazer registros” e a “construção da história-discurso” (“acertar contas com o passado”) e na estruturação: o estudo do passado começa antes do século 19.
Tradução
Tratemos por fim dos aspectos formais relacionados à tradução que merecem reparos. O cotejo da obra original com a edição brasileira tornou possível constatar inumeráveis incorreções. De forma geral elas correspondem a supressões de palavras, mudanças de tempos verbais, erros comuns de tradução e de falsos cognatos, utilização de expressões não condizentes com uma obra acadêmica, incorreções na citação de nomes e datas, ausência de crédito de uso de tradução de terceiros e, por fim, erros que revelam falta de familiaridade com o tema do livro, isto é, a história.
Devido à limitação de espaço indicaremos apenas os lapsos mais eloquentes. Supressões: nada justifica a mutilação do sumário (omissão dos historiadores) pois a seleção é significativa para o conteúdo da exposição do autor (capítulos 3, 16 e 21 a 26). Por outro lado, suprimem-se palavras ao longo do texto, bem como muda-se o significado e o tempo verbal: o que no original é “parece refletir” passa a ser “reflete” (pág. 515); “parecia implicar” passa a ser “implicava” (pág. 529); “Weber pensava” passa a ser “Weber achava” (pág. 534).
Tradução de palavras e problemas com falsos cognatos: o que no original é “engenhosidade” passa a ser “ingenuidade” (pág. 98); “causalidade” passa a ser “casualidade” (pág. 200); “ideia” passa a ser “ideal” (pág. 298, 299); “menestréis” passa a ser “ministros (pág. 302); “epígrafe” passa a ser “prefixo” (pág. 380); “campônios boquiabertos” passa a ser “palhaços boquiabertos” (pág. 411); “lealdade emocional” passa a ser “aliança emocional” (pág. 522); “notável” passa a ser “notório” (pág. 525); “circunscrever” passa a ser “restringir” (pág. 529); “corolário” passa a ser “consequência” (pág. 533); “preços da época Tudor” passa a ser “príncipes Tudor” (pág. 550); “assim como à responsabilidade”, passa a ser “assim como à contabilidade” (pág. 562).
De passagem, note-se o emprego de gíria incompatível com o trabalho acadêmico: “já era” (pág. 94), “para pegar um exemplo” (pág. 552); “cada vez mais badalada” (pág. 554); “a micro-história pega” (pág. 556).
No tópico relativo a problemas com nomes: “não gregos” passa a ser “bárbaros” (pág. 223); “Conselho Privado” passa a ser “conselho real” (pág. 561); “Jürgen Habermas” passa a ser “Norbert Elias” (pág. 532); “Seymour Martin Lipset” passa a ser “Martin Seymour Lipset” (pág. 542). As duas notas explicativas de rodapé são desastradas (pág. 365, 381). No que se refere a problemas com datas, o que é “1641” passa a ser “1691” (pág. 365); “século 16” passa a ser “século 17” (pág. 557); “século 20” passa a ser “século 21” (pág. 565).
Entre as páginas 418 e 434 utilizou-se, nas citações de Thomas Carlyle, a tradução da “A História da Revolução Francesa” de Antonio Ruas (1945), sem se dar o devido crédito. Mais grave ainda são as traduções dos textos de William Stubbs (págs. 451, 452), que estão incompreensíveis.
Por fim, há problemas atribuíveis à infamiliaridade com as ciências sociais em geral e a história em particular. Ao tratar da periodização estabelecida por Tucídides (século 5º a.C.), somos informados de que ele marcava o tempo “quando o cereal estava maduro” ou “enquanto o cereal amadurecia”, que passa a ser “quando o milho estava maduro” ou “enquanto o milho amadurecia” (pág. 53). Assim como os romanos não “corriam a todo vapor” (pág. 190), na Antiguidade e na Idade Média os europeus não conheciam o milho, lá chegado após a conquista e colonização do Novo Mundo.
Onde é “Fortuna” passa a ser “Sorte” (págs. 188, 205); “Antão” passa a ser “Antônio” (págs. 232, 233); “Liga da Jarreteira” passa a ser “Ordem da Liga” (págs. 265); “Dia do Chefe da Municipalidade” (prefeito) passa a ser “festas do lorde Mayor” (págs. 413); “Juramento do Jogo da Pela” passa a ser “Juramento da Quadra de Tênis” (págs. 417); “bem-estar social” passa a ser “assistência social” (págs. 441); “Jano bifronte” passa a ser “obra de duas faces” (págs. 468); “entradas reais” passa a ser “registros sobre reis” (págs. 526); “quietismo político” passa a ser “imobilidade política” (págs. 537); “ethos” passa a ser “espírito democrático” (págs. 540).
Enfim, dado o exposto, a obra merece completa e rigorosa revisão.
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Rogerio Forastieri da Silva é professor de história; publicou História da Historiografia: Capítulos para uma História das Histórias da Historiografia (Edusc, 2001)