Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A sociedade espetacular planetária de maio de 68

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Os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari propuseram duas formas de política para atuar, pensar, criar, ler, viver: uma política existencial molar e uma política existencial molecular. A primeira, a molar, é constituída por planos fixos, segmentados, já instituídos, como certa ideia de esquerda em contraposição a outras não menos previsíveis visões do que seja direita; bem versus mal, povo homogêneo, amigo versus inimigo, centro e periferia; pobre e rico; homem e mulher, heterossexual, homossexual; ser branco, ser negro, ser índio, ser criança, ser latino, ser americano, ser jovem, fases etárias, saberes instituídos, a própria língua, entendida como um conjunto de convenções que nos faz falar cadeira, por exemplo, e imediatamente pensar ou ver uma cadeira, objeto de quatro pernas contendo um suporte onde sentamos para realizar múltiplas atividades cotidianas; enfim, molar é tudo que está estratificado, organizado, dado, realizado, sendo perceptível, dedutível, acreditável. Por sua vez, a segunda perspectiva existencial, a molecular, é precisamente o contrário da molar: é tudo que não está dado, que não está pronto, que não está instituído, nunca é um à priori, de modo que também não é fixo, é movente, metamórfico, uma coisa e outra e outra, sem que possamos regular de antemão; sem que possamos dizer, “é isto”, “é aquilo”, porque é sempre um aglomerado de partículas, de misturas, de heterogêneos, de imperceptíveis, de séries divergentes. O molecular é, pois: o não visto, o não sentido, não pensado, não escutado, não realizado, não esquadrinhado, multiplicidades imprevisíveis.

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O jogo entre a política existencial molar e a molecular determina nossas vidas, sobretudo se o assumimos integralmente, o que só é possível sabendo de antemão que o molar, os valores fixados numa época dada, não é absoluto precisamente porque a sua grande tara, sua, digamos, verdadeira fixação é a conquista ininterrupta do plano molecular, seja administrando-o, seja potencializando suas energias irreprimíveis para conquistas definitivamente molares, como a de cargos eletivos, de lucros astronômicos. Desde que o mundo é mundo, principalmente tendo em vista as civilizações de tradição do oprimido, o desafio dos poderes molares instituídos sempre foi o de submeter o plano molecular, colocá-lo a serviço do molar. A nossa época, principalmente na sua versão falsamente molecular, a ocidental, pode ser simplesmente definida como um período histórico que imita o plano molecular, a fim de a vivermos ou de vivermos nela como se estivéssemos em pleno ciclo da vida livre, irreprimível, marcada por multiplicidades étnicas, de gênero, culturais, etárias, estéticas. Essa é, pois, uma questão crucial, de vida ou de morte, na atualidade: o imperialismo ocidental se especializou, com o uso das novas tecnologias de comunicação, em apanhar o plano molecular, fazendo-o agir a seu serviço, mesmo que acredite que esteja produzindo a sua liberdade molecular, múltipla, irreprimível. A crença atual na espontaneidade juvenil, sobretudo das classes médias, marcada pela alegria, descontração, pela suposta liberdade sexual, pelo respeito às diferenças, enfim, a crença que nossa época tem no plano molecular certamente tem relação com o pior aspecto possível do plano molar: a sua gestão mundial sofisticada pelo imperialismo ocidental.

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Nas civilizações marcadas por religiões semíticas de salvação, como a nossa, a cristã, a mulçumana, a judaica, Deus geralmente é concebido como um centro molar transcendental, um a priori da justiça, da bondade, da beleza, da harmonia, da proteção, por outro lado, o diabo é visto e descrito como molecular, daí a célebre passagem bíblica, em Marcos 5:9: “Então Jesus lhe perguntou: ‘Qual é o seu nome? Meu nome é Legião’, respondeu ele, porque somos muitos’.” O diabo, pois, é molecular porque é legião, sempre é um e outro de outro, híbrido, sem que possa ser definido de antemão, não sendo circunstancial que é também vara de porcos, um indefinido coletivo considerado sujo, bestial, incontrolável.

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É possível conceber o povo, portando, sob duas formas: um povo molar e um povo molecular, num contexto em que o primeiro é apanhado pela transcendência molar, por Deus, pelo Estado, pelo mercado, pelas instituições, pelos saberes, sendo harmonizado, esquadrinhado, enfeixado, organizado, amansado, pacificado; e, por sua vez, o segundo, o povo molecular, é geralmente percebido como um povo sem direção, descentralizado, desorganizado, invadindo ruas, instituições, sem que possamos apreendê-lo, domesticá-lo, tal como a vara de porcos – um coletivo inapreensível, sujo, impuro, híbrido, imperceptível, imprevisível. Por outro lado, como o contemporâneo é o período de imitação do plano molecular, uma dissimulada época que a si mesma vive como se realizasse por todos os lados os fluxos livres das multiplicidades imperceptíveis, com sorrisos, é possível deduzir que na verdade o nosso atual período histórico se caracteriza como a de um povo molecular apanhado e esquadrinhado pelo plano molar, de tal maneira que acredite que, ao se expressar supostamente de forma criativa, destemida, revolucionária, esteja livre dos planos molares tradicionais, como o plano molar do patriarcado, logo da opressão de gênero, e/ou o plano molar racista, logo da opressão étnica; ou ainda o plano molar da concentração de riqueza, sob a forma de opressão de uma classe sobre as outras.

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A grande sacada do imperialismo ocidental, como forma planetária de gestão de ilusões no interior do capitalismo contemporâneo, é a produção (via tecnologias de comunicação, via sociedade do espetáculo) de um teatral povo molecular que é paradoxalmente tanto mais molar quanto mais acredita ser molecular. Um, portanto, molecular povo molar que, ao ter a ilusão de que se expressa como molecular, como povo livre de poderes instituídos, realiza sem que o saiba (e muitas vezes sabendo) o jogo dos poderes molares de sempre, como o molar e milenar poder patriarcal, como o molar e não menos milenar poder étnico, branco, se consideramos a história da modernidade ocidental; como enfim e em começo o poder molar do sequestro das riquezas comuns. Nossa época acha que deve se livrar dos planos molares históricos, como, por exemplo, o molar plano maniqueísta que divide o mundo em bem e mal, e, achando, ilude-se que basta dizer que não é molar que a gente deixa de ser, espontaneamente, como um ato de vontade individual e de pequenos grupos ou segmentos de classe. Esse é, pois, o pior obstáculo do contemporâneo: a crença de que estamos realizando as liberdades irreprimíveis do plano molecular, abandonando e desqualificando, como inferiores, todos os planos molares, sem saber que estes continuam nos esquadrinhando, vigiando, orquestrando, tomando, usando-nos a seu bel-prazer, principalmente o plano molar-mor da atualidade: o imperialismo ocidental, especialista em sequestrar povos moleculares e fazê-los agir em seu nome acreditando produzir a sua própria liberdade.

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Ser molar, hoje, portanto, é acreditar que somos moleculares, abandonando totalmente “velhos” planos molares produzidos pelos povos moleculares do mundo, como o da luta de classes, o da necessidade de produzirmos uma sociedade pós-capitalista, dos comuns, comunista. Nossa época iludidamente molecular orgulhosamente defende a dúvida, a confusão, a incerteza, como parâmetros de uma supostamente livre sociedade molecular, num contexto em que necessitamos como nunca dos molares planos das seguintes certezas realmente liberadoras: a certeza de que é impossível uma sociedade realmente molecular ou a produção de uma civilização de povos moleculares sem a superação do capitalismo, imutavelmente molar; ou a molar certeza de que a opressão de classe, de alcance planetário (sob a forma molecular de intensa divisão social do trabalho e dos saberes), é ainda o grande desafio a ser superado, se quisermos realmente produzir, em processo, um povo molecular. O abandono principalmente dessas duas certezas molares precedentes, a necessidade de produção de uma sociedade pós-capitalista a partir do fim da opressão de classe, é o que tem nos tornado extremamente vulneráveis hoje, alegres presas fáceis do, insisto, mais funesto plano molecular jamais existido, acúmulo sofisticado e tecnológico de todos os outros: o imperialismo ocidental.

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Por outro lado, não existe maior perigo para as esquerdas que o de se tornarem molares, acreditando-se moleculares. Acreditando, pois, que o povo molecular está nas ruas realizando involuções “revolucionárias” líbias, egípcias, sírias, espanholas, brasileiras e tantas outras do passado mais ou menos recente, chamadas de “revoluções das tulipas”, das laranjas, das cores, tendo como parâmetro antes de tudo o horizonte da liberdade civil, como se este fosse o lugar por excelência de realização de um povo molecular. As esquerdas estão no geral sem norte e muitas vezes defendem a falta de norte como uma salutar forma de produção de perspectivas moleculares. Elas não podem, sob hipótese alguma, abandonar alguns importantes e indispensáveis planos molares duramente conquistados, de forma molecular, sempre, a saber (e repito): o plano molar de que é preciso cobrar sim dos movimentos sociais, confundindo-se com eles, sendo eles, perspectivas pós-capitalistas claras, objetivas, sabendo de antemão que o imperialismo é o nosso molar inimigo comum, razão pela qual as nossas bandeiras, ao irmos para as ruas, deve ter esse norte, um norte principalmente fundamental para os moleculares povos do sul: o norte sul ou o sul norte de que é preciso ir para as ruas sim contra o capitalismo, logo contra as oligarquias, logo contra as corporações, logo contra o imperialismo ocidental, plenamente consciente de que este é o gestor mundial do engano geral em que nos metemos ao nos acreditarmos moleculares sem realizarmos um efetivo exercício de desqualificação e de destronamento do mais nefasto plano molar em que estamos mergulhados muito além do pescoço: a civilização ocidental e seus molares esteios fundamentados no fetiche da mercadoria, na submissão planetária à forma-dinheiro e também na submissão ao fetiche desta outra mesma mercadoria: a de que as sociedades civis são o verdadeiro lugar do plano molecular de nossa época.

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Um verdadeiro povo molecular, portanto, não pode, sob hipótese alguma, abandonar os planos molares conquistados historicamente por suas revolucionárias lutas moleculares do passado só porque acredita que hoje ele é espontaneamente molecular. Maio de 68 foi apanhado, como movimento molecular, pelo plano molar das estratégias atuais do imperialismo ocidental, que nos vende (se trata mesmo de vender) a ilusão, por exemplo, de que a juventude (principalmente as de perfis de classe média, marcadas pelo estilo americano de vida) é o espontâneo, alegre e sexual corpo/rosto da produção de um mundo molecular, de modo que, para que este último aconteça, é necessariamente fundamental que abandonemos a figura do adulto e do mestre, vista e concebida por todos os lados como autoritária, despótica, molar. Maio de 68, na França, inventou a juventude, tal como a conhecemos no contemporâneo. A hipótese principal é: maio de 68, como movimento revolucionário que procurou destronar a figura do mestre e do adulto foi capturado pelo imperialismo ocidental, razão pela qual produzimos sim uma juventude presunçosa, que tende a desqualificar os planos molares conquistados pelos (também jovens) moleculares povos do passado porque, de forma molar, acredita que esses planos (exemplos de sempre: a produção de uma sociedade pós-capitalista, o fim da opressão de classe) são anacronismos defendidos por carrancudos adultos que insistem em se posicionar como não menos anacrônicos e superados mestres.

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As esquerdas tendem a fazer uma conciliação entre Deus e o Diabo quando o assunto é o povo revolucionário, molecular, pois geralmente o concebem ao mesmo tempo como vara de porcos, revoltando-se, mas também como povo homogêneo, marcado pela unidade transcendental, como se o povo se revoltasse por motivos semelhantes: a fúria contra um ditador, contra um governo, contra uma igual situação de injustiça patrocinada por tal e qual estado, sempre tendo em vista a premissa molar de que o povo é o povo da revolução, da luta por justiças, genuinamente anticapitalistas ou que o povo o é de determinado país, o povo brasileiro, o argentino, o venezuelano, o americano, sem considerar, por exemplo, a molar molecular divisão do povo, sua dissonância, seus dissensos irreconciliáveis, como a divisão de classes, de língua, étnicas, culturais; e também seu perfil híbrido, nacional e estrangeiro, rural e urbano, anacrônico e futurista, metamórfico como o diabo, sem que possamos enfeixá-lo por qualquer forma de a priori.

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Muito do que tem sido analisado sobre as manifestações que tomam as ruas do Brasil, previsivelmente parte de pontos vista típicos de uma política existencial molar. As análises feitas pelo mundo daqueles que se consideram de esquerda exigem perspectivas moleculares, se quiserem realmente não apenas entender de antemão a salutar ocupação das ruas, com vistas a produzir um país mais justo, mas também se quiserem influir de modo mais consequente nos rumos dos acontecimentos. E isso por uma questão muito simples: o imperialismo, como gestor mundial do capital, embora molar, planeja e age de forma molecular, sabendo claramente que o grande jogo, o da dominação total da espécie humana, só é vencido realmente se o plano molecular, o da vida em sua intensidade de criação, de tesão, de critica, de libertação, de desejos, justiças, for cuidadosamente apanhado pelo plano molar dos interesses, por exemplo, das multinacionais – verdadeiro poder do contemporâneo, mais que o poder do Estado.

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No entanto, como o que era molecular tende a se tornar molar, é preciso ter clareza, fora de qualquer dúvida molecular (ou molar) de como devemos agir. Na primeira versão do filme Matrix (1999), num momento culminante da narrativa, o personagem Morpheus diz claramente para Neo: “Não temos mais tempo para dúvidas!” Se quisermos realmente ser jovens (neo, como sabemos, significa novo), esta é também, ainda que molar, a verdadeira premissa de nossa época: “Não temos mais tempo para dúvidas!”. Não temos igualmente mais tempo para brincarmos de confusos ou acharmos que somos espontâneos numa civilização de hierarquização, de polarização e de opressão, como a nossa, fiel herdeira das civilizações precedentes, igualmente hierarquizantes, polarizadoras e opressoras. Vivemos, portanto, numa civilização velha de modo que ser novo é também e antes de tudo entender claramente as consequências desse argumento: temos sim que superar a civilização burguesa, começando por superar os principais esteios que a sustentam, com clareza e sem dúvida: o imperialismo ocidental, fundamentalmente bélico; as oligarquias, os despóticos poderes das corporações, assumindo integralmente a política como espaço de decisão sobre os destinos da humanidade inteira, independente de grupos, de países, de qualquer outro referencial segmentado, particular.

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Leituras feitas de sites de esquerda pelo mundo afora, principalmente de analistas políticos internacionais, tendem a assumir os seguintes pressupostos molares: 1) Os governos do PT, de Lula e de Dilma, traíram totalmente a classe trabalhadora, ao não se libertarem do neoliberalismo, principalmente considerando seus dois principais eixos molares, o da chamada autonomia do Banco Central e o da política submissa de garantia de um insustentável superávit primário, fonte criminosa de enriquecimento de meia dúzia de credores, abandonando, por exemplo, setores como o da saúde, educação, moradia, reforma agrária, transporte coletivo, pois tanto a política dos juros altos, estabelecidos pelo Banco Central, como o suicídio do superávit primário constituem, juntos, a verdadeira sangria do povo brasileiro e a continuidade da nossa rendição ao neoliberalismo. Se quisermos dar consequências a esses argumentos, absolutamente legítimos, é preciso perguntar, também: onde o povo molecular na rua está claramente exigindo o fim de sua escravidão relativamente à autonomia do Banco Central e de seu sequestro realizado pelo superávit primário? Ou será que, mesmo sem o saber e que tenha todos os motivos do mundo para se rebelar, o supostamente molecular povo na rua não foi capturado para precisamente retirar do poder um governo considerado duvidoso (para as oligarquias dominantes) precisamente porque não tem respeitado tanto assim o imperativo categórico dos juros altos ( da autonomia do Banco Central) e também o do superávit primário? Onde o povo molecular na rua, insisto, para exigir que o governo diminua drasticamente os juros (taxa Selic) e acabe logo com a verdadeira corrupção que é o superávit primário, investindo todo esse recurso nas cidades brasileiras, editadas de forma duramente molar pela divisão de classe que empurra sem dó nem piedade o povo pobre (vara de porcos?) para as periferias de periferias?

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Em diálogo com David Harvey, existe uma relação direta entre os espaços da cidade, fundamentalmente molares (editados previamente pelos interesses especulativos, imobiliários, multinacionais, por segmentos de classe) e a edição privatista e individualista da cultura prevalecente em nossa época pelo menos desde a década de 70, qual seja: a cultura neoliberal. As cidades possuem, pois, uma divisão espacial previamente editada no âmbito de sua configuração de classe, intensificada no período neoliberal, que é o que ainda vivemos. É evidente que as manifestações que tomaram as cidades nas últimas semanas têm relação direta com as históricas exclusões inscritas no próprio tecido urbano, não sendo circunstancial que tudo tenha começado com um insuportável aumento da passagem de ônibus, independente se foi aquém da inflação, pois a mobilidade urbana constitui o mais flagrante delito contra o direito de ir e vir, deixando claro o impeachment contra a cidadania, a verdadeira premissa urbana de nossa época.

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É igualmente por isso que um movimento insubmisso, jovialmente indignado, que se volta contra o segregacionismo urbano, enchendo suas ruas e avenidas, não deve permitir, no processo de sua constituição: 1) que o monopólio da palavra elitista, capacho do imperialismo americano, marca do sistema midiático brasileiro, edite e seqüestre a luta por um país justo ao reforçar as tendências mais nefastas da exclusão urbana, as quais se definem concretamente pelas péssimas condições de mobilidade e de moradia precisamente dos pobres e dos negros, empurrados cada vez mais para periferia de periferias, pela implacável volúpia da especulação imobiliária; 2) que a questão política da edição, portanto, não se dá apenas no âmbito dos suportes midiáticos, mas também no tecido urbano, ele mesmo editado previamente pela evidente repartição classista e racista do espaço urbano, com a região dos ricos, dos pobres, dos miseráveis, dos excluídos mesmo da exclusão, tal o abandono histórico da maior parte da população; 3) que intervir no espaço urbano é também uma questão de edição, no sentido claramente político, razão por que tal intervenção não pode negar a política e muito menos não pode ser uma manifestação contra a política, mas antes de tudo uma manifestação que leve em conta que o espaço urbano é ele mesmo um espaço de ignominiosa exclusão de classe, étnica, de gênero, epistemológica; 4) que qualquer intervenção no espaço urbano que não leve essas molares edições prévias, ao mesmo tempo contra a população pobre, contra os negros, contra a maioria esmagadora, será facilmente reeditada pelas corporações midiáticas nacionais e internacionais e servirá inevitavelmente aos interesses mais escusos, fascistas e golpistas; 5) que é, por isso mesmo, preciso decidir, decisão revolucionária, realmente indignada, sobre qual espaço da cidade vale a pena ser ocupado; 6) que é preciso evitar a tudo custo ocupar os espaços da cidade nos quais os trabalhadores mais excluídos geralmente circulam; 7) que a cidade a ser ocupada é precisamente a dos ricos, a fim de não sermos apanhados pela edição prévia de estarmos tomando precisamente a cidade já tomada, enquanto os ricos nos assistem confortavelmente, em conformidade com as edições prévias e as reedições posteriores elaboradas precisamente pela TV Globo e pelo conjunto do oligopólio midiático; 8) que não temos que ir para as ruas com cartazes esperando que o sistema midiático nos apanhe e nos mostre para o mundo porque esse tipo de perspectiva está previamente editado pela sociedade do espetáculo; 9) que a luta é também contra a sociedade do espetáculo; 10) que o imperialismo é o gestor mundial das edições prévias, presentes e futuras de modo que sua principal preocupação é manter a ordem imperialista das edições instituídas, razão por que não nos iludamos, ele conhece nossos passos;11) que é preciso ir às ruas contra as edições prévias, presentes e futuras do imperialismo, conhecendo seus interesses prévios, presentes e futuros com relação ao Brasil, à América Latina, ao mundo;12) que tudo está perdido se acreditamos apenas no espaço urbano concreto, sem levarmos em consideração a necessidade imperiosa de ocuparmos outros espaços, o jurídico, o subjetivo, o bancário e sobretudo o mediático, por ser o virtual espaço de reedição do já editado: a miséria da vida e do mundo;13) que o lugar da mentira e da demagogia no contemporâneo é o das corporações midiáticas, de modo que sob hipótese alguma devemos cair em suas artimanhas; 14) que ou ocupamos o espaço midiático ou estaremos condenados, independente de nossas verdadeiras intenções, a sermos inevitavelmente ocupados, ao sermos reeditados em conformidade com os interesses, sobretudo imperialistas, realmente responsáveis pela miséria urbana do Brasil e do mundo.

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O imperialismo ocidental não é uma transcendência, isto é, não é um fora em relação às nossas supostas moleculares vidas, pois se manifesta em nós mesmos, em nossas supostas multiplicidades quando, por exemplo ocupamos as cidades, para nos manifestarmos, sem considerar que os centros urbanos do Brasil e do mundo estão, de forma molar, previamente editados pelos interesses especulativos, imobiliários, midiáticos, oligárquicos. Se não reeditamos essas edições prévias dos centros urbanos, mais que ocuparmos as cidades, estamos sendo literalmente ocupados por ela, logo pelo imanente e onipresente imperialismo ocidental, que se manifesta concretamente no jogo das edições passadas, presentes e futuras, a serviço dos interesses de suas oligarquias.

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Desde que o mundo é mundo, como aqui foi dito, o grande jogo despótico dos poderes constituídos foi e é: capturar as multiplicidades, esconjurando seus demônios. Na sociedade do espetáculo, que é a que realmente vivemos, as cidades são antes de tudo cidades espetaculares, fortemente editadas pelas edições e reedições elaboradas despoticamente (nunca somos consultados) pelo tirânico e molecular (porque sabe sorrir) poder das corporações midiáticas, sempre a serviço do imperialismo ocidental. Ir às ruas para produzir fisicamente o espetáculo no interior de uma cidade espetacular é simplesmente suicídio ao mesmo tempo molar e molecular, pela simples razão de que fatalmente seremos reeditados em contextos a partir dos quais e nos quais nossos mais legítimos desejos de justiça serão capturados e transformados em dezenas de milhões de brasileiros exigindo dos molares poderes constituídos a volta da ordem imperialista, sob a forma de golpe militar, jurídico, parlamentar, midiático, moleculares.

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É assim que esconjuraremos, nós mesmos, nossos demônios, acreditando que estamos sendo sujeitos moleculares de edição, em contextos posteriores, de reedições, nos quais e a partir dos quais somos e seremos espetacularmente reeditados em conformidade com o molar plano dos donos do mundo.

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É preciso ocupar a sociedade do espetáculo, desestruturá-la de sua função espetacular, que transforma sem cessar tudo em mais espetáculo, inclusive as possíveis revolucionárias revoltas juvenis.

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Ocupemos, pois, aqueles que nos ocupam desde antes. Ocupemos as mídias corporativas e as usemos, de forma molecular, para que editem notícias, filmes, danças, novelas, entretenimentos, reportagens, músicas, poemas, ficções e realidades de um povo realmente molecular porque sabe claramente que jamais pode abandonar as conquistas molares fundamentais para a vida: a do pão pra tod@s; a da moradia digna para tod@s, a do transporte urbano digno, que de forma alguma pode ser privado; a de que um povo livre, que produz os caminhos moleculares e molares de sua infinita justiça, é antes de tudo um povo que não se submete aos poderes instituídos, sabendo, na atualidade, conhecer e reconhecer, sem a mínima dúvida, o mais nefasto deles: o imperialismo bélico ocidental, que nos ameaça destruir a tod@s com as atômicas armas moleculares vindas de todos os lados: a bomba atômica, as radiações bombásticas de fósforos brancos, de plutônios empobrecidos, as de nêutrons; as igualmente radiativas bombas especulares que nos tornam inevitavelmente espetaculares, quando devemos ser simplesmente amáveis amantes das infinitas igualdades, as únicas que nos tornarão, inventando-as, realmente povos moleculares.

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Para tanto, nosso maio de 68, quando não mais precisaremos de mestres, não mais será editado por insubmissos jovens espetaculares, porque tod@s seremos velhamente jovens, no devir infância de nossa jovialidade velha, porque jamais recusará as duras aprendizagens molares do milenar passado opressor que nos tem tornado tod@s vetustos quanto mais nos pensamos espontaneamente livres de suas moleculares molares garras despóticas, soberanas, étnicas, patriarcais, midiáticas, cibernéticas, no enquadramento espetacular de um estilizado sorriso para a morte, enquanto os fluxos da rede nos enreda quanto mais nos sentimos nós mesmos partículas da matrix das multiplicidades iludidamente espontâneas, nos servidores do capital.

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Aí, sim, seremos nosso junho de ninguém, porque de qualquer um, porque realmente de carne e osso, fluxos de abraços.

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Luis Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)