Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Guerra Fria do cotidiano

O presidente Obama revelou uma fantasia sua numa entrevista ao New York Times. Ele diz a assessores que, às vezes, fica tão frustrado com Washington, que pensa em “go Bulworth”. A esmagadora maioria dos americanos não entendeu patavina. Bem, a esmagadora maioria dos americanos não lê o Times ou, sejamos francos, nenhum jornal diário. O The Nation, que é semanal, disse, na última edição, que 90% dos americanos consomem notícias apenas via mídia social. Uau. Alguma relação entre este fato e a qualidade dos políticos eleitos para as duas câmaras do Congresso? Deixemos de lado as digressões.

Como mesmo o mais prosaico comentário de um homem poderoso é reproduzido ad nauseam online, foi divertido ler os postings de blogueiros e articulistas explicando às massas que raio de “virar Bullworth” é este, proferido por Obama.

A história do senador Jay Billington Bulworth, vivido por Warren Beatty, num filme de 1998 que ele dirigiu e foi um fracasso de público, teve recepção morna da crítica. A julgar pela bilheteria no exterior, foi ignorado. Assisti ao filme várias vezes e acho que, graças à eternidade digital, Bulworth tem alguma chance de virar cult para uma outra geração.

Levando vantagem

Embora esteja farejando um certo cabotinismo em Obama por invocar a coragem do senador Bulworth, sou grata a ele por colocar em circulação a figura fictícia do político profissional que tem basicamente um surto psicótico e começa a dizer o que pensa, contrariando seus assessores e marqueteiros. Sua aliada é a estonteante Halle Berry, no papel de uma assassina de aluguel contratada para matar o senador.

Como se trata de uma fantasia de Obama, não vou entrar no mérito de como ele interpreta o filme e o que gostaria de dizer aos americanos. O que me interessa é a referência a um ataque de nervos como ponte para a sinceridade.

Dois escândalos de violação de privacidade dominaram os últimos dias. O Departamento de Justiça de Obama conseguiu que operadoras telefônicas entregassem secretamente registros de telefonemas de 20 jornalistas da agência Associated Press, inclusive ligações feitas de telefones particulares. Segundo o que circula aqui, a AP teria exposto, em 2012, um agente duplo, ao relatar a história de um atentado à bomba – uma nova bomba na roupa de baixo, como a da cueca do nigeriano que não explodiu em 2009 – num avião a caminho dos Estados Unidos.

No outro escândalo, ainda sob investigação, jornalistas da Bloomberg obtiveram informações sobre clientes dos terminais financeiros da empresa. Estamos falando de todos os bancos de Wall Street, corporações, agências do governo, clientes que pagam 20 mil dólares por ano para alugar os terminais.

Nos dois casos, funcionários – do governo e de uma corporação – usaram os recursos a seu alcance, sem monitoramento da sociedade, para obter uma vantagem de inteligência ou pecuniária, na forma de informações privadas.

O do livro

Assistindo a outra fantasia, o seriado de TV com maior audiência do momento nos Estados Unidos, em que os principais personagens traem uns aos outros graças, em grande parte, à tecnologia digital, penso o que será da confiança, este vínculo que distinguia amigos de estranhos.

Num mundo em que a maior parte do que dizemos, geralmente via e-mails e SMSs, fica suspenso no para sempre digital e o que fazemos em público, possivelmente capturado via câmeras de vigilância eletrônica e smartphones, está em oferta e à disposição dos escrúpulos nem sempre presentes, como saber em quem confiar? Quando anfitriões pedem a convidados de uma festa de casamento para entregar seus celulares na chegada, há algo errado com a amizade que gerou o convite. O amigo querido de hoje pode ser o ressentido acumulador de mensagens fora de contexto amanhã.

O mundo “aberto” da vida online está cada vez mais parecido com o mundo paranoico do Big Brother. Falo do original literário.

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Lúcia Guimarães é jornalista, colunista do Estado de S.Paulo em Nova York