Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

MP dos portos, porcos, poucos

Terminou, enfim: depois de muitos dias, depois de muitas manchetes, depois de páginas e páginas de jornais, a Medida Provisória que modifica a legislação dos portos foi aprovada. O noticiário foi amplo: um deputado acusou o outro, um parlamentar disse que a MP não era dos portos, e sim dos porcos, porque havia muita sujeira, não sei quem procurou obstruir a votação para fazer com que o prazo fatal se escoasse, outro alguém mandou buscar senadores em casa para garantir número, houve quem se queixasse de que a medida foi aprovada sem ser lida, já que chegou ao Senado tão em cima da hora que foi logo para a votação.

Mas, na frase clássica dos publicitários americanos, “where is the beef?” Cadê a carne? Onde está o núcleo da questão? Quem ganha, quem perde? Todo o noticiário girou em torno do balé parlamentar e dos torneios de florete de governo e oposição, esquecendo-se a clássica procura da carne debaixo do angu. No máximo, os meios de comunicação aceitaram como boa a informação do governo, de que a medida era um passo à frente, no caminho do progresso.

E qual governo diria que a medida por ele proposta era um passo para trás, no caminho do atraso? Como está virando hábito, os meios de comunicação confiaram, quando sua obrigação é sempre desconfiar.

No último dia da votação, houve algum esforço jornalístico para mostrar o que mudaria na legislação portuária caso fosse aprovada a Medida Provisória. OK, foi um passo. Mas quem ganha e quem perde? Que é que o gigantesco congestionamento de caminhões a caminho do Porto de Santos tem a ver com o caso, se é que tem algo com isso? Alguém buscou pesquisar as ligações entre as concessionárias de rodovias e as empresas que prometiam investir em novos terminais portuários? Alguém perguntou algo a respeito dos pátios reguladores, onde os caminhões estacionariam até ser descarregados, sem necessidade de congestionar a estrada? Em pelo menos um caso, houve uma empresa que criou um terminal portuário próprio antes mesmo que a MP que o legalizaria fosse proposta. Bola de cristal, talvez? Ou uma boa análise de mercado, mostrando que um dia isso iria acontecer, e não poderia demorar, já que teremos a Copa e as Olimpíadas?

O fato é que os grandes interesses envolvidos no caso não foram identificados. O consumidor de informação teve de passar sem isso. Entrevistas com empresários interessados na manutenção dos regulamentos atuais, ou mobilizados para a aprovação da MP, ou no meio do caminho, querendo mudar o que existe hoje mas sem chegar ao ponto proposto pelo governo, isso simplesmente não aconteceu. Aliás, no dia em que a Câmara do Deputados discutia a MP, o repórter de um grande jornal, envolvido desde o início na cobertura do caso, procurava informações sobre quem controlava cada uma das empresas. Até então, essa informação não tinha sido levada em conta pelos meios de comunicação.

Agora a MP foi aprovada e haverá mudanças na operação dos portos brasileiros. Estarão os veículos dispostos a acompanhar o que acontece para nos contar como é que as coisas vão funcionar de verdade?

 

Fogo frio

E, por falar em não falar dos acontecimentos, o galpão onde estava armazenado todo o acervo de 40 anos do Balé Stagium, em Parelheiros, SP, pegou fogo (os indícios são de incêndio proposital). Ali havia cenários, figurinos, adereços de uma das mais importantes companhias de dança do país, comandada por gente talentosa, trabalhadora e competente como Márika Gidali e Ademar Guerra.

O incêndio aconteceu no início da madrugada de quinta-feira (16/5), foi feito boletim de ocorrência, tomaram-se todas as providências legais. Mais de 24 horas depois, saíram os jornais do dia 17. Cadê a notícia? Nem uma linha. TV, rádio? Nada. Saíram algumas fotos no Facebook, postadas por admiradores do Stagium, por aficionados da arte, não por jornalistas no exercício da profissão. Como ninguém ficou ferido, nem morreu, a notícia foi totalmente ignorada. Afinal de contas, sumiu apenas uma parte da história cultural do Brasil – uma partezinha, os últimos 40 anos. E quem é, nos meios de comunicação, que está hoje preocupado com herança cultural?

 

A praga da não notícia

Leitor desta coluna, o jornalista Pedro Paulo Taucce, estudioso de Linguagem Jornalística, há anos se preocupa com aquilo que chama de Jornalismo do Futuro do Pretérito: “teria feito, teria assassinado, teria dito”. Comenta:

“Esse tipo de construção virou praga no jornalismo brasileiro. É o jornalismo da dúvida, não do fato. E jamais ouvi dizer que o jornalismo vivesse de dúvidas. Nos dias atuais, ninguém faz mais nada: não mata, não fala, não declara, não rouba – enfim, não faz, teria feito.

“Creio que, certo dia, alguém, numa determinada redação (acredito que de um grande órgão de imprensa), ficou com medo de afirmar algo, e usou e abusou do futuro do pretérito para reportar alguma matéria. Aí, um estagiário achou bonito e passou a usar. E a praga se alastrou com mais força na linguagem jornalística do que os famosos gerúndios assassinos. Hoje, virou um costume”.

Taucce tem sólida formação acadêmica: graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), pós-bacharelado na University of Florida (EUA), autor de um projeto para pós-graduação em Língua Portuguesa versando sobre o jornalismo da dúvida. Defendeu uma dissertação, “Mudança de Linguagem no Jornalismo: o uso e o abuso do tempo verbal Futuro do Pretérito pela imprensa”.

E que aconteceu com esse trabalho? Descansa tranquilamente nas prateleiras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, à disposição de quem se interessar. “É uma prova de que alguém se insurgiu contra esse absurdo de transformar fatos em dubiedades.” Alô, editoras! Que tal publicar esse trabalho e mostrar para os estudantes de Comunicação que o jornalismo vive de fatos, não de suposições?

A propósito, lembra Taucce, outra praga é o “suposto”. O sujeito não é mais acusado de alguma coisa, ele é “suposto isso e aquilo”. Será que quem usa esse tipo de linguagem não se deu nunca ao trabalho de consultar um bom dicionário para ver o real significado da palavra “suposto”?

 

A praga, em exemplos

1. Um carro de Fórmula 1 bate em altíssima velocidade e não se estraçalha. Um carro esportivo de passeio com a mesma tecnologia, uma Ferrari novinha, ficou estraçalhada num acidente em São Paulo. Diz o título: “Carro estaria em alta velocidade e bateu em um poste”.

Já o texto diz que o carro teria batido num poste. Se o repórter tivesse olhado para o poste, saberia se houve ou não a batida. Mas olhar? Ir até o local, em vez de pegar informações por telefone? Cansa! A propósito, havia na Ferrari um homem e uma mulher, que segundo a notícia eram os supostos ocupantes.

2. Um cavalheiro pulou da janela do 20º andar, no Rio. Em seu apartamento, encontraram o corpo de sua esposa. Tinha sido morta a facadas. Uma carta deixada pelo marido no apartamento informava os motivos do assassínio e do suicídio. Título: “Polícia investiga suposto assassinato seguido de suicídio em prédio do Rio”.

3. Na mesma notícia, informa-se que, segundo a polícia, o suicida seria primo de uma importante personalidade federal. Será que até a polícia está com preguiça de verificar uma informação tão simples de confirmar ou desmentir?

4. Este texto bate um recorde: além de ser tudo suposto, é confessadamente inventado. Dizem as revistas de fofocas que a atriz Katie Holmes voltaria com Tom Cruise por causa da filha de ambos, Suri. Base da informação, transcrita nos mais diversos meios de comunicação: uma psicóloga (que não trata de Suri nem a conhece) disse que, se a criança não consegue superar o trauma da separação dos pais, a mãe costuma dar prioridade à filha e acaba reatando com o ex.

 

De volta à não informação

Voltemos à Ferrari acidentada em São Paulo. Diz um título exemplar:

** “Casal sofre acidente com Ferrari avaliada em mais de R$ 2 milhões”

No título e no texto fala-se do carro, de seu preço, de sua idade (menos de um mês). Terão os ocupantes do carro sofrido algum ferimento? Estará um dos dois internado em algum hospital? A propósito, em nome de quem estava o carro?

Nada: no dia seguinte, discretamente, informou-se o nome do proprietário, um milionário da região do ABC paulista, aliás envolvido há tempos em outro acidente espetacular. Supõe-se, já que não há referência a isso, que nada tenha sofrido de grave, exceto o prejuízo financeiro (e a indenização à AES Eletropaulo, a distribuidora de energia elétrica cujo poste foi danificado). Quanto à moça que o acompanhava, silêncio total. Nem nome, nem estado de saúde.

 

Sem exageros

A imprensa tem falhas, muitas; os cortes de pessoal têm-se refletido na qualidade dos produtos, sim; mas é preciso tomar cuidado para separar as queixas quanto ao trabalho informativo da imprensa e a investida ideológica dos que querem implantar a censura, sob os mais diversos títulos e pretextos.

Há quem diga, por exemplo, que a imprensa tomou posição ideológica ao noticiar o depoimento do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra à Comissão da Verdade. Brilhante Ustra tem todos os defeitos possíveis: entre eles (e já é suficiente), comandou o DOI-Codi, onde casos documentados de tortura a prisioneiros e assassínios ocorreram ininterruptamente. Mas suas declarações à Comissão da Verdade não poderiam ser ignoradas pelos meios de comunicação. Quem o levou aos holofotes foi a própria Comissão, ao convocá-lo para um depoimento público. Deram-lhe a oportunidade de dizer coisas – inclusive a respeito da presidente da República – que, sem dúvida, são notícia. O mais curioso é que tudo o que perguntaram a Brilhante Ustra já era conhecido. Quem quer que tenha lido o livro Tortura Nunca Mais, do jornalista Ricardo Kotscho, produzido sob a orientação do cardeal D. Paulo Evaristo Arns e do reverendo James Wright, sabia o que Brilhante Ustra tinha feito. Desnecessariamente, quiseram ouvi-lo e ouviram. Não tem sentido esperar que a imprensa o censurasse, escondendo suas declarações.

 

Letras jurídicas

É um livro de múltiplos autores, todos figuras relevantes do Direito, todos deixando sua especialidade de lado e se dedicando à literatura, na forma de contos. No dia 28/5, às 19h, Livraria da Vila – Alameda Lorena, 1.731, São Paulo – será lançado As letras da Lei, que reúne trabalhos do ministro aposentado do Supremo Eros Grau, do desembargador José Renato Nalini, dos advogados Miguel Reale Jr., Luís Francisco Carvalho Filho, Eduardo Muylaert, Tavares Guerreiro, José Gregori, Denis Borges Barbosa, Pierre Moreau, Luiz Kignel, Luciana Gerbovic e Marcelo Barbosa. Vale a pena, e não apenas pelo livro: também pela oportunidade de conhecer alguns dos grandes operadores do Direito no país.

 

Lendo, entendendo

Muitos já ouviram falar do filósofo francês Michel Foucault; bem menos pessoas o leram. Dos que o leram, não foram todos os que o entenderam. Agora está nas livrarias Entendendo Foucault, do professor Chris Horrocks, com ilustrações de Zoran Jevtic. O objetivo é contar a vida de Foucault – antissocial, fetichista, depressivo que mais de uma vez tentou o suicídio, militante gay, ativista de esquerda, estudioso – e explicar suas teses filosóficas e seus estudos sobre a loucura.

 

Como…

De um grande portal noticioso, ligado a um jornal de circulação nacional:

** “Empresários egípcios promovem um país transformado no Brasil”.

 

…é…

De um portal de fofocas:

** “Salve Jorge: Wanda é presa tentando fugir por um boeiro de rua”

“Boeiro” deve ser aquela passagem de água feita para evitar inondação da roa.

 

…mesmo?

Do portal noticioso da Câmara dos Deputados, citando o deputado Arnaldo Faria de Sá, do PTB de São Paulo: “(…) a ministra Gracie Hoffmann diz que vai vetar o que for votado por esta Casa”.

A referência, imagina-se, deve ser à ministra Gleisi Hoffmann, do PT paranaense, esposa do também ministro Paulo Bernardo. Mas está quase certa: Gleisi é a maneira como sua família, de imigrantes alemães, pronunciava o nome de quem queria homenagear, a atriz americana Grace Kelly.

 

E eu com isso?

O caro colega costuma jantar, imagina este colunista. E andar de mãos dadas com sua namorada, esposa, amante, amiga. Com certeza, tem alguns hábitos estranhos. Mas não é notícia: quem manda não ser famoso? E como é que se faz para ser famoso? Simples: basta jantar, andar de mãos dadas com sua namorada, esposa, amante, amiga, cultivar alguns hábitos estranhos. Ou não.

** “Mariana Ximenes e namorado jantam em São Paulo”

** “Demi Lovato confessa que rouba travesseiros”

** “Nívea Stelmann anda de mãos dadas com o namorado, no Rio”

** “Mariah Carey não suporta Kim Kardashian”

** “Xuxa usa blusa transparente e deixa seio à mostra em show de Ivete”

** “Entusiasmada, Rihanna joga dinheiro e assiste à performance de strip-tease”

** “De biquíni, Gracyanne deixa manchas nas costas à mostra”

** “Após cirurgia de Jolie, Brad Pitt vai a reunião em estúdio nos EUA”

** “Luan Santana exibe novo topete em show sertanejo”

** “Solteira, Selena Gomez curte piscina com amigas”

** “ilia Cabral compra comida em restaurante descolado”

** “Christina Aguilera aparece de sutiã em bastidor de vídeo”

** “Namorado de Deborah Secco vai cantar para o papa”

Puxa vida, só porque o papa é argentino vão fazer isso pra ele?

 

O grande título

Manchetes ótimas. Podemos começar com a exposição de gado de Uberaba (MG), tradicionalmente ponto de encontro de gente importantíssima:

** “Presidenciáveis desfilam na Expozebu”

Continuemos com aquela frase que o caro colega, malicioso como ele só, certamente vai adorar:

** “Celebridades apostam no troca-troca”

Sem duplo sentido, por favor: o título se refere a cor de cabelos.

Mas nenhum se compara ao título que vem agora, o melhor da semana:

** “PT obtém recorde de doações e sai do vermelho”

Pois é.

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Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados Comunicação