Atos violentos de grande magnitude foram importantes marcadores de interesse, especialmente para o trabalho de historiadores e jornalistas. Marx chegou a considerar a violência como parteira da história, enquanto os editores, nos primórdios da industrialização, cunharam a perversa máxima segundo a qual bad news, good news. Os recentes protestos no mundo inteiro, e notadamente no Brasil, apontam para uma mudança de paradigma: a paz está superando a violência em termos de critérios de noticiabilidade.
No último fim de semana (22-23/6), os noticiários mostrando famílias nas praças e gramados pareciam filmes institucionais bem produzidos sobre a arte da pintura patriótica, predominando, portanto, sobre a espetacularização das cenas de vandalismo – diga-se, segredo midiático dos arruaceiros. Baderneiro sem mídia é, certamente, uma pessoa muito frustrada. Para eles, ligar a TV e assistir pais e crianças lambuzando-se com as cores da bandeira é um castigo, fracasso para quem tem a violência como forma e força de expressão.
A despeito dos arrastões infiltrados, algo que diferiu os protestos brasileiros, comparativamente a outras “primaveras”, foi a vitória do pacifismo. A índole ordeira dos manifestantes foi enfatizada pela imprensa e angariou o respeito da população, dos governantes e fez a polícia redimensionar os seus métodos. A convocação dos manifestantes para mesas de negociação, das prefeituras à Presidência da República, demonstrou algo bastante discricionário: ninguém convida para o diálogo quem esconde rosto e identidade. E a identidade que prevaleceu foi a de cidadãos patrióticos, que pintam o rosto com as cores da nacionalidade, algo impensável para vândalos.
Gigante desperto
Há quem argumente que os protestos não teriam adquirido a mesma eloquência não fossem as pedradas, depredações e molotovs, como também há analistas dispostos a lembrar que a mutação de protestos pacíficos para a desordem é constitutiva de manifestações, portanto, algo previsível e esperado. O que aconteceu no Brasil, no entanto, foi um despertar de multidões em todo o país e não só nas capitais. De repente, uma lufada de protestos de natureza cívica e otimista mostrou para o mundo uma juventude ativista, contrariando a crença de que os jovens de hoje são inertes e alienados. Nunca na história o conceito de vita activa, de Hannah Arendt, foi tão real, ou seja, trabalho, obra e ação focados no desejo de transformar o sentido da vida.
Na trilogia da filósofa alemã, a ação política é o coroamento da condição humana orientada para a sua própria superação. A vida só será ativa se politizada no melhor sentido da política, a política vocacionada para o bem-estar coletivo e, consequentemente, para uma sociedade mais justa e inclusiva.
E em que a violência deixa de ser uma forma de ação? Paradoxalmente, a ação destemperada é contraproducente, como sabiamente já o demonstrou Sun Tzu, quando nos convence de que a suprema arte é vencer sem lutar (pelas armas), ou seja, pela inteligência. Do ponto de vista do Tao (o caminho do meio), por vezes a melhor ação é a inação. Exemplo recente, manifestantes que “viram” estátuas numa praça turca, permanecendo parados por até oito horas, até serem conduzidos pela polícia, sem qualquer reação, tal qual peças de gesso.
Adverte, no entanto, o autor de A arte da guerra, que “se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas”. E este é, possivelmente, um dos pontos fracos das manifestações e dos manifestantes deste momento, desta grande onda que lava o país de ponta a ponta. Os atuais protestos primeiramente se fizeram como tal, para depois ir se organizando, em forma e conteúdo. Sua natureza originária é marcadamente dionisíaca, e não apolínea. Mas, foi assim que as coisas aconteceram. De uma forma planejada, nos moldes da gestão moderna, talvez não tivessem ocorrido.
Quem lida com grandes eventos públicos sabe o quanto eles têm de ser bem planejados, detalhe a detalhe. Marketing de eventos é uma atividade delicada. Organizar, por exemplo, um megashow numa praia do Rio de Janeiro é tarefa para profissionais de muita tarimba. Não é de se surpreender que alguma coisa errada acabe acontecendo em grandes manifestações convocadas via redes sociais. Pensando bem, os resultados positivos superaram visivelmente aos negativos, o que só reforça o caráter ordeiro dos protestos, em seu leito principal. Todavia, quando a enchente transborda e desbarranca as margens, sempre algo foge ao controle. E um gigante desperto e descontrolado é como um dinossauro, cujo cérebro é minúsculo. Entretanto, o tiro que saiu pela culatra não foi o dos manifestantes, mas o das minorias inescrupulosas.
Mudança de paradigma
O aprendizado foi geral: para os manifestantes, para a imprensa, para a polícia (que passou a revistar suspeitos de portar ferramentas de violência) e para os gestores públicos. Estes, no entanto, têm de ir mais além do que as providências do tipo apaga-incêndio. Reduzir tarifas é política de centavos, face à magnitude que se espera para um planejamento de longo curso. E as reivindicações dos manifestantes são todas de longo prazo. Não se espera da noite para o dia amadurecimentos que resultem em melhor transporte público, educação de qualidade, saúde pública para todos e, o objetivo maior, recuo da corrupção.
Já no século 16, denunciando os desvios que ocorriam na Coroa e nas Colônias, surgiu o inventário intitulado A arte de furtar (de autoria polêmica, possivelmente do Padre Vieira), circunstanciado dossiê de como se roubava àquela época. E, curiosamente, uma das formas apontadas era por meio de obras superfaturadas. Tratava-se de uma ironia ao desenvolvimento de outras artes (de reinar, de orar, de versejar, de navegar etc.).
É preciso estar atento a um outro tipo de arte, a arte de engambelar. Já estão surgindo propostas do tipo: aumentarem-se os custos para quem anda de carro, tirando-se desses em benefício do transporte coletivo. Ora, como sabem os próprios adolescentes que engrossam os protestos, o buraco é mais embaixo. O que falta no Brasil não é dinheiro, é honestidade para com o mesmo. E é nesse ponto que a imprensa tem de caprichar ainda mais na sua tarefa de Poder Fiscal. Sem uma imprensa atenta e reflexiva, volta-se aos valores-notícia mais primitivos – aqueles segundo os quais bad news, good news. É preciso valorizar a mudança de paradigma que neste momento desponta no horizonte, a de que good news, good news.
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Luiz Martins da Silva é jornalista e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília