Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Em busca de um sentido para as manifestações

O século 21 nascia no Ocidente sob o signo da apatia. Uma sensação de vazio ideológico. Havia muita miséria no mundo, mas não muita disposição para o protesto. Afinal, o consumo pelo consumo aparecia como a nova panaceia. A arquitetura dos shopping centers uniformizava boa parte do mundo – do Oriente ao Ocidente.

O mundo era um grande parque de diversões. Evidentemente, para os que podiam dele participar. A crise financeira de 2008 e seus desdobramentos atingiram, como um meteorito, boa parte dos acessos ao parque de diversões. Pouco e pouco, o estrago se mostrava a cada dia maior. Não apenas os direitos conquistados há décadas estavam em franco processo de ruína, uma vez que até mesmo o acesso ao emprego entrava em colapso.

As manifestações, então, se sucediam. Aqui e ali. O “Occupy Wall Street” em Nova York. A ocupação da Praça do Sol em Madri. As manifestações em Atenas, Lisboa etc. A primavera árabe. Aqui e ali as pessoas saíam às ruas. Em defesa do emprego, da habitação, da redução dos salários e dos direitos sociais; pelo direito às liberdades, em defesa das minorias. Os motivos eram e são múltiplos. Uma sensação de descrença, desconforto, medo e insegurança.

Em Istambul, o protesto contra a construção de mais um shopping center em detrimento da última grande área verde da cidade. Em São Paulo e em outras cidades do Brasil, protesto contra o aumento do preço das passagens dos transportes públicos.

No país da apatia

Os jovens, convocados por redes sociais, como ocorreu na primavera árabe ou nos protestos nos Estados Unidos e na Europa, saíram às ruas de São Paulo por causa de 20 centavos. Tudo parecia sem sentido. Essa imensa manifestação ocorrendo no país da apatia. Assiste-se, então, à busca de sentido.

Curioso observar as opiniões contrastantes e iguais na avaliação. Para os partidários do PSDB, com quem conversei, as manifestações são provocadas pelo PT porque o governador Alckmin tem alto índice de aprovação. Para os partidários do PT é o PSDB querendo se aproveitar de um momento de fragilidade econômica do governo para incentivar as manifestações e principalmente – de ambos os lados – atos de vandalismo.

Polícia despreparada

A polícia, por sua vez, mostra o seu mais completo despreparo e responde com uma violência brutal. Como afirmou o jurista Walter Maierovitch “a polícia brasileira ainda não está preparada para atuar em ambientes democráticos”. Não está mesmo! Houve vandalismo nas manifestações? Houve, e esses atos devem ser combatidos. Mas é preciso também se garantir o direito a manifestações, por razões políticas ou não. Num Estado democrático, liberdade de expressão é o primeiro dos direitos.

A mídia se precipitou e num primeiro momento destacou, apenas, o fato de que muitos manifestantes teriam praticado atos de violência. Rotulou-os de baderneiros, jovens de classe média que não tinham o que fazer, ou militantes desejosos de enfraquecer o governo federal ou o oposto para o caso de São Paulo, por exemplo, cujo alvo seria o governador Geraldo Alckmin.

Sem dúvida alguma esses protestos são uma novidade do Brasil dos últimos vinte anos. É difícil, se não quase impossível, decifrar o sentido de um movimento que não tem lideranças, ao menos num primeiro momento, não se apresenta como organizado e foge dos moldes tradicionais.

Mídia emitiu julgamentos

Mas o fato é que a mídia impressa, radiofônica e televisiva não se restringiu a descrever os acontecimentos e anunciar a mesma perplexidade que historiadores, sociólogos, cientistas políticos tem demonstrado. A grande mídia apressou-se a emitir julgamentos e apenas quando os próprios jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas começaram a ser atingidos pela violência policial é que o tom mudou.

Estamos diante de um tempo cujo peso da internet ainda não foi completamente apreendido. Vídeos amadores que correram o país e o mundo em pouco tempo puderam pôr em xeque os noticiários da mídia. Os próprios participantes disponibilizavam a manifestação ao vivo, permitindo que a sociedade pudesse fazer comparações e participar do debate sobre os significados de um movimento que começou como MPL (Movimento pelo Passe Livre) e pouco a pouco assumiu outras proporções. A internet retirou da mídia a exclusividade no tocante a informação.

Nos movimentos de rua a que hoje assistimos nas cidades brasileiras pode, sim, haver infiltrações partidárias. Ainda que no Rio de Janeiro existissem curiosos cartazes onde se lia “nenhum partido me representa”. E o protesto aparece contra coisas as mais díspares: construção de Belo Monte, violência, péssimas condições dos transportes – ônibus, barcas, metrô. Dado o tamanho das manifestações, impossível supor que todos os que foram às ruas são infiltrados político-partidários.

Convocação jovem

Sem dúvida, é assombroso que no país da apatia, com jovens desmobilizados e desprovidos de ideologias – porque elas não mais existem –, as ruas estejam sendo tomadas e a convocação parta dessa juventude sem ideais. Mas não é exatamente isto o que ocorre no mundo neste alvorecer do século 21? A “pax econômica” acabou. Não? A sensação de segurança e de que o mundo estava em ordem, tão difundida em boa parte do Ocidente, foi rompida.

Também não há mais ideologias, parâmetros, crenças que norteiem. A revolução não está há muito desacreditada? O movimento das populações não se caracteriza pelo fracionamento? O intelectual engajado está há muito tempo fora de moda. O erudito é um tolo. O importante não é o fracionamento do saber? Num mundo tão fracionado e tão destituído de sentido, como podemos facilmente encontrar sentido no fato de as ruas das principais capitais brasileiras serem tomadas pela população que protesta contra os vinte centavos, contra a precariedade dos meios de transporte, contra os gastos excessivos com a Copa do Mundo, contra a precariedade dos serviços públicos no Brasil e contra outras tantas coisas?

Estranhamos o protesto e buscamos explicações de ordem político-partidária? É razoável que isto ocorra porque a apatia é o que nos caracteriza politicamente ,ou não? Somos o país da festa, do futebol, da cerveja, do jeitinho, do clientelismo, da falta de energia. É isso mesmo, como afirmaram tantos dos nossos intérpretes ao longo do século 20, ou não? Há vandalismo nas manifestações de rua, sem dúvida alguma. Ele deve ser punido legalmente, deve ser condenado como abominável. Mas a utilização da força bruta pela polícia também deve ser fortemente condenada. Assim como deve ser defendido o direito à manifestação.

Poderia ter sido antes

Causa estranheza que a população nunca tenha ido às ruas para protestar contra a existência de um dos piores sistemas de transporte público existentes no mundo. Ah! Sim, na Índia é bem pior. Na Rússia, a educação no trânsito também não é boa. Mas, os transportes nas cidades são muito bons.

Os diferentes segmentos da “classe média” brasileira, quando viajam, utiliza trens urbanos, metrôs, ônibus na Europa, nos Estados Unidos, em boa parte do Oriente Médio, bem como em países do Extremo Oriente e da África. Mas, no Brasil, principalmente em São Paulo, procura-se evitar a utilização ou se utiliza fora dos horários de pico. Os segmentos mais pobres utilizam os transportes públicos nas horas do pico porque não têm mesmo outra opção. Andar de ônibus, trem, metrô ou barca é uma tragédia no Sudeste maravilha. A situação é bem pior no Nordeste e trágica na região Norte do país. A educação e a saúde são outras duas tragédias nacionais. Mas, deixemos isto de lado.

A segunda-feira (17/6) seguiu marcada por manifestações em todo o Brasil. De Fortaleza a Porto Alegre, passando por Brasília, pelo Rio de Janeiro e por São Paulo. A convocação levou às ruas do centro do Rio de Janeiro mais de 100 mil pessoas. Em São Paulo, mais de 65 mil pessoas foram às ruas tomando as principais avenidas da cidade. Os manifestantes que protestavam no Largo da Batata, ponto tradicional da Zona Oeste da cidade expulsaram uma equipe da Rede Globo do ato que aconteceu a partir das 17h, gritos de “Fora Globo” e “Central Globo de Mentiras”. Expulsaram também manifestantes que portavam bandeiras partidárias. Em boa parte das cidades o movimento foi pacífico. Mas, no Rio de Janeiro, um grande número de manifestantes partiu para uma lamentável radicalização depredando o prédio da Assembleia Legislativa, tornando assim extremamente difícil a compreensão do que ocorre nas ruas.

Política não representativa

A estranheza que essas manifestações despertam muito possivelmente está ligada à certeza da apatia que tanto nos caracteriza, bem como a necessidade de se encontrar uma razão para essa movimentação que tomou conta das ruas. Mas nesses tempos de aparente caos que caracterizam o nascente século 21, parece ser difícil se buscar uma explicação apenas a partir do mundo tal como existia até a década de 1990. O que se observa hoje em dia são movimentos sociais multifacetados.

A política tem, evidentemente, suas formas de atuação, mas parece que perdeu a capacidade da representação. Parte da sociedade se conduz a partir da política e principalmente da política partidária. Mas parece que a maior parte, não. Enfim, é muito cedo para se tentar um entendimento do que se passa nas ruas das principais cidades brasileiras. Sem uma organização tradicional, com múltiplas bandeiras de lutas, sem partidos políticos que assumam a liderança do movimento torna-se difícil, no calor dos acontecimentos, uma análise mais precisa dos possíveis significados da revolta popular e seus desdobramentos.

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Maria Emilia Prado é professora titular de História do Brasil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)