1.
Um dos aspectos mais interessantes da literatura do escritor checo Franz Kafka (1883-1924) está relacionado com a sua potência para mostrar como as relações de poder se inscrevem em todos os lugares, porque tudo está absolutamente misturado. É assim, por exemplo, que no romance O processo (1925), o ateliê do personagem Titorelli, pintor de juízes, é também o seu quarto de dormir, que é também um cubículo de um imenso cortiço popular, que é também o próprio tribunal de justiça, onde K, o protagonista da narrativa, é processado sem ter feito mal algum.
2.
Em consonância com a trama do romance O processo, é possível argumentar que todo e qualquer poder é tanto mais presente quanto mais onipresente; tanto mais potente quanto mais onipotente e tanto mais transcendente quanto imanente, quanto mais existe em qualquer um, de tal maneira que seu centro se confunde com sua periferia, tal como ocorre em outro romance de Franz Kafka, O castelo (1926), cuja trama apresenta um nevoado castelo no topo de uma montanha e uma vila cujos habitantes vivem em função de sua onipresença soberana, não obstante a impossibilidade de alcançá-lo, como se ele existisse de tanto não existir realmente: uma miragem que assombra os aldeões, contaminados que estão com a bruma misteriosa e indevassável que vem do castelo.
3.
A força imperial do castelo advém de sua distância e pelo efeito que esta causa na Vila, cuja vida real é sequestrada pelos próprios aldeões, que agem e vivem sob o julgo de uma tirânica e tragicômica hierarquia supostamente advinda de um castelo que ao fim e ao cabo não passa de um retrato na parede, para lembrar um verso de um poema de Drummond. Os miseráveis súditos da vila vivem como se estivessem condenados ao inferno de existir dentro do tempo histórico, mas sem poder modificá-lo, como se fossem mortos vivos, porque o castelo é o próprio tempo sem história, um tempo fora do tempo, dono de todos os tempos – tempo morto que mata o tempo dos vivos; tempo parasita que sanguessuga os aldeões hospedeiros, que são acometidos por delírios de um despótico castelo que só existe dentro deles, através deles, na desesperança deles, na rotina encastelada do trabalho aldeão deles, tal que, neles, o soberano se faz como onipresente bruma, abraço letal.
4.
América (1927), outro romance de Franz Kafka, pode ser lido como uma narrativa em que o poder ou os poderes, sempre em rede, cansado dos ares frios do castelo europeu e da burocracia que se espalha em seu cotidiano, transfere-se para os Estados Unidos, onde o alto da montanha de O castelo, representando o campo, o soberano e o camponês; e a planície urbana de O processo, representando a cidade e suas múltiplas instituições – como se fossem uma única –, são substituídos por um mundo de poderes em que a dicotomia campo versus cidade perde o sentido porque tudo se torna campo e cidade; tudo se torna, enfim, um imenso parque de diversões, tal que o alto é o baixo e o baixo é o alto, o soberano é o súdito e o súdito é o soberano, sempre, é claro, tendo em vista a ilusão despertada pelo efeito de parque ou efeito de teatro, cujo resultado mais evidente (claro como efeito de magia) é a eliminação do castelo, no campo, e da burocracia, no mundo urbano, porque os súditos se tornaram soberanos, sem deixarem de ser súditos.
5.
O poeta, dramaturgo e escritor brasileiro Oswald de Andrade (1890-1954) de alguma forma intuiu esse fenômeno América de parque de diversões em seu Manifesto Antropófago de 1928, no qual a certa altura diz “roteiro, roteiro, roteiro, o cinema americano explicará”. Com os Estados Unidos no comando do mundo, tudo se tornou roteiro, roteiro, roteiro, como efeito de parque de diversões, como Walt Disney, teatro de marionetes de súditos que são soberanos e de soberanos que são súditos, num contexto em que a bruma ameaçadora do castelo europeu, não deixando de existir, foi transferida para os serviços secretos, de polícias secretas, de administração secreta, de secretos poderes financeiros, comerciais, militares, os quais (através de paranoicos roteiros de terroristas, de comunistas, de narcotraficantes) eliminam sem dó nem piedade qualquer um que ouse questionar os roteiros de felicidade, de justiça, de liberdade, como efeito publicitário em relação à mercadoria-mor: os Estados Unidos mesmos, o único país do mundo que se tornaram efetivamente uma despótica mercadoria de democracia, razão pela qual se impõem ao mundo como roteiros publicitários sobre si mesmos.
6.
Os Estados Unidos são O Castelo e O Processo como roteiros, roteiros, roteiros, como América, portanto, esse lugar onde o lugar do castelo é o do processo e o deste é o daquele, tendo em vista a indefinida plasticidade do roteiro, versão cinematográfica, cuja magia inventa a edição que quiser, confundindo a todo tempo a realidade com a ficção, embaralhando as cartas em conformidade com os secretos roteiros de poder que estão em jogo nessa ou naquela circunstância histórica. Sob esse ponto de vista, é possível afirmar que o modelo norte-americano de poder, ao mesmo tempo local e planetário, funciona como um sistema que joga sem cessar com a realidade e com a ficção, com o que é e o que não é, com o que ocorreu realmente e as suas indefinidas versões prováveis e improváveis.
7.
Para América atual, o roteiro de nossa circunstância histórica é O Castelo como panóptico estelar e O processo como o panóptico molecular. O primeiro panóptico, o estelar, produz seus indefinidos roteiros a partir do uso de tecnologias, via-satélites, que nos apanham por todos os lados, tal como no Castelo de Franz Kafka, com a diferença de que a névoa que toma toda a vila envenenando os aldeões agora vem do cosmos e toma todo o planeta, de modo que a Terra toda hoje é uma aldeia: a aldeia global, vista e revista de todos os lados, como vemos uma bola nas mãos.
8.
O panóptico estelar mapeia a tudo e a todos, produzindo seus próprios roteiros de intrigas, de táticas, de estratégias, de vigiados e punidos, num contexto em que a tendência é sermos vistos sem ver, sermos apanhados sem apanhar, sermos intrigados sem produzir nossas intrigas, ou as produzindo num cenário a partir do qual seremos, sempre, do alto, milimetricamente fotografados, editados e transformados – roteiros de roteiros – em personagens de uma telenovela cujas intrigas são escritas e reescritas em conformidade com a realidade dos secretos desafios de América, a única que importa, centro voluntarioso de todos os roteiros, independente do que ocorra, pois sabe que tudo é matéria de roteiro, de mais intriga, mais novela, mais efeito de cinema, no infinito jogo combinatório de nossas imagens em circulação cosmológica.
9.
O segundo panóptico, por sua vez, o molecular, constitui-se como um processo sem fim que, da gente para a gente, na imanência da vida, faz convergir todas as tecnologias de comunicação, transformando-nos a nós mesmos em convertidos usuários de secretos roteiros de América, tal que não é possível mais saber quando realmente estamos produzindo nossos próprios roteiros, quando estamos na verdade sendo roteirizados, pois tudo é in e é out, tudo é feed e é back: é feedback, sob o controle meticuloso de América: o humano e a máquina.
10.
No panóptico molecular, portanto, somos apanhados e processados a partir do roteiro das subjetividades individuais no real tempo em que usamos os artefatos eletrônicos, no celular, na internet, no controle remoto, em tudo quanto existe e existirá em termos de possibilidades comunicativas de roteiros a acessos a roteiros: o roteiro amoroso, o da amizade, o dos protestos, o da pornografia, da religião, dos estudos, da família. Com o panóptico molecular nos mergulhamos num mar sem fundo de partículas de informação e nele nadamos e somos nadados, como peixes que mais a si mesmos se processam quanto mais processam o movimento digital, sonoro, auditivo, visual e comportamental de suas nadadeiras, nessa imensa rede de comunicação que risca o planeta de sol a sol com as fibras ópticas dos pulsos de nossos impulsos.
11.
Como é facilmente dedutível, o panóptico estelar e o molecular de forma algum estão isolados um do outro. Eles, sem cessar, realizam ininterruptas conexões entre eles, in/out, feedback, vinte quatro horas por dia, em tempo real, quando usamos os artefatos de comunicação para acionar nossos roteiros e mesmo, é claro, independente da gente. Assim funciona o processo deles, conjuntamente, como relação indiscernível entre o castelo, a vila e a cidade, planetariamente. É essa conjunção entre o alto e o baixo, o estelar e o molecular, que é possível chamar de a nossa América mundial: uma rede de intrigas que produz sem cessar roteiros e mais roteiros, de tal maneira que todos tendemos a ser transformados em personagens de ficção, com seus gêneros de comédia, dramáticos, românticos, trágicos, tragicômicos, tendo em vista o cenário de um planeta mapeado em Ocidente, Oriente, Norte, Sul, aliados, suspeitos, terroristas: de um lado é o sorriso que surge na tela, e eis que a esse lado chamamos de democracia; de outro é o rosto duro, acusado de antemão de despótico, ditador, populista, como se acusava Joseph K, personagem do romance O processo, acusado de estar nas malhas do processo do capital, da modernidade, da civilização, assim como somos todos hoje processados por estarmos no roteiro e mais roteiro do poder que sabe que tudo é roteiro, como é o poder americano, razão por que domina as tecnologias de roteiro, para roteirizar-nos: aterrorizar-nos, alegremente.
12.
É assim, monopolizando o panóptico estelar e o molecular que os Estados Unidos invadiram todo o planeta, adaptando-o ao roteiro dos interesses de seus bancos, multinacionais, redes de intrigas e de segredos, kafkianamente. Existe, pois, fato de maior impacto que este: os Estados Unidos invadiram literalmente todo o mundo! Nada, sob hipótese alguma, é mais desalentador e perigoso que essa obviedade contemporânea, tendo em vista a gigantesca força bélica do Tio Sam e o efetivo uso genocida que tem feito de seu poder militar para dissuadir, submeter e impor o mais inominável inferno sobre populações inteiras, bastando que nos fixemos nos casos mais recentes: invasão do Iraque, do Afeganistão, do Congo, Somália, Líbia, do mundo todo afinal.
13.
E o que é invadir todo o mundo? Como ocorre? O lado mais óbvio dessa invasão planetária sem dúvida alguma está diretamente relacionado com as bases americanas, – mais de 800, pelo planeta afora –, ocupando territórios alheios, vigiando-os e punindo-os. O lado menos óbvio, por sua vez, e nem por isso menos efetivo sem dúvida alguma está relacionado com o domínio imperial das tecnologias do panóptico estelar e molecular, utilizando como suporte cada um de nós, através de nossos próprios roteiros subjetivos, razão por que nos tornamos o corpo vivo fundamental para acionar a rede mundial estabelecida pelo panóptico estelar e molecular, ao mesmo tempo em que nós mesmos estamos enredados.
14.
A América planetária constitui-se, pois, como efetivo roteiro de invasão bélica, financeira, econômica, tecnológica, informativa, cultural sobre os povos do mundo; invasão realizada no rés-do-chão, através de um processo kafkiano de panóptico molecular e também através das alturas celestiais, por meio de não menos kafkianos encastelados satélites usados e abusados como panóptico estelar. Seu objetivo é um só: apanhar as multidões e roubar os recursos que alimentam esse gigantesco sistema panóptico estelar-molecular, não sem o disfarce realizado pelos efeitos de close-up meticulosamente editados e reeditados pelas mercadorias ópticas moleculares de nossos rostos de admiração ao círculo périplo dos malabarismos mágicos de América.
15.
É por isso que, sem medo de errar, América, sua elite, bem entendido, constitui-se como um fabuloso poder latrocida ou mais especificamente latrogenocida, que roteiriza a tudo, o passado, o presente e o futuro, a humanidade toda, transformando-nos num filme ao vivo: o filme da humanidade roteirizada, com as suas fiéis filiais especialistas em roteiros, em roteirizar a tudo e a todos, como as corporações midiáticas, que funcionam como mais uma panóptica molecular-estelar forma de América ocupar os países do mundo, posto que geralmente recebem nomes nacionais (El País, Globovisión, TV Globo, BBC) constituindo-se efetivamente como uma espécie de quinta coluna de América nos países onde se localizam, razão pela qual são também especialistas em inventar roteiros e transformam, tal como América, em nome de América, tudo em roteiro, a serviço de América.
16.
No Brasil as Organizações Globo (especialmente sua roteirizada comissão de frente, a TV Globo) são a nossa América invadindo-nos através de pirotécnicas táticas e estratégias de roteiros de nós mesmos, em todos os âmbitos: no noticiário, roteiriza-nos; nas telenovelas, roteiriza-nos; nos programas de esporte, roteiriza-nos; nos programas de auditório, roteiriza-nos; nas “engraçadas” séries noturnas, roteiriza-nos, roteirizando também suas relações com os poderes legislativo, judiciário e executivo, geralmente manipulando o roteiro de sedução dos dois primeiros para colocá-los contra o executivo sob o comando das administrações petistas. Estas, especialmente as de Lula e agora a de Dilma, tem tido uma inacreditável capacidade masoquista de caírem nas malhas mágicas dos roteiros da família Marinho, que ora as acata, sem dó e nem piedade, com evidentes roteiros golpistas; ora, também como roteiro, finge que nada ocorreu, inclusive roteirizando, por exemplo, simpáticas entrevistas com integrantes do governo, em suas redes de roteiro O Globo, TV Globo, Globo News, Época, Globos locais. E tudo funciona de roteiro para roteiro, do roteiro golpista para o roteiro puxa-saco, tão simples como uma novela que sucede a outra.
17.
É, pois, como roteiro de roteiro, que é possível analisar o motivo pelo qual as Organizações Globo assumiram o papel de noticiarem as ações de espionagem contra cidadãos, empresas e governo brasileiros, feitas por América, e reveladas pelo agora implacavelmente perseguido ex-técnico terceirizado da CIA, Edward Snowden. Nada melhor que elas, especialistas fiéis em roteiros dos roteiros de América, para levarem a cabo o roteirizado desafio de nos roteirizarem informações sobre a rede de espionagem de América, através da conexão do panóptico estelar e molecular, lançada sobre todos os âmbitos da sociedade brasileira: o civil, o econômico, o militar, o administrativo, residindo aí a roteirizada bombástica entrevista com o jornalista americano, Glen Greenwald, o primeiro que noticiou o caso de planetária espionagem da NSA, através do jornal britânico The Guardian, tendo obtido esses dados diretamente com Edward Snowden em Hong Kong, China.
18.
Após mais um roteiro golpista contra o governo Dilma, roteirizando as manifestações que tomaram as ruas do Brasil precisamente (mas não casualmente) durante a Copa das Confederações, nada melhor que taticamente mudar o foco, concentrando-se nas roteirizadas denúncias de espionagem do governo de América sobre nós todos, a fim de, ao mesmo tempo, roteirizar a mentira de independência da família Marinho em relação ao imperialismo de América, como se ela não fosse sua fiel produtora de subservientes roteiros colonizados. É nesse cenário que é possível entender a roteirizada entrevista, realizada no Fantástico do último dia 7 de julho, com o jornalista americano Glen Greenwald, o homem do Ocidente que guarda consigo as denúncias de ciberguerra de espionagem de América contra o mundo e o Brasil, prometendo divulgá-las gota a gota, não sem muito roteiro, é claro.
19.
Se se considera especialmente o momento, durante a entrevista do fantástico com o jornalista Glen Greenwald, em que este disse que a ciberguerra de espionagem do onipresente Tio Sam não visa nem o Governo Brasileiro nem a relação deste com os países da América Latina, o roteiro que está em jogo de divide em duas variáveis, a saber: uma primeira, fundamentada no roteiro da mentira a ser editada como se fosse verdade, baseada nos argumentos expostos por Glen Greenwald; e uma segunda que é a que devemos nos ater, porque é a única que nos interessa, a verdadeira: o Brasil é um dos países mais espionados do mundo porque seu Governo ensaia táticas e estratégicas relações com a China, com a Rússia e com os países rebeldes da América Latina, especialmente Venezuela, Argentina, Bolívia e Equador, de modo que somos vigiados porque América quer nos impor o roteiro de sempre: servidão voluntária, a nós e aos latino-americanos.
20.
Era e é essa segunda variável, a verdadeira, que os roteiros mágicos da TV Globo deveriam e devem disfarçar, além de fixar-nos o roteiro que os Estados Unidos não cansam de realizar ao mesmo tempo com o mundo e para o mundo: o de transformar as situações adversas, quaisquer que sejam, em versões roteirizadas como positivas, independente do que esteja em jogo, pois a principal função da América como roteiro ou da América como roteiro de um país que se tornou o roteiro ou a ratoeira de todas a mercadorias do mundo é nada mais e nada menos do que, como fazem todos os roteiros publicitários, vender gatos por lebres, venenos por remédios, mentiras por verdades, ditaduras por democracias, genocídios por defesa da liberdade e da justiça.
21.
Se não quisermos ser capturados pela ratoeira dos roteiros da TV Globo, a serviço da ratoeira-mor, os Estados Unidos, como a mais exemplar roteirizada democracia de fachada do planeta, a única saída reside na realização efetiva de nossos roteiros de soberania, inclusive e antes de tudo da soberania midiática.
22
Para tanto, é preciso ter absoluta clareza – sem a mais mínima hesitação – de que todos os roteiros que vêm do Tio Sam e da TV Globo não passam de ratoeiras de golpes (diretos ou indiretos, declarados ou dissimulados), colocadas em pontos estratégicos, com muitas guloseimas confeitadas, para apanhar e escravizar povos, vistos e concebidos sempre como desprezíveis ratos, tal é o nojo, o desprezo e a indiferença deles, assim como o sentimento de superioridade, sobre todos nós, inclusive o próprio povo americano.
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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor do Departamento de Letras da Ufes