Enquanto a esfera pública brasileira (se é que realmente existe) fica à espera de um esclarecimento consistente, por parte da imprensa, sobre as tenebrosas relações entre seitas e políticos, o sentimento geral é, no mínimo, de perplexidade. De fato, é difícil avaliar com outro ânimo a notícia do apoio dado por parlamentares cariocas (consta que a bancada evangélica co Rio tem 60 políticos) ao pastor preso sob a acusação de dezenas de estupros e de prováveis assassinatos de testemunhas das orgias. Veja-se bem: a manifestação de apoio foi imediata, automática, antes de qualquer pausa reflexiva para a averiguação da realidade dos fatos.
O assunto é grave, não há como aplainá-lo moral ou esteticamente, mas ele comporta aspectos de uma das espécies do gênero grotesco, que é a variedade atuada ou vivida. Não se trata aqui de nenhum juízo elitista sobre comportamentos irrisórios, mas da ênfase numa característica do grotesco que se assenta na hipótese da inexistência de qualquer distinção radical entre homens e animais.
Num trabalho de anos atrás (O Império do Grotesco, de Muniz Sodré e Raquel Paiva, Editora Mauad), comentávamos que, na Antiguidade grega, os cínicos (que derivavam da palavra “cão” o nome de seu pensamento), assim como os estóicos, pregavam o retorno ao estado de natureza e consideravam seriamente a modelagem do comportamento humano a partir dos animais. Pois bem, partindo da analogia platônica entre homens e animais com ou sem chifres, o filósofo Peter Sloterdijk descreve o processo civilizatório como uma lenta extirpação dos chifres (simbolização da natureza selvagem ou animalesca) rumo a uma domesticação que, levemente arranhada, exporia uma animalidade subcutânea.
Daí, a insistência do filósofo a respeito do fenômeno da monstruosidade como característico da humanidade atual. Ele cita como exemplos o apocalipse atômico e as experiências genéticas, mas na verdade não se precisa ir a tais extremos para se comprovar as consequências daquela “domesticação arranhada”: a violência anômica (homicídios bárbaros, latrocínios, estupros etc.) revela a afinidade dos seres humanos com o estado natural das feras. Uma ressalva, entretanto, foi feita por Thomas Hobbes a favor das feras: só o homem é capaz de assassinar. Os animais matam para comer.
Quanto mais nojento, melhor
Passando-se da esfera da violência física para a moral, é oportuno acrescentar que só o homem, evidentemente, incorre na caracterização do grotesco. Machado de Assis já havia suspeitado que “a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel”. Cabe ao bathos, figura de retórica que expressa o rebaixamento engraçado de um tópico elevado ao lugar comum discursivo, identificar e construir o episódio grotesco, em que o riso pode acontecer, mas sempre como uma tensão nervosa. O fenômeno revela-se na exasperação tensa ou violenta dos contrários, com os recursos da caricatura, da sátira e da ironia.
Mas o riso é aceitável frente a esses recursos precisamente porque eles são estéticos, isto é, pertencem à dimensão do gosto na criação e na recepção de uma obra qualquer. Quando atuada ou vivida, essa “exasperação dos contrários” dificilmente tem graça, principalmente se transcorre na esfera em que a cidadania ou, pelo menos, a dignidade cidadã pode ser posta em perigo.
É grotesca, mas não risível, a exasperante aproximação entre legisladores e a criminalidade em suas variadas espécies. Mas por que é grotesca e não simplesmente anômala? Porque o desvio institucional produz ainda assim um conhecimento, que é o desnudamento das máscaras institucionais (ou seja, o que é mesmo hoje uma Assembléia Legislativa?) ou a exibição de uma realidade nua e crua.
Em toda essa conjuntura ressoa a atmosfera emocional dos recursos com que a televisão em circuito aberto recrutou o seu público no passado e continua recrutando ao testar os limites de sua audiência. Quem não conhece o programa intitulado Jackass? Trata-se de “ir ao limite de todas as situações: quanto mais desagradáveis e nojentas, melhor”, segundo dizia o apresentador do programa. Jackass significa “burro” em inglês, tanto o animal quando a pessoa. Jackass, dizia o apresentador, é “um sujeito que enche uma piscina infantil com fezes de elefante e mergulha nela”.
Infantilização do juízo
Quando se trata de mídia, a memória coletiva é fugaz, mas é possível que a internet registre os momentos de exaltação pelo Sistema Globo (televisão, Revista de Domingo etc.) do pastor agora acusado. Nenhuma apuração jornalística, nenhuma reflexão – tão só o aproveitamento midiático das sensações do momento. A mídia o constituiu tanto quanto seus aliados mais diretos, os políticos e as vítimas da miséria existencial.
Em A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, o personagem sai da tela e passeia entre os espectadores. Agora é algo como o Jackass que sai da televisão e “baixa” em sua audiência religiosa ou televisiva (não é tão simples fazer a distinção entre uma e outra). Na falência da capacidade coletiva de discernimento, a esfera pública periga tornar-se aquela duvidosa piscina, a grotesca infantilização da fé e do juízo crítico.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro