Dois casos de violações éticas despertaram recentemente a atenção das redações e do grande público. Nos Estados Unidos, uma das maiores agências de informação econômica foi acusada de espionar clientes do serviço de dados que ela mesma fornece. A Bloomberg oferece informações de mercado em terminais exclusivos, e repórteres da agência teriam usado o sistema para rastrear consultas feitas pelos assinantes, violando suas privacidades e tendo acesso a informações privilegiadas. O editor-chefe da Bloomberg News, Matthew Winkler, reconheceu o problema, qualificando-o como um “erro indesculpável”. Entre os espionados estavam poderosos financistas, grandes corporações e autoridades econômicas.
Em Londres, um soldado foi decapitado na rua, possivelmente motivado por ódio religioso, e sua imagem e a de um suspeito com as mãos sujas de sangue foram amplamente mostradas por sites. O discurso ameaçador do suspeito, flagrado em vídeo, e a cena da vítima inerte no chão dividiram opiniões nas redes sociais. Houve quem criticasse a crueza e brutalidade do conteúdo, e quem defendesse o seu uso e o direito de ter acesso àquelas imagens.
Embora bem distintos, os dois episódios não têm só no aspecto ético o seu ponto de contato. Ambos surgiram no contexto atual de novas tecnologias, de mídia global e de jornalismo online. Um contexto que tem enaltecido o alargamento das possibilidades informativas, uma pretensa universalização dos acessos e a maior participação do público na equação comunicativa. Para Ann Friedman, apontada pela prestigiada Columbia Journalism Review como uma das vinte jornalistas para se ficar de olho, este é o melhor momento para atuar no jornalismo. Afinal, hoje, o profissional da área tem acesso a um mundo de fontes, o público tem acesso a um mundo de mídias, jornalistas têm acesso direto aos consumidores de notícias, e o caos reinante instiga a criatividade.
Para Ann Friedman, “aprender a se adaptar e evoluir é tão importante quanto preservar tarefas sagradas como edição e redação. E se o jornalismo vai sobreviver, a tensão entre preservação e evolução tem de se tornar uma fonte de diversão e inspiração, não melancolia e desgraça”.
Qualidade e equilíbrio
Sim, todo o entusiasmo de Ann pode estar encobrindo parte da razão, mas o jornalismo não se desenvolve apenas a partir de uma nova plataforma de publicação de notícias ou de um revolucionário software de edição e postagem de vídeos na web. Ann Friedman sabe disso, e mais gente também. Alguns dos principais conglomerados de mídia já editaram códigos de conduta interna que absorveram certos desafios éticos que as novas tecnologias têm reforçado. BBC, Reuters, The New York Times, entre outros, têm lá suas regras para orientar seus repórteres e editores.
Recentemente, a Associated Press atualizou suas normas de mídias sociais, o que também aconteceu com a Associação de Jornalistas de Gastronomia (AFJ), que ampliou seus padrões éticos. Para além das paredes corporativas, surgem na internet documentos mais amplos que servem de bússola para comunicadores nas redes sociais, como é o caso deste “Melhores Práticas para Jornalistas no Facebook”.
Essas iniciativas reforçam o entendimento de Rosental Calmon Alves, o brasileiro que dirige o projeto Jornalismo para as Américas do Knight Center. Conforme disse numa entrevista ao Ética Segura, da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), são os princípios éticos e a deontologia acumulados há mais de um século que definirão os estândares da profissão. “A revolução digital traz novos desafios, e a ética não é estática, mas dinâmica”. O que vai distinguir atos jornalísticos genuínos de gestos comunicativos praticados por usuários comuns – sem a formação, envolvimento e compromisso profissionais –, serão os princípios de uma ética jornalística, apoiada em acurácia, verdade e transparência, por exemplo.
Estabelecer parâmetros e ditar regras é importante para ajustar comportamentos e apontar padrões ideais de conduta. As empresas jornalísticas devem se preocupar com isso, sim. Os profissionais devem participar dos debates que cercam esse assunto, pois são diretamente afetados pelas normativas que dali resultam. O público, por sua vez, deve exigir qualidade, equilíbrio e ética. Normatizar é importante, mas insuficiente. É preciso que as regras reflitam as convicções e consensos gerados no interior da categoria profissional e na sua relação com os públicos e demais setores interessados. Sem esses esforços, as regras serão apenas um punhado de palavras bem arranjadas. O mundo e a vida, que cercam e preenchem o jornalismo, são bem mais que isso.
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Rogério Christofoletti é professor na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS