Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O fotógrafo sem retoques

“O retrato é um duelo. Um na frente do outro. Os dois se olhando… Cada um tem que deixar o seu pedaço no papel. Um pedaço honesto, isso sim. Eu tenho que descobrir quem a pessoa é. O retrato é basicamente um perfil.”

Não há uma câmera entre a repórter e o respeitado e badalado – com perdão pela pobreza semântica – fotógrafo J.R. Duran. Jota e Erre que remetem muito mais às fotos de beldades (nuas ou vestidas) do que propriamente a Josep Ruaix, como consta na certidão do fotógrafo catalão. As armas, a caneta e um gravador. Durante quase duas horas travamos nosso duelo. De palavras.

O cenário para o embate é o Bistrô Charlô, restaurante intimista nos Jardins. É quase 1 da tarde de uma sexta-feira vestida de amarelo – bem adequada para uma foto externa, apesar da insistente poluição paulistana – quando começo a tentativa de capturar um pedaço honesto de J.R. Duran e retratá-lo nas páginas seguintes. Nesta edição, rompemos uma tradição da seção “À Mesa com o Valor” e, no lugar da habitual caricatura, publicamos um autorretrato assinado por nosso entrevistado.

A conversa flui, mas logo de saída se percebe que o nosso convidado não se despe tão facilmente quanto as belas mulheres que fotografa. Ele não quer as lentes e os holofotes sobre a família. É desconfiado a ponto de revelar uns poucos fragmentos mais íntimos apenas depois de ter certeza que o gravador está desligado.

O que conta numa mulher nua é a personalidade

Limite respeitado, nada mais parece tabu. O que faz do nosso um duelo um tanto amistoso. Duran deixa-se flagrar. Estampa um sorriso fácil diante de um comentário ou uma pergunta e solta alguns tantos palavrões, como se não se importasse (tanto assim) com o registro da conversa. E entrega, aos poucos, seus ângulos menos conhecidos. Do fotógrafo que não gosta de olhar fotos antigas. “Não dirijo carro olhando para o espelho retrovisor.” Do fotógrafo que pilota helicóptero. Do fotógrafo que conseguiu o quarto lugar no rali dos Sertões. Do fotógrafo que coleciona papéis de carta de hotéis e, nas inúmeras viagens que faz, envia cartas para si próprio (as lembranças lacradas são mantidas fechadas e, segundo ele mesmo, sem data para ser abertas).

O fortíssimo sotaque catalão – mesmo depois de 25 anos de Brasil –, o raciocínio ligeiro e a sagacidade exigem atenção do interlocutor. Ele que se esforce ou tenha inteligência suficiente para subentender as dezenas de frases incompletas e as costumeiras reticências soltas no ar.

Atrevido, perspicaz e desaforado confesso, Duran não alimenta clichês e foge, deliberadamente, dos consensos. “Nu artístico não existe. O que existe é foto boa ou ruim”, diz. Não acha que olhar diferenciado seja predicado dos fotógrafos. “Jornalista também é olho, escritor, policial, tudo depende do olhar, do feeling”, sentencia. Não acredita que haja uma valorização maior do corpo atualmente. “Hoje se pode falar menos besteira e em muitos países se mostra menos o corpo do que há alguns anos.” E também garante que – mais do que belos seios – o que conta mesmo numa mulher nua é a personalidade. “É o que mais marca e fica no olhar, independentemente do tamanho da bunda ou do peito.” Mas quem compra revista masculina talvez não esteja interessado em personalidade, não? “Certamente, mas eu vejo assim.”

A mala muda. O modelo, não

A memória, ele avisa, é seletiva. “Uma das razões pelas quais comecei a escrever é porque não guardo as coisas.” O mais velho de cinco irmãos se lembra pouco da infância na cidade de Mataró, na Espanha. Faz um longo silêncio quando questionado sobre a fase em que não tinha assinatura abreviada e revela: “Eu sei que não era um menino feliz e me lembro de muito pouca coisa.”

O arquivo visual começa a ficar impresso na mente a partir dos 12 anos. Foi quando começou a ler muito – teve o privilégio de possuir em casa uma biblioteca com quase 2 mil títulos – e a ir ao cinema três, quatro vezes por semana. “Nessa época começa a coisa da observação e a ansiedade ou necessidade de ver a vida de perto.” Duran dá os últimos retoques nas lembranças e o passado aflora. “Me lembro de estar na escola com o livro de geografia aberto seguindo as cidades e lugares que eu queria conhecer.”

A fotografia o conduziu muito mais longe do que os sonhos infantis podiam dedilhar. Aos 60 anos, passaporte sem espaço para tanto carimbo, Duran também coleciona cidades. Só não esteve na Oceania. Desde 1991, registra em arquivo de Word todos os lugares por onde passou – não faz ideia de quantos foram. Dos mais óbvios e prováveis aos mais remotos, como o Rajastão e a Eritreia, na África, onde foi resgatar o personagem Corto Maltese, de Hugo Pratt, herói predileto nas noites da Catalunha.

Diversos destinos viajaram na mala Prada de sempre. Dessas tipo sacola, na qual carrega sua econômica e prática bagagem. A mala muda. O modelo, não. Duran é daqueles que compram três pares do mesmo tênis e usa cada um até sucumbir. Numa viagem a Macau, na China, descobriu que a sola estava gasta o suficiente para estrear o segundo par quando sentiu os pés encharcados depois de um dia exaustivo. O terceiro ainda descansava em uma caixa, esperando pela aposentadoria do segundo. Alguém que lida o tempo todo com a vaidade alheia mitiga a própria. “Não preciso ser vaidoso, a minha vaidade é o que eu sei, ninguém consegue enxergar.”

Reminiscências de Saint-Tropez

Foi quase por acaso que Duran caiu nessa fogueira. E por causa da mãe, dona Nuria, preocupada com a ociosidade do filho. Seu José, um industrial, resolveu trazer a família para o país quando o primogênito tinha 17 anos. Chegando a São Paulo, os pais estranharam o fato de que no Brasil se estudasse apenas meio período. Inaceitável para a mentalidade europeia. “Eu tinha que arrumar um trabalho.”

Foi providencial. Um fotógrafo catalão conhecido da família disse para o garoto ir ao estúdio quando quisesse. “Fiz corpo mole uns oito meses até acordar um dia e decidir ir”, conta. Enquanto ainda era assistente do assistente e perdia calças jeans limpando fundos e pincéis, um canto da seletiva memória reacendeu. Duran tinha guardada a imagem de uma prima casada com um fotógrafo 20 anos mais velho, com carreira consolidada em Barcelona. “As histórias que ele contava e a vida que ele levava tinham a ver com o que eu queria pra mim.”

A conversa está boa, mas Duran trata de nos lembrar que estamos em um restaurante. “Escuta aí, a gente almoça ou não almoça? Porque eu acordei às 6 da manhã, eu acordo cedo todo dia.” É pra já. Melhor não deixá-lo com fome para o duelo não azedar. O garçom, como se atento à conversa e ao olhar preocupado da repórter, aproxima-se prontamente. Entrega os cardápios e oferece uma taça de vinho. “Nunca numa entrevista. Esta é a regra número um: nunca beba numa entrevista”, enfatiza Duran. Sim, senhor. E, por via das dúvidas, pedimos todos mais uma rodada de água.

Depois dos pedidos – nosso convidado escolheu de entrada uma porção de croquete de presunto –, somos levados pelas suas reminiscências à belíssima Saint-Tropez. É desse sofisticado pedaço da Riviera Francesa, e não das ramblas ou das iluminadas obras de Gaudí que Duran tira seu ponto referencial de luz. A viagem com mais três amigos naquele verão sem pressa de 1969 – ano anterior à vinda para o Brasil – gravou na retina e no coração cores e sensações que ele procura reproduzir até hoje em suas fotos.

O receio de ser clicado com a boca cheia

“A Espanha vivia a ditadura de Franco, a Barcelona daquela época era muito diferente de hoje. E a França, não. A França tinha topless e joie de vivre, uau, aquela alegria de viver”, diz, tomando emprestada uma entre muitas expressões em outras línguas que costuma usar – além do catalão, português e espanhol, Duran fala inglês, francês, italiano e alemão. “Sempre que penso nas minhas fotos, penso em coisas solares com uma luz, uma vida, uma energia que reproduzem de alguma maneira aquela realidade. Eu coloco as fotos em universos imaginários, os meus universos.”

Para pôr seu repertório nas imagens que levam sua assinatura, Duran faz questão de participar de todo o processo, desde a pré-produção. As fotos, conta, são construídas minuciosamente. “Elas não são reais, mas meu prazer é fazer parecer que são reais, é o oposto do fotojornalista.” Como num livro de ficção, Duran procura a verossimilhança nas fotos. “Quando a pessoa enxerga aquela imagem, ela se assemelha com alguma coisa que viu ou acha que viu.”

“A beleza ajuda na foto ou o que vale é a produção?” “Beleza não existe. A beleza é uma ilusão, uma convenção. Todo mundo pode ser bonito, todo mundo pode não ser.” “Mas as mulheres que você fotografa são deslumbrantes. Então qualquer pessoa pode ficar bonita?” “Claro. (Dá uma risada larga.) Esse é o meu trabalho, se eu não acreditar nisso…”

O garçom chega com a entrada. Assim que dá a primeira mordida no croquete, Duran olha para o fotógrafo com certo ar de reprovação e diz: “Você vai me fotografar comendo croquete?” Pois um dos fotógrafos mais famosos do Brasil divide com a maioria dos entrevistados desta seção o mesmo receio de ser clicado com a boca cheia. Não se preocupe, Duran.

Corpo turbinado e fama são inversamente proporcionais

Fome sob controle, partimos para saciar a curiosidade geral e irrestrita sobre o cobiçado mundo das fotografias de nu feminino. Provocativo, Duran conta que começou nessa área para “encher o saco dos amigos”. Mas foi o apetite por uma vida bem vivida e a determinação que o conduziram para esse universo. Era fim dos anos 70 e o seu portfólio só tinha foto de mulheres vestidas. Foi quando resolveu propor para Carlos Gracetti – com quem tinha trabalhado na revista Pop e acabara de assumir a edição de arte da Playboy – fotos com a mesma luminosidade, classe e elegância que já marcavam seu trabalho. E mulheres sem roupa. “Eu nunca tinha fotografado mulher nua, mas decidi que ia fazer aquilo. Na minha vida tudo é assim, vou lá e faço.”

Fez teste com uma modelo e, aprovado, no mês seguinte fez a sua primeira capa: Alcione Mazzeo, casada na época com o humorista Chico Anysio. “Naquela época, se você fotografasse mulheres nuas, era um fotógrafo de segunda, terceira categoria. Ou melhor, era um cara sem categoria”, comenta. “Mas eu achei que poderia fazer isso com categoria e que, primeiro, seria pleasant, e segundo, por que não?”

Duran fez mais de cem capas da Playboy, com nomes como Xuxa, Luiza Brunet, Maitê Proença, Adriane Galisteu, Juliana Paes e Flávia Alessandra. Foram dele também capas recordes de vendas com musas instantâneas, como Tiazinha e Feiticeira (com mais de um milhão de exemplares). Também fez as mais recentes, nas quais corpo turbinado e fama são inversamente proporcionais.

Versátil, é apaixonado por palavras

Seja para fotografar corpos mais miúdos e seios naturais de anos atrás ou as versões mais esculpidas de hoje, Duran não apela para a sedução. “Eu não faço papel do fotógrafo sedutor, champanhe, isso não existe”, garante. “Não é um encontro, não é sedução, a palavra é cumplicidade.” Quando a pessoa chega lá, conta, já negociou com a revista, teve advogado envolvido – processo que, em alguns casos, dura meses. O que não impede que, na hora das fotos, umas fiquem mais inibidas do que outras. Mas sempre muito discreto, ele não menciona nomes. “Quem fotografa nu para revista masculina é por duas razões, vaidade ou dinheiro. Se é vaidade, não tem problema. Se for por dinheiro, tem que honrar com aquilo, é muito simples.”

“Você é um dos homens mais invejados do Brasil. Vê as mulheres mais cobiçadas sem roupa. Como é isso?” “Eu só vejo e qualquer um pode ver, não sou o único. Se eu ficasse saindo toda semana numa revista com um conversível ao lado dessas mulheres, se me vissem jantando, seria outra história.” “Mas você tem todos os bastidores ali.” “Tá, mas isso é bastidor.”

No seu livro Cadernos de Viagem, um diário sobre as viagens feitas entre 2008 e 2010, ele entrega um pouco mais. “Fotografar para a Playboy nem sempre é a festa que todos pensam.” E, mais adiante, revela: “Nem sempre as pessoas que aparecem na revista têm um corpo tão perfeito quanto as páginas impressas fazem acreditar. Em um par de ocasiões, eu não sabia nem por onde começar porque não tinha o que mostrar.”

No livro, lançado no fim de 2012, não há uma única foto. Duran solta o traço e retrata em aquarelas os quartos de hotéis onde ficou hospedado naquele período. Feitos sempre no moleskine nas noites de insônia ou na meia hora que reserva para registrar com letra de forma suas viagens, os textos nos remetem a outro Duran. Versátil, o senhor das imagens também é apaixonado por palavras [uma viagem pela realidade dos seus universos imaginários, o livro é repleto de notas de rodapé, que podem render mais páginas do que o próprio capítulo. Em letras de corpo miúdo, estão curiosidades, contextos, trechos e referências aos muitos personagens, livros e filmes que o fotógrafo coleciona na memória seletiva].

Desde modelos nuas até Padre Marcelo e Zé do Caixão

Duran também escreveu dois livros policiais, Santos e Lisboa. Tem mais um pronto, que deve ser lançado entre o fim deste ano e início do próximo. Dessa vez, o cenário escolhido foi Macau, outra cidade à beira-mar, onde também se fala o português. “Circulo numa área muito curiosa e os limites criativos sou eu que coloco”, diz. “A coisa mais libertadora do mundo é sentar e escrever um livro. Depois, se ninguém ler, tanto faz. Não escrevo para os outros, escrevo para mim, para me divertir, para me contar uma história.”

Chegam os pratos. J.R. Duran, que não perde a acuidade visual nem na hora de se alimentar e só come o que tenha boa aparência, vai de ravióli de cordeiro. Enquanto aprecia o belo prato e afaga o estômago, pergunto a Duran o que há – e se há – algo negativo nessa profissão aparentemente cheia de encantos. Ele conta dos imprevistos que “dão cambalhotas no estômago, chutado pela úlcera”, do olho na câmera e outro no céu para programar o trabalho da melhor maneira possível e da tensão que pode beirar o insuportável em algumas produções – contratempos descritos no livro. “Eu parto da base de que nunca nada vai dar certo, mas os problemas são sempre os mesmos. Nunca faz sol no dia certo, meu cabelo branco é cem por cento por causa disso.”

As famosas iniciais e o sobrenome ganharam fama pelos editoriais de moda, campanhas publicitárias e fotos femininas, mas Duran também capta flagrantes do cotidiano. Realidades que não foram lapidadas por cabeleireiros, maquiadores e produtores. Boa parte dessa produção – acumulada e catalogada durante anos – está na Revista Nacional, criada pelo fotógrafo. Anual, a revista já teve três edições e Duran está preparando a quarta. Tem desde modelos nuas e fotos antigas inéditas (como Luiza Brunet no início da carreira) até fotos do Padre Marcelo e do Zé do Caixão (na mesma edição) e ensaios com índios na Amazônia ou com vaqueiros nordestinos, feitos especialmente para a revista. “Eu fotografo, faço a edição de arte, ligo para as pessoas, entrevisto”, conta e tira um envelope pardo da maleta preta. Desenrola e mostra o seu gravador.

“Sou muito impressionável”

A proposta é diferenciada. Não há título nas matérias – apenas uma palavra que sintetiza o que virá. Não há chamada, crédito ou legenda nas fotos. Também não há anúncio. “Se tivesse anunciante, a revista me custaria mais caro. Se tem anunciante, tem dinheiro entrando e você tem que pagar as pessoas. O que eu não posso fazer é ganhar dinheiro e pedir que as pessoas façam de graça. Eu sempre me recusei a trabalhar de graça para quem ganha dinheiro e não faria isso com os outros.” Os amigos colaboram com textos e a gráfica Burti financia a reprodução dos dois mil exemplares – metade Duran distribui para os seus clientes e a gráfica fica com a outra metade. Alguns exemplares são vendidos por R$ 380,00.

Enquanto escolhemos a sobremesa, pergunto sobre os limites do Photoshop e da manipulação das imagens nos dias de hoje. Você usa? “Eu contrato pessoas que usam. O Photoshop serve para criar fantasias, colocar um céu no lugar de outro, mas, quando se aplica nas pessoas e você enxerga que alguma coisa está errada, é porque está malfeito. E aí alguém se deu mal.” Leia dar-se mal como eufemismo na impossibilidade de publicar o palavrão dito.

Nosso convidado escolhe torta de marzipã e chocolate de sobremesa. Até que o enorme e belo (para seu deleite) doce chegue à mesa, o assunto ruma para Twitter, Facebook e Instagram. O primeiro ele usa. O segundo ignora. E o terceiro repudia. Duran pergunta ao fotógrafo se ele tem Instagram. “A única coisa com que ele pode ganhar dinheiro, ele dá de graça. Eu não vou dar de graça a única coisa que tenho para vender.” No Twitter, Duran exercita o lado mais ácido. Pode ser num comentário sobre a novela ou sobre assuntos recorrentes na rede. “O Twitter é como eu sou, não perdoo. É como uma roda de amigos, serve para falar bobagem e, se alguém não gostar, tchau, procura outra mesa. Ser rico em seguidores é o mesmo que ser rico em banco imobiliário, não serve pra nada”, debocha. “As pessoas são carentes. Eu não sou carente.”

O fotógrafo que vive correndo atrás de prazo e da luz do sol percebe que está atrasado para a próxima sessão de fotos. O celular – cuja quantidade de megapixels pouco lhe importa – ficou no estúdio, certamente aos berros. “Só vou tirar foto de celular no dia em que minha câmera receber ligações”, afirma, dando mais munição para o seu retrato. Antes que se vá, entra na mira pela última vez. E não se rende. Já se impressionou com a beleza das mulheres que fotografa? “Sempre, sou muito impressionável.” Arranca a segunda rodada de risos da mesa e nos entrega mais um pedaço de si. Honesto, isso sim. Nosso duelo termina.

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Daniela D’Ambrosio, do Valor Econômico