Sabe-se que o vazamento de informações por Edward Snowden veio à tona a partir de matéria jornalística no jornal britânico The Guardian, assinada por Glenn Greenwald, interlocutor privilegiado de Snowden. Greenwald, uma espécie de ermitão americano-carioca, vive no Rio de Janeiro há cerca de um ano por conta de relação amorosa e afetiva impossível de ser legalmente mantida com um companheiro nos EUA até muito recentemente. Seu contato com o mundo exterior se dá via internet e foi com essa ferramenta que se correspondeu com Snowden.
Definitivamente, o ambiente jornalístico chegou a um ponto de viragem. A chamada blogosfera, cada vez mais, converte-se em instrumento de desterritorizaliação da circulação de informações, rompendo bloqueios impostos por interesses das grandes empresas e das corporações jornalísticas. Os “devires minoritários”, invisibilizados, “excluídos” pelos que detinham a primazia de “incluir”, transbordam pela rede mundial, abalando fronteiras externas e internas (vide o singelo blog O Cafezinho trazendo à tona o processo escabroso da Receita Federal contra a Rede Globo, que gerou multa superior a R$ 1 bilhão e ficou oculto durante seis anos).
Assistimos, nesta última década, a uma contração das temporalidades jamais vista na história do jornalismo convencional, seja impresso ou eletrônico. O jornalismo na internet rompe com os ritmos de produção. A informação coletada é processada e repassada quase instantaneamente. O “virtual” atualiza-se de imediato. Deleuze: “A distinção entre o virtual e o atual corresponde à cisão mais fundamental do Tempo, quando ele avança diferenciando-se segundo duas grandes vias: fazer passar o presente e conservar o passado” (De “O Atual e o Virtual”, um dos capítulos de Diálogos. Pode ser acessado aqui).
Emergência da “inteligência coletiva”
Outro aspecto interessante é a ampliação das possibilidades de contatos e de circulações mundiais, e igualmente instantâneas, de informações, opiniões e análises, sejam as de jornalistas, sejam de intelectuais atentos aos acontecimentos. Artigos recentes de intelectuais contemporâneos exemplificam: (Boaventura Santos [desculpe, presidente Evo Morales, aqui], Antoni Aguilo [Demodiversidad: las luchas por otras democracias], Slavoj Žižek [Problemas no Paraíso], Daniel Lins [Improviso ou jeitinho brasileiro?]).
Tais referências são importantes não só pela qualificação e credibilidade de seus autores. Também demonstram o potencial de “máquina de guerra” (Deleuze e Guattari) que se tornou a internet. Boaventura e Aguilo publicam suas opiniões, entre outros veículos, no Publico, da Espanha, que há cerca de um ano abandonou sua edição impressa mas se mantém bravamente na rede. Zizek colabora, entre outros, com o Carta Maior, site informativo, mas, sobretudo, reflexivo, liderado por Emir Sader. Daniel Lins publica mensalmente em O Povo, o segundo maior jornal do Ceará.
Ou seja, os acima citados estão a atuar em veículos tidos como periféricos que passam a centrais e globais com o advento da internet. São exemplos da emergência e difusão da “inteligência coletiva” que o filósofo Pierre Levy anunciava no seu livro Cybercultura, de 1997. Inteligência compartilhada e gerada pelas ruas e pelos subalternos que se rebelam, seja como fez Snowden, seja como fazem os jovens e movimentos sociais no Brasil que, a partir das conexões eletrônicas “virtuais”, ganham as ruas, “atualizando” suas aspirações e necessidades reais, ausentes do discurso jornalístico convencional e das pautas institucionais dos governantes.
A interferência norte-americana via internet
Snowden mesmo já é tratado como conceito: o “fator Snowden”, além de reconfigurar o jornalismo eletrônico, expôs o quanto países que recentemente chegaram a ser “semi-centrais” (Margarida Calafate Ribeiro), cada vez mais se tornam “periféricos”, inclusive a França, diante da submissão aos interesses dos EUA. Mesmo tendo sido conhecido que esses próprios países, e toda a União Europeia, tinham sido alvo de espionagem na rede mundial eletrônica, seguem masoquistamente obedientes aos EUA, o que demonstra que ainda não terminou o século 20, “século americano europeu”, conforme definiu Boaventura Santos diante da sujeição europeia no pós-Segunda Guerra até os dias atuais.
Ainda estão por se conhecer as consequências que virão do fato de a França, a Espanha e Portugal negarem espaço aéreo para o presidente boliviano e índio Evo Morales, sob suspeita de que ele transportava Snowden em seu avião, da Rússia para Bolívia. Pousando, quase obrigado, na Áustria, Morales foi constrangido a identificar aos passageiros da nave. Aliás, rigor que, como já foi lembrado por muitos (vide acima indicação de artigo de Boaventura Santos), os europeus não tiveram quando dos transporte de prisioneiros afegãos para Guantánamo, os “voos secretos da CIA”, que faziam escalas nas Canarias espanholas ou nos Açores, arquipélago português.
Portugal e Espanha, em crise financeira e existencial, bravamente enfrentadas por suas populações achacadas por sucessivos governos de centro-esquerda (prefiro classificá-la como “esquerda ambidestra”) e de centro-direita em conluio com a direita, se encontram à deriva. A Jangada de Pedra ibérica tem no leme, por ora, governantes que aspiram a um encalhe seguro na margem atlântica norte-americana, tal qual no romance de Saramago.
Resta saber também se os governos e populações dos países do Sul global, particularmente os latino-americanos, reagirão à altura e em conjunto no enfrentamento da interferência norte-americana via internet, bem como na regulamentação da mídia convencional e comercial, historicamente ligada aos interesses das grandes corporações internacionais e do capital financista mundial.
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Túlio Muniz é historiador e jornalista