No dia 10 de junho de 1895, a Gazeta de Notícias, do Rio, trazia na primeira página a reprodução de uma reportagem intitulada “Monstruosidade”, publicada dias antes na Gazeta da Tarde de Porto Alegre. O texto começava com as seguintes considerações: “Não encontramos palavras para relatar o fato horrível, desumano, bárbaro, que acaba de dar-se nesta cidade. O vocabulário é pálido. As suas expressões ficam aquém dos sentimentos que despertará a narração da monstruosidade que deu-se e que faz duvidar da natureza humana, pois excede a tudo quanto a imaginação concebe.”
Tratava-se da notícia de uma criança de dois anos que havia sido maltratada pelos pais durante meses, até que seu corpo se tornasse, nas palavras do jornalista, “uma só chaga purulenta”. Foi quando o pai, Antonio José Gonçalves Guimarães, resolveu atirá-la “num caixão de sabão às galinhas, na estrebaria, onde acabou seus sofrimentos, sob as picadas das galinhas. Três dias e três noites sofreu a infeliz, antes de morrer!”
Em meio ao relato desse “poema do sofrimento”, o jornalista anônimo chama o pai, Guimarães, de “fera”, e a mãe, Cristina, de “cruel” e opina que “nem o fogo seria castigo suficiente para este bárbaro”; e a certa altura abre o coração diante dos seus leitores: “Custa a um jornalista, diante das emoções profundas que o abalam, ser o calmo narrador de fatos diante dos quais a revolta de seus sentimentos é violenta.” Por fim, entre a admiração e o autoelogio, exclama: “Como é possível ter ainda o raciocínio frio para formar períodos e expor os fatos.” A despeito de todas as dificuldades, o repórter descreve o martírio da criança, o sepultamento e a exumação do cadáver com requinte de detalhes, deixando transparecer aqui e ali, talvez, algum deleite sádico.
Um pequeno Prometeu
Seis dias depois, na mesma Gazeta de Notícias, Machado retomava a notícia: “Guimarães chama-se ele; ela, Cristina. Tinham um filho, a quem puseram o nome de Abílio. Cansados de lhe dar maus-tratos, pegaram do filho, meteram-no dentro de um caixão e foram pô-lo em uma estrebaria, onde o pequeno passou três dias, sem comer nem beber, coberto de chagas, recebendo bicadas de galinhas, até que veio a falecer. Contava dois anos de idade. Sucedeu este caso em Porto Alegre, segundo as últimas folhas, que acrescentam terem sido os pais recolhidos à cadeia, e aberto o inquérito.”
O leitor familiarizado com a obra de Machado de Assis terá reconhecido aí o início de uma das suas crônicas mais famosas, considerada por Augusto Meyer uma de suas páginas essenciais. Embora o cronista afirme ter baseado sua crônica numa notícia de jornal, até onde sei a notícia nunca havia sido localizada. Só recentemente tive acesso a ela graças à Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, onde boa parte dos periódicos brasileiros do século 19 está disponível online, gratuitamente. A pequena “descoberta” permite comparar o que Machado escreveu e a reportagem da qual partiu, o que esclarece muito sobre a técnica machadiana e mostra por que essa é uma das suas páginas essenciais.
De saída, notamos que os fatos da crônica são rigorosamente baseados na notícia, preservados em todos os detalhes, até mesmo naquilo que parecia levemente inverossímil e intencionalmente irônico – os nomes das personagens, os três dias de sofrimento numa estrebaria, que lembram as circunstâncias do nascimento e do martírio de Cristo, o suplício a bicadas de galinha, que fazem de Abílio uma espécie de pequeno Prometeu…
Referência irônica a Darwin
A diferença mais notável é o apagamento do tom sentimental e da indignação que atravessam a reportagem. Aí está uma das marcas machadianas: o esvaziamento de qualquer traço sentimental, deixando o leitor diante dos fatos nus e crus. Sem nenhum tipo de consolo fácil, o cronista põe-se a buscar explicações para o ocorrido:
“Se não fosse Schopenhauer, é provável que eu não tratasse deste caso diminuto, simples notícia de gazetilha. Mas há na principal das obras daquele filósofo um capítulo destinado a explicar as causas transcendentes do amor. Ele, que não era modesto, afirma que esse estudo é uma pérola. A explicação é que dois namorados não se escolhem um ao outro pelas causas individuais que presumem, mas porque um ser, que só pode vir deles, os incita e conjuga. Apliquemos esta teoria ao caso Abílio.”
O narrador passa então à verificação irônica da teoria de Arthur Schopenhauer, desenvolvida em A metafísica do Amor, segundo a qual os homens são movidos por uma vontade cega, a conservação da espécie. Assim, os indivíduos, que pensam escolher seus parceiros, na verdade não passam de instrumentos da espécie. Donde se conclui que o culpado pelo sofrimento de Abílio é o próprio Abílio, que no fim das contas teria impelido os pais a se aproximarem, o que resultou no seu nascimento, com tudo o que decorreu daí.
Não só as ideias de Schopenhauer são reduzidas ao absurdo e caricaturadas. Nas tentativas de explicação para o suplício do pequeno Abílio, nada se sustenta. A mitologia grega e o cristianismo, que por meio de Prometeu e Cristo procuram dar sentido ao sofrimento humano, não servem de consolo nem de explicação, já que a morte de Abílio, ainda que se pareça com a dos grandes mártires, não tem nenhuma finalidade nem salva ninguém. Até mesmo a prestigiosa teoria de Darwin é referida ironicamente: “O organismo do menino Abílio era apropriado aos tormentos. Se chegasse a homem, dava um lutador resistente; mas a prova de que não iria até lá, é que morreu.”
Os problemas e os limites dos discursos
Assim, a notícia pinçada de um jornal obscuro é examinada em suas mais diversas implicações, ganhando tamanha relevância, importância e alcance que nem a mitologia, nem a religião, nem a filosofia parecem dar conta do fato ocorrido com uma família de pobres-diabos num lugar remoto no sul da América do Sul. O que estava fadado a ser consumido como notícia, esvaziado de sentido e exaurido em seus efeitos com a virada de uma página de jornal, ganha uma relevância e uma permanência imprevistas. Ao fim da leitura da crônica, o leitor mais interessado estará com a cabeça repleta de perguntas. Sem respostas nem explicações convincentes, a crônica fez seu efeito: começa o trabalho do leitor.
Estamos aqui no cerne da célebre ironia machadiana, que se faz presente de muitas maneiras: no descompasso entre o que se diz e o que se quer dizer; na desproporção entre as ideias, que oscilam muito de registro, juntando numa mesma frase a filosofia de Schopenhauer e as bicadas de galinha; na inversão de expectativas, que se dá tanto no nível da frase como do andamento e dos desdobramentos da história. A crônica dá pano pra manga e as interpretações dela podem e devem ir longe.
Voltando ao ponto de partida, a referência da crônica à matéria jornalística nos permite entrever Machado de Assis praticando um dos seus esportes preferidos: falar de corda em casa de enforcado. Ao reter a notícia destinada ao esquecimento – como centenas de outras notícias escabrosas e sensacionais que preenchiam e ainda preenchem as páginas dos jornais –, Machado expunha a insuficiência, a primariedade e o aspecto nada objetivo dos discursos que o cercavam.
O escritor, que publicou boa parte da sua obra em periódicos, expunha no próprio jornal os problemas e os limites dos discursos, que não diziam respeito apenas ao registro jornalístico, mas à religião, à filosofia, à ciência e a tudo o mais. Digamos que não era pouco o que Machado era capaz de extrair de uma notícia de jornal.
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Hélio Guimarães é professor de literatura brasileira na USP e pesquisador do CNPq