Friday, 20 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Memorial da biometrização eleitoral

Como surge a biometria no sistema de votação no Brasil

I

Como foi tomada a decisão de implantar identificação biométrica no processo de votação?

Difícil saber com precisão, pois os documentos públicos que podem ser encontrados com confiabilidade de origem, quando tratam do assunto já o dão como decidido, ou como óbvia evolução natural do processo. Este texto procura elucidar como tal decisão pode ter sido engendrada, e detalhes importantes do seu contexto.

Certamente a decisão não teve origem em projeto de lei ordinária, pois o primeiro projeto que trata do assunto a se tornar lei, a de nº 12.034/09, tramitou durante um período em que implementações da identificação biométrica, começando por um recadastramento com coleta de dados de impressões digitais do dez dedos e foto de alta resolução, já tinham sido ou estavam sendo executados pela justiça eleitoral em algumas cidades.

Origem obscura

Tampouco parece ter tido origem em projeto técnico adequado ao aprimoramento do processo de votação, no sentido insinuado em propaganda oficial, como explico. Para que um método de identificação biométrica funcione adequadamente, no caso para impedir que um votante se passe por outro, são necessárias algumas etapas preliminares, das quais podemos destacar quatro que são essenciais para um tal aprimoramento:

Etapa 1:estudo dos possíveis métodos, para escolha de um que seja compatível com a capacidade computacional do sistema a cujo acesso esse método irá controlar, neste caso, ao sistema de votação da urna eletrônica em uso no Brasil;

Etapa 2: escolha de um método de contingência para tratar dos casos de falha ou de falso negativo — tipo de erro em que o dado biométrico de uma pessoa cadastrada não é reconhecido como dela — no controle da votação, inevitáveis em qualquer método ou com qualquer sensor de identificação biométrica, já que o direito de votar depende do regime democrático e não de escolhas tecnológicas para a votação;

Etapa 3: seleção de sistemas de cadastramento e batimento de dados biométricos para o método escolhido, que sejam compatíveis tanto com o sistema de gestão do cadastro de eleitores, a ser integrado a este nos tribunais da justiça eleitoral, quanto com o subsistema de batimento que controlará acesso de eleitores à votação, a ser integrado ao sistema da urna eletrônica junto com o de contingência escolhido na etapa 2;

Etapa 4: montagem e execução de um projeto piloto, em pequena escala, que teste as escolhas anteriores quanto aos critérios que as teriam guiado, para validar na prática a viabilidade e adequação do projeto em termos do custo/benefício. Começando por algum critério objetivo de eficácia, como por exemplo, o de que o método de identificação biométrica escolhido na etapa 1 e o método de contingência escolhido na etapa 2 sejam em conjunto mensuravelmente mais resistentes a fraudes do que o método a ser substituído, e terminando com critérios licitatórios para implementação do projeto básico final caso algum sistema pre-selcionado na etapa 3 passe pelo critérios de viabilidade e eficácia.

A primeira vez que a justiça eleitoral abordou publicamente o assunto foi em em 7 de Abril de 2005, no seminário “Identificação do Eleitor e Reforma Política“ que realizou no Kubitschek Plaza em Brasília, quando manifestou intenção de introduzir identificação biométrica no processo de votação. Isto faria parte do que se chamou de “Projeto Atualização do Cadastro de Eleitores”. Para o seminário foram convidados representantes de partidos políticos e especialistas interessados, e este autor compareceu. Ali se pôde constatar, dentre outras coisas, indícios de que uma decisão a respeito já havia sido tomada e que isto estava atropelando algumas dessas etapas essenciais.

Planejamento confuso

Os especialistas arrolados pelo Tribunal Superior Eleitoral Tribunal Superior Eleitoral (TSE), responsáveis por projetos de informatização das eleições como Paulo Nakaya, apesar de usarem linguagem assertiva nas apresentações do seminário, inclusive sobre a escolha do método — o de impressões digitais –, nenhuma menção fizeram a respeito do método de contingência para tratar dos falsos negativos. Ou seja, nenhuma palavra sobre como iriam identificar e liberar o voto de eleitores que forem recusados pela biometria mas que estiverem devidamente cadastrados na seção eleitoral.

Quando questionados sobre qual seria o método de contingência para tratar falsos negativos, isto é, para decidir sobre eleitores automaticamente recusados que alegarem erro da biometria, para verificar se se trata mesmo de erro operacional ou de falsa alegação, os especialistas do TSE mostraram surpresa, como se desconhecessem até a possibilidade de erros técnicos na operação com sensores biométricos. Tal reação indicava que as etapas 1 e 2 haviam sido ignoradas, apesar das apresentações indicarem que já havia sido escolhido ao menos o método a ser implementado.

Ignoradas porque todo método de identificação biométrica é por natureza probabilístico, o que significa que todos eles têm um calcanhar de Aquiles na incidência de falsos negativos e falsos positivos, e qualquer pessoa que faça um mínimo de estudo sobre a utilidade da biometria logo se depara com esse fato, de que qualquer sensor de identificação biométrica apresentará esses dois tipos de erro operacional, com frequências previsíveis. Essas frequências são normalmente divulgadas pelo fornecedor do dispositivo, com descrição das condições em que foram medidas.

Um falso positivo é o tipo de erro em que o dado biométrico de um estranho é automaticamente reconhecido como se fosse de alguma pessoa cadastrada. A frequência de falsos positivos na utilização de um tipo de dispositivo num sistema também deve compor as avaliações de viabilidade e custo/benefício na etapa 4. Os critérios nessa etapa devem ser distintos para aplicações em controle de acesso (p.ex., identificação de eleitores) e para aplicações em forênsica (investigação criminal). A resposta ao questionamento sobre falsos negativos, dada pelos especialistas do TSE na ocasião, foi de que iriam estudar uma “solução para o problema”; mas o tempo passou e até hoje nenhuma solução satisfatória foi divulgada.

Carros e bois em ordem?

Antes que o estudo de seus especialistas produzisse alguma “solução” para tal problema, o TSE ocupou-se dos preparativos para um projeto-piloto, que chamou de “1ª fase” do seu Projeto Atualização do Cadastro de Eleitores. Começaram por uma licitação assaz estranha, aberta em Setembro de 2005 e eivada de irregularidades(falta de abordagem ou planejamento para a contingência de erros operacionais na biometria, falta de fundamento legal para obrigar eleitores a fornecer dados biométricos, especificação dirigida para produtos específicos e quantidades excessivas, verba específica inexistente para o projeto, modalidade contratual que força o vencedor a subcontratar). Sobre essas irregularidades o Ministério Público (MP) e o Tribunal de Contas da União (TCU) foram acionados, mas até hoje nada fizeram.

Em duas audiências públicas para esclarecimentos sobre esse projeto e licitação, em 28/6/2005 e 04/10/2005, a primeira presidida pelo Ministro Caputo Bastos e a segunda pelo Diretor Geral do TSE, restou absolutamente claro que ninguém lá havia planejado nada para a contingência de erros operacionais na biometria. Nada sobre como garantir o direito do voto ao eleitor legítimo que tiver sua identificação recusada pelo sistema de identificação biométrica que o TSE estava licitando. E na segunda audiência, pelo menos duas empresas pré-selecionadas para a licitação reclamaram da especificação do subsistema para coleta, compressão e batimento eletrônico de impressões digitais (item 4.3.2.2.1 doprojeto básico SCIdent), no que esta exigia em termos de padrões fechados e certificações de um órgão de segurança estrangeiro, o FBI dos EUA.

Sem atender às reclamações, dando curso a tal licitação, o TSE adquiriu 25 mil urnas com sensor biométrico da empresa Diebold-Procomp em 2006, e 60 kits de coleta eletrônica de digitais em 2007. E só no fim de 2007 o TSE vem a público com um plano para execução dessa “1ª fase”: num documento intitulado “Relatório de Gestão 2007_final“, aparece uma referência oblíqua ao que se assemelha a um simulacro de etapa 4. Na página 17 desse documento podemos ler:

“Outra novidade nas novas urnas será a utilização da identificação biométrica do eleitor, nos municípios de Fátima do Sul (MS), Colorado do Oeste (RO); e São João Batista (SC). Esse projeto-piloto tem o objetivo de validar a solução de reconhecimento biométrico nesses estados, que dispõem de urnas eletrônicas de 2006, nas quais já está disponível o dispositivo de biometria.”

Objetivos e objetivos

O relatório informa ainda que “A Justiça Eleitoral coletará dados biométricos dos eleitores desses três municípios no mês de março de 2008 e os utilizará para habilitar o eleitorado local para as eleições de outubro.” Porém, um “projeto-piloto” para validar, em três cidades pequenas, uma proposta já licitada e implementada para todos os respectivos estados não é um teste para avaliar sua viabilidade e eficácia. Ao melhor é um simulacro disto. De fato, o relatório prossegue, tentando justificar o projeto: “O objetivo do cadastramento biométrico é excluir definitivamente a possibilidade de uma pessoa votar no lugar de outra, …” comprovando que a etapa 2, que de início parecia ignorada por negligência, estava sendo ignorada de caso pensado. É o que tudo isso informa a quem ouviu promessas de “solução” para a contingência dos inevitáveis falsos negativos, dois anos antes.

Este caso pensado, que explora o ingênuo fascínio de leigos com tecnologias digitais, se revela ainda mais bizarro no restante verniz de justificativa: “…, já que a lei não exige a apresentação de documento com foto no momento da votação, o que em tese facilitaria [fraudes].” A Lei nº 7.444/85 dispensa o eleitor de apresentar foto mas apenas no alistamento eleitoral, no momento em que ele se cadastra para votar, e não na votação, momento em que ele, ao contrário do afirmado, pode ser exigido a apresentar documento com foto para identificação. Pode ser exigido por força de Resolução do TSE, como viria a confirmar o Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4467, baseada por exemplo no artigo 23 da Lei nº 4.737/65. Sem se gastar um centavo do que o TSE vem gastando com biometrização. Quanto?

Ainda ao contrário, o que nenhuma lei vigente autoriza a justiça eleitoral a fazer, é obrigar o eleitor a fornecer-lhe dados biométricos, como quer a Resolução TSE 23.335/11 para o recadastramento obrigatório em curso. Pois esse recadastramento ocorre após o STF ter suspenso o artigo 5º da Lei nº 12.034/09 na ADI 4543, único instrumento legal que a autorizava a isso (vide petição de dispensa). Nem a presumir que uma lei futura autorizaria essa forma de recadastramento, necessária para a identificação biométrica na urna, após ela licitar e comprar mais de trezentas mil urnas com equipamento biométrico já embutido. No relatório, nenhuma pista sobre a tomada de decisão que nos atropela com essa “novidade”. Salvo talvez de forma oblíqua, onde se narra uma visita do embaixador dos EUA ao presidente do TSE em 15/2/2007, documentada no site do TSE.

 

II

Como foi implantada a identificação biométrica no processo de votação

Antes da Lei nº 12.034/09 existir, portanto, a justiça eleitoral pôs em marcha, como anunciara o TSE no “Relatório 2007”, seu plano para a “1ª fase”: em Março e Abril de 2008 fez o recadastramento de eleitores nas cidades de Colorado do Oeste (RO), São João Batista (SC) e Fátima do Sul (MS), com coleta das impressões digitais dos dez dedos e de foto digitalizada em alta resolução de cada eleitor; em Junho e Julho fez testes simulados com os próprios eleitores; e em outubro, fez a eleição já com identificação biométrica na urna, nessas cidades. Contudo, dos dados biométricos colhidos, nenhum dado colhido foi usado para cruzamento no cadastro, visando a evitar o alistamento de eleitores fantasmas, com dados biométricos de alguém já cadastrado com outro endereço noutra seção. Se essa fase foi mesmo de teste, o que podemos considerar como resultado?

Finalmente, uma solução?

O objetivo anunciado no Relatório 2007, depois insinuado em propaganda oficial massiva, o qual ainda poderia justificar-se se os dados biométricos colhidos fossem cruzados (para detectar eleitores fantasmas), não se concretizou, pois nenhum cruzamento ali foi feito. A estranha licitação de setembro de 2005 sequer contemplou esse cruzamento em seu “projeto básico”. A “1ª fase” não serviu portanto nem para estimar custos futuros. Ao final, nada do que aí foi feito justificouuma vírgula sequer do pretenso objetivo do projeto. Por que? Porque a “solução” para os falsos negativos da biometria, adiada até esse primeiro teste de produção numa eleição oficial, finalmente surge… acochambrada: o mesário teria que liberar o eleitor da forma como se fazia sem biometria. Através de senha administrativa, agora disfarçada com o esotérico apelido de “código específico”.

Com esse disfarce oficializado em norma, pelo inciso VII do Art. 4º da Resolução TSE 22.718/08, e depois pelo inciso XII do Art. 2º na Resolução TSE 23.208 (para a eleição de 2010) e pelos Incisos VI e VII (alínea b) do Art. 84 da Resolução TSE 23.372 (para a eleição de 2012), a prometida “solução” veio a se revelar solução nenhuma. Fica tudo como estava; toda essa biometrização está sendo em vão, ao menos quanto ao objetivo insinuado pela propaganda oficial massiva. Pois quem antes se escalava para participar de fraudes eleitorais liberando a urna da sua seção para alguém “da turma” votar pelos ausentes, deve ter logo percebido. E decodificado: a senha do mesário continua liberando a urna para receber voto, agora com o codinome de “código específico”, camuflada por onerosa parafernália biométrica sob enganosa propaganda goebelliana.

Com efeito, na fase seguinte, quando mais de um milhão de eleitores já estavam biometricamente cadastrados, a eleição de 2010 revelou números que falam por si. Com mais eloquência que qualquer teoria, conspiratória ou juridiquesa que seja. Quando o uso da biometria atingiu 63 cidades em 23 estados, as frequências com que esse codinome foi usado, na teoria para resolver falsos negativos, puderam então ser objetivamente medidas. E aí, na prática, a teoria da propaganda oficial fica invertida: sendo o método de identificação para contingências o mesmo que o anterior à biometria, num caldo cultural fervido em propaganda enganosa e ingênuo ufanismo tecno-triunfalista a biometria só produziu um efeito, o de camuflagem. Para os mesmos caminhos matreiros, antes e ainda trilháveis para fraudes cadastrais, aquelas em que alguém vota por outro eleitor.

Efeitos colaterais

O fornecedor do sistema biométrico das urnas atesta que os falsos negativos na identificação de cadastrados deve girar em torno de 1%, enquanto os dados oficiais do TSE nessas 63 cidades mostram que o método de contingência foi usado em média com 7% dos eleitores. Isto quer dizer incidência de “erros” sete vezes maior do que o esperado. Será que esse fornecedor enganou o TSE? Ou será que mesários a serviço de grupos organizados para fraudar eleições decodificaram corretamente as duas possíveis utilidades desse “código específico”? Para que cada (e)leitor possa adivinhar por si, tabulamos alguns desses números em mais detalhes: o quadro abaixo traz uma amostra das “piores” performances da identificação biométrica nesta 2ª fase, em seções eleitorais onde o mesário estaria, digamos, mais afoito (cópias dos boletins oficiais aqui).

 


Município

Estado

Zona

Seção

Comparecimento
de votantes

Habilitados por
senha do mesário

% de eleitores
não identificados
por biometria

Encerramento
da votação

Marimbondo

Alagoas

43

34

223

145

65,0 %

17:42:03

Quebrangulo

Alagoas

28

16

270

160

59,3 %

19:59:25

Igaci

Alagoas

45

64

281

128

45,6 %

22:14:41

Paço do Lumiar

Maranhão

93

114

263

105

39,9 %

17:42:47

Paço do Lumiar

Maranhão

93

82

330

112

33,9 %

18:24:54

Piripiri

Piauí

11

172

303

83

27,4 %

20:58:26
 

 

Doutra feita, os dados biométricos colhidos em recadastramento mas não usados na identificação do votante só aumentam. Na 1ª fase, em 2008, a foto digital, tomada em alta resolução, sequer foi incluída no Título de Eleitor. Na 2ª fase, em 2010, dados de seis dedos foram também excluídos da identificação biométrica na urna. Na 1ª fase surgiram enormes filas na votação, porque a contingência para tratar falso negativo era acionada só após o batimento (busca de similar no cadastro) com o sensor da urna ter falhado com todos os dez dedos do eleitor. Em São João Batista, isso chegou a levar mais de 6 minutos, com um eleitor. O batimento na 2ª fase foi então reduzido para apenas os dedos indicadores e polegares. E na eleição de 2012 foram só dois dedos (os indicadores), pois em 2010, apesar de haver urnas mais caras, com maior capacidade de processamento e memória compradas em 2009, longas filas persistiram com a contingência acionada após falhas com quatro dedos.

Ainda, a identificação por biometriana urna só complica a situação de outras medidas de segurança, que deveriam operar em conjunto para pretenderem eficácia. O teste da Votação Paralela, exigido por lei, não pode ser corretamente realizado com urnas biométricas, pois os dados biométricos dos eleitores numa urna sorteada para teste tem que ser trocados pelos dados daqueles que realizarão o teste. Porém, essa troca avisaria um eventual programa invasor, de que a urna vai ser testada, e não mais usada na eleição real, permitindo-o neste caso omitir-se de desviar votos. Ao mesmo tempo em que confundiria um leal programa verificador, de que a urna foi violada, e não está mais carregada com dados reais. E um tipo de fraude eletrônica chamado “voto de cabresto pós-moderno” passa a ser, comparativamente, estimulado com urnas biométricas.

Aferição de resultados

O que tudo isso indica, em termos de resultado, se essas fases foram para testes? Uma de duas coisas: ou o estudo preliminar da etapa 1 também foi e segue sendo negligenciado, como a etapa 2, ou a correta identificação do votante é irrelevante para os reais propósitos desse projeto. Ou as duas. No projeto há também, além dessas cifras, outras que podem falar por si. Cifras que representam dinheiro pago por nós ao Estado, em impostos. Em preparação para a 1ª fase, foram compradas em 2006 25 mil urnas da empresa Diebold-Procomp, mas usadas menos de 200, em três cidades. Em 2008 foram compradas mais 58 mil, e em 2009 mais 313 mil, essas mais caras, todas da mesma empresa (Diebold-Procomp), mas em 2010 na 2ª fase foram usadas menos de cinco mil, em 63 cidades. Exagero, desperdício, ou base eficaz para a teoria juridquesa do fato consumado?

Na licitação para a 1ª fase, que exigiu padrões certificados pelo FBI, os dispositivos de captura dos dados biométricos comprados em 2007 vieram com logomarca da empresa Itautec, mas um técnico do PDT que acompanhava o recadastramento em São João Batista percebeu que a logomarca era uma etiqueta colada, e descobriu por baixo dela que a fabricante daquilo era a empresa Martin-Lockheed. Que empresa é essa? Na licitação para a 2ª fase, exigiu-se um software específico para gestão dos dados capturados, e o “certame” foi direcionado em edital para um fornecedor, produto e versão: SAGEN ILSS 6i. Mas as reclamações de empresas participantes [1, 2, 3], de que tal direcionamento viola a lei de licitações, foram ignoradas à guisa do “princípio da economicidade”: evitar-se-ia duplicação da base de dados, pois há um acordo “de cooperação técnica.”

Que acordo? O SAGEN ILSS 6i é o software usado pela Polícia Federal (pois é o que o FBI usa), parceira do TSE nesse tal acordo para compartilhar dados biométricos. Novamente, presunção de norma futura, pois o Registro de Identidade Civil ainda não foi regulamentado. Se os dados biométricos colhidos no cadastramento eleitoral estão sendo compartilhados por atacado com essa polícia, se essa polícia normalmente só colhe dados biométricos de quem tira passaporte ou é indiciado em investigação criminal de sua alçada, e se os dados nunca usados em eleições estão sendo colhidos para elaou para suas outras parceiras, então essa cooperação estaria indo numa direção só, pois com voto obrigatório devem estar nessa coleta todos maiores de 18 anos. Mas estaria indo justamente na direção que a lei proíbe, pelo inciso I, artigo 9º da Lei nº 7444/85.

Em Teoria(s)

Deve então haver uma teoria juridiquesa para explicar isso, pois do contrário as conspiracionistas passariam a buscar conhecer o que vai de cooperação na direção oposta. E poderiam se deparar com fortuitas coincidências, e delirar com fatos inusitados. Como o fato de que entre as de sua exclusiva alçada, cabe à Policia Federal investigar, justamente, denúncias de crime eleitoral. Incluindo os imputáveis por negligência ou concussão, a quem responde pelo processo de votação. O delírio poderia chegar a um estado tão febril, que a paranóia não mais reconheceria a perfeição alcançada: se ninguém consegue provar que teria havido fraude em eleições, ou colusão para elas, então elas não mais existem. Se o juiz for também réu, óbvio! Se qualquer denúncia só pode ser delírio ou má fé, então, para que investigar? Para que investir em períciasexaustivas?

Entenda: se algo errado vier à tona, poderia perturbar arranjos de economicidade. Como esses onde outros pagam para manter sua base de dados íntimos das pessoas, e agregar essas bases numa colossal superbase que é instrumental para ações que realmente interessam aos que se adonam delas, em escala transnacional. Uma prova de delírio com roteiro doméstico? Basta seguir, por exemplo, a trilha do drama Protógenes Queiroz vs. Daniel Dantas. Uma de delírio global? Assange & Snowden vs. FBI, NSA, CIA e parceiros, dá uma viagem surreal. Paranóia quer dizer também “problema entre mente e espírito.” O “espírito animal” do homo economicus, que é só mente, em conflito com o espírito que Deus soprou na carne humana. “Paranóia” pode ser pejorativo para dissonância cognitiva: duas conversas a respeito uma da outra, que se atravessam, sem se comunicar.

Mussolini descreve a essência do fascismo como a convergência de interesses entre Big Government e Big Business. A tendência do Estado é sempre concentrar mais poder, o que ela fará sempre que sua sociedade lhe afrouxar os limites. Tal convergência promete mais a ambos. Vigilância sadia para democracias, portanto, é aquela que pessoas exercem sobre o que Thomas Hobbes chamou de pacto social. É a dos Tiradentes, dos Mannings, Assanges, Swartz, Snowdens, e dos que seguirão a mesma voz da consciência. Fantoches, perdem o viço. Nossa constituição, expressão maior desse pacto entre nós, tem no inciso X do art. 5º uma garantia à privacidade que está virando letra morta para o gado eleitoral. Atropelada por arranjos de economicidade. Já o espírito posto por Deus, sopra na consciência, e por profecias. Quanto à empresa por trás da etiqueta Itautec?

Quem é quem

Lockheed-Martin é a maior fabricante de armas do planeta, também contratada pelo governo dos EUA, lá inclusive para controlar e administrara superbase de dados biométricosagregada do FBI, NSA, CIA … Na direção oposta, esta empresa fornece os mais variados e sofisiticados drones(aqui chamados VANTs), até de modelos já testados em urbes Palestinas, que por coincidência usam prévias fotos digitais em alta resolução para teleguiar-se ao alvo, rastreando ou explodindo-os no Afeganistão, Paquistão, etc. E talvez também em breve por essas bandas, a partir de navios da recém-reativada quarta frota, encarregada do Atlântico Sul; ou, a partir das sete bases militares instaladas na Colômbiae outras no Paraguai, onde tropas bem fornidas gozam de imunidade jurídicaface ao ordenamento jurídico local, pois há, você sabe, um “acordo de cooperação técnica”.

O tema do encontro entre o Embaixador dos EUA e o presidente do TSE em 2007, ocorrido poucos meses antes da compra dirigida à Itautec/ Lockheed-Martin, só foi divulgado em marquetês: a comitiva do diplomata teria vindo para “troca de informações sobre o sistema eleitoral dos dois países.” Que troca, essa? Traduções precisam de contexto, e este, pede mais dados. Temos os de que a empresa Diebold, controladora da que venceu quase todas as licitações já feitas pelo TSE (Diebold-Procomp), havia sido descredenciada na Califórnia por enganar autoridades eleitorais na homologação de urnas semelhantes sob licitação, três anos antes; e também em Ohio, devido a muitos problemas com suas urnas, um ano antes. Enquanto sua filial aqui vinha ganhando também aditivos contratuais, e aquela precoce licitação de 25 mil urnas com biometria;no problem.

Ainda sobre dados para o contexto, dois anos depois a Diebold viria a encerrar suas atividades do ramo nos EUA, vendendo suas fábricas de urnas eletrônicas para a ES&S e concentrando-se no seu ramo principal, o de fabricar máquinas eletrônicas para jogos de azar, no qual ela é a maior do planeta. Sua filial aqui é a que segue fabricando urnas eletrônicas, mas só de tipo 1ª geração, que não permite recontagem de votos. Pois o Brasil é o único pais no mundo cuja autoridade eleitoral ainda usa — e segue licitando, desde 1996 — esse tipo de máquina de votar. É assim que surge essa biometrização, como um oneroso puxadinho, tosco e dúbio, em urnas eletrônicas de tipo obsoleto, enquanto o resto do mundo já conhece a terceira geraçãodelas. Surge com muitos atropelos, e poucas explicações traduzíveis do marquetês. Dentre tantas perguntas, uma puramente técnica não cala neste especialista independente, e pode ser ouvida, e talvez um dia entendida, pela voz que hoje está nas ruas: quem manda mesmo ali?

***

Agradecimentos do Autor

A Aaron Swartz (In Memoriam), pelo insuperável exemplo de coragem em sua obra viva (mas não de morte). A Alexandre Zaghetto, pela motivação, e a Hudson Lacerda, pela inspiração.

******

Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, Advanced to Candidacy a PhD pela Universidade da Cali­fornia em Berkeley. Membro do Conselho do Ins­tituto Brasileiro de Política e Direito de In­formática, ex-membro do Conselho da Fundação Softwa­re Li­vre América Latina, e do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-BR). http://www.­cic.unb.br/docentes/pedro/sd.php