Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Ativismo põe em xeque narrativas oficiais

As divergências e convergências entre as narrativas convencionais, ou tradicionais, e a mídia ativista foram o pano de fundo de um debate realizado no dia 2 de julho em São Paulo, na sede da Oboré, empresa nascida para melhorar e expandir a comunicação do movimento sindical que ressurgia na segunda metade dos anos 1970.

Quatro modalidades de reportagem – revista, jornal, televisão e Ninja (Narrativas Independentes, Ação e Jornalismo) – estiveram representadas na conversa, promovida pela ONG Conectas Direitos Humanos, pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e pela Oboré. Os representantes dessas mídias foram Piero Locatelli, da Carta Capital, Thiago Herdy, do O Globo e diretor da Abraji, João Wainer, do programa TV Folha, e Bruno Torturra, do Ninja.

Convergência de narrativas

A cobertura jornalística da revolta de junho testou cérebros e músculos da mídia convencional e de novas modalidades criadas pelo advento da telemática, como o testemunho de participantes que usaram telefonia móvel para relatar na internet, com imagens, áudio e texto, o desenrolar de passeatas e outros atos públicos.

Narrativas avulsas não são novidade. Um episódio muito conhecido ocorreu durante protestos em Teerã contra o resultado das eleições presidenciais iranianas de 2009, quando a jovem Neda Agha-Soltan, de 26 anos, foi morta com um tiro. O dramático vídeo que a mostra em agonia correu o mundo pela internet.

O que houve de diferente no Brasil, agora, foi a centralização dessas narrativas num canal de exibição ao vivo, por streaming, o #Pós TV. E uma politização (apartidária) explícita dos relatos, afinados com o Movimento Passe Livre (MPL), grupo que abriu um caminho usado por milhões de pessoas, em centenas de cidades do país e fora dele, para fazer explodir uma multifacetada indignação.

A colaboração é poderosa

O que há de mais agudamente relevante no advento da mídia ninja não são, porém, seus atributos tecnológicos, nem tampouco seu ímpeto ativista. É colocar em xeque, pela presença nos locais das manifestações, e pelo relato direto, as narrativas oficiais, leia-se todas as narrativas da grande mídia jornalística, na medida em que elas são abastecidas e moldadas pelo discurso do poder.

Ao mesmo tempo, uma mídia assumidamente ativista carece de abrangência e alcance. O jornalismo militante é tão velho quanto o próprio jornalismo, que começou assim, partidarizado. Sem ele, sem a livre expressão da opinião, não há democracia. Só com ele também não há. Fora das ditaduras, o espaço público não cabe em nenhuma narrativa determinada por paixões, emoções e interesses.

O melhor jornalismo é o que se pode reconhecer como veículo por excelência do processo democrático. É difícil pensar em livros que tenham sido mais úteis à compreensão dos horrores por eles descritos do que os secos Hiroshima, de John Hersey, e É Isto um homem?, de Primo Levi.

Ninja na berlinda

No debate da Oboré, Torturra, do Ninja, reconheceu as deficiências da cobertura ninja e propôs a colaboração entre as diferentes modalidades. Um mês se passou entre a realização do debate e a publicação deste relato. O Mídia Ninja ganhou pontos no período, notadamente por sua contribuição ao desmentido da versão oficial dada no Rio de Janeiro à prisão de um estudante, Bruno Ferreira, que participava de manifestação contra o governo de Sérgio Cabral Filho no dia da recepção ao papa Francisco no Palácio Guanabara (segunda-feira, 22/7). A Polícia Militar disse que ele atirara um coquetel molotov sobre um soldado. Filmagens mostraram que não era verdade. Elas foram exibidas no dia seguinte no Jornal Nacional da Rede Globo, a mais influente mídia jornalística do país.

Em aparente paradoxo, uma associação entre vídeos do Ninja e da Globo, e apuração jornalística da televisão, desmontaram a versão oficial: repórteres da Globo obtiveram cópia do inquérito, onde o PM que o levou ao distrito policial declara que ele não estava com explosivos no momento de sua prisão. O episódio foi descrito pela ombudsmanda Folha de S. Paulo, Suzana Singer, com sagacidade (28/7); ver aqui.

Na mesma edição da Folha, o comentarista de mídia jornalística Nelson de Sá chancela essa elevação do Mídia Ninja ao primeiro plano do debate sobre os meios de comunicação (“Ninja se projeta ao cobrir protestos ao vivo”), agraciados, em entrevista de Dilma Rousseff a Mônica Bergamo, com mais uma reafirmação, pela presidente, da defesa da liberdade de expressão (“Não sou a favor da regulação do conteúdo. Sou a favor da regulação do negócio”).

Relatos objetivos

No debate de 2 de julho, Locatelli, da Carta Capital, afirmou que os relatos objetivos de repórteres profissionais foram muito importantes para o próprio crescimento da onda de protestos, ao passo que as tentativas precipitadas de análise de nada serviram. Herdy, do O Globo, se mostrou empolgado, do ponto de vista da democracia, ao ver milhares de pessoas sacarem seus celulares e gravar, acompanhar a ação política do princípio até o fim.

A partir daí, “não cabe mais à Folha, ao Estado, ao Globo, aos sites dizer o que aconteceu. Não se pode dizer uma coisa nos jornais e as redes dizerem outra”, argumentou. Segundo o repórter do Globo, os grandes jornais não conseguiram reunir num só lugar informações e imagens sobre o que estava acontecendo no Brasil todo como conseguiu o Ninja.

Ele chamou a atenção para o fato de que a polícia mata diariamente na periferia sem que isso cause comoção comparável à que causou sua violência nas passeatas do MPL. Herdy afirmou que jornalistas têm um papel importante no controle da polícia e que devem sempre refletir sobre as tarefas que receberam e estão executando.

Não confie em ninguém com menos de 70

Wainer, do TV Folha, contou que, tendo em vista a grande confusão reinante nas interpretações dos fatos, no segundo programa sobre os protestos só foram convidados a fazer análises cientistas sociais e jornalistas com mais de 70 aos de idade. Ele também argumentou que a polícia foi violenta, mas menos do que é na periferia.

Torturra, egresso da grande imprensa, sustentou que militância não é antítese da objetividade se o narrador deixa claro desde o início de que lado está. Para ele, a quebra da narrativa oficial se traduz no fato de que até a quinta-feira 13 de junho a mídia usou o esquema “estudantes pararam o trânsito, entraram em conflito com a polícia, e a polícia teve de agir com violência para liberar o direito de ir e vir dos automóveis”, deixando revoltadas as pessoas que testemunharam os fatos, e depois foi obrigada a mudar de rumo.

Ele considera a fragilização econômica das mídias mais importantes não como tragédia, mas como oportunidade de atualização do jornalismo, e considera o maior desafio do Ninja, agora, aumentar a qualidade do jornalismo ativista.

Sérgio Gomes, criador da Oboré, reivindicou que haja um enriquecimento da crônica sobre os dias de junho, uma documentação do que aconteceu, como, por exemplo, o encontro entre “canibais e antropófagos” descrito por Elio Gaspari na Folha de S. Paulo e no Globo.

Wainer mencionou fala do pesquisador Sergio Adorno, da USP, segundo a qual nunca houve conquista popular sem algum grau de violência. O autor do presente relato questionou essa premissa com o argumento de que a violência serve basicamente à opressão, embora haja momentos em que os oprimidos não vejam outra forma de ação.

Aldo Quiroga, da TV Cultura e da PUC-SP, fez ver que a mídia alternativa já existiu antes no Brasil e defendeu uma militância a favor do jornalismo. Milton Bellintani, do projeto Repórter do Futuro, disse que os jornalistas têm compromisso com o interesse público e a democracia. Bellintani relembrou que as redações já foram locais de debates como o que ali se realizava, característica anulada por uma lógica empresarial concorrencial.

Proteger repórteres

Antes do início da conversa propriamente dita, Sérgio Gomes, o Serjão, disse que o debate foi organizado com o objetivo de promover uma troca serena de ideias, sem caráter de espetaculosidade. O diretor executivo da Abraji, Guilherme Alpendre, relatou que a associação havia contabilizado 53 agressões policiais a jornalistas desde o início dos protestos até a última semana de junho, em várias capitais (leia aqui).

O bate-papo foi mediado pelo coordenador de Comunicação da Conectas, João Paulo Charleaux, que cobriu as manifestações em São Paulo para o jornal La Tercera, de Santiago do Chile. Charleaux disse que a ideia de promover o encontro surgiu “a partir do número assombroso de inscritos para o 12O curso Jornalismo em Situações de Conflito e Outras Situações de Violência (mais de 700 até meados de julho). Achamos que seria uma pena que só 25 pessoas pudessem discutir o assunto”.

O debate entre quem participou da cobertura “é uma chance de saber como esses jornalistas estão vendo uma situação desafiadora nos aspectos ético, logístico, técnico, em todos os aspectos”, avaliou o jornalista, que há bastante tempo participa de debates semelhantes, inclusive tentativas da ONU de fazer resoluções a respeito de proteção de jornalistas.

Instinto de sobrevivência

“Sei como isso é complicado e muitas vezes inviável. O Conselho de Segurança, em sua próxima reunião, vai abordar o tema de uma resolução de proteção de jornalistas, no âmbito jurídico, diplomático. E venho acompanhando o debate do Insi (International News Safety Institute) e da Abraji sobre como capacitar os repórteres para sofrer menos nessas situações, devido a ações cometidas pela polícia e às vezes o comportamento deliberado do Estado de atacar a imprensa. Assim como de pessoas que estão na manifestação e também atacam os jornalistas. A proteção de um fotógrafo, de um cinegrafista, de um cidadão que registra imagens com seu celular tem sido baseada no seu próprio instinto de sobrevivência, sua capacidade de se preservar para continuar registrando as situações”, disse Charleaux.

O vídeo da conversa pode ser visto aqui. O áudio, de melhor qualidade, pode ser ouvido aqui.

O solerte vinagre

Piero Locatelli, da Carta Capital, disse que a violência da repressão policial na quinta-feira, 13 de junho, não o pegou de surpresa, porque naquela manhã os editoriais pediam força. Veja o editorial do O Estado de S. Paulo, trechos do editorial e charge da Folha de S. Paulo:

 

 

O repórter se referiu também à declaração do comandante das operações de policiamento previstas para o Centro, tenente-coronel PM Marcelo Pignatari, segundo a qual não haveria tolerância e a tropa de choque fora chamada para intervir contra atos de vandalismo. Até então, disse Locatelli, a polícia ainda estava “segurando a mão”. Ficava claro que naquele dia seria diferente.

Locatelli, que havia sofrido um bombardeio de gás lacrimogêneo no Largo da Batata, na segunda-feira anterior (10/6), dessa vez se preparou e acabou detido por carregar um frasco de vinagre.

A “proibição” do vinagre daria origem a muita gozação. Num programa de propaganda “gratuita” do PPS, dias depois, falava para a câmera o ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, ex-deputado federal e hoje vereador Raul Jungmann, em cena gravada diante de uma manifestação no Recife, quando um rapaz levantou atrás da cabeça dele um cartaz com a inscrição “Liberem o vinagre!”, tornando impossível prestar atenção ao que dizia o protagonista. A direção do PPS não substituiu o take cômico, talvez devido à pressa de surfar na onda de protestos – passou até a se assinar “PCB-PPS”, como se a esotérica alusão à origem comunista do partido o credenciasse a compartilhar dividendos do movimento.

Grande ajuda dos amigos

Detido, o repórter da Carta Capital foi levado à Praça do Patriarca. Conseguiu gritar para colegas, que fizeram um escarcéu. Vieram advogados e um representante da Abraji. Foram “detidas para averiguação” 197 pessoas, segundo boletins de ocorrência lavrados no 2O Distrito Policial – algumas por carregar bandeira de partido, tamborim, tinta guache, megafone. Houve os que sofreram cerceamento específico por serem jornalistas.

Locatelli disse que uma nota divulgada pela Abraji foi muito importante, porque pedia sua liberação imediata e circulou muito. Ele elogiou relatos publicados sobretudo nos noticiários online, por terem sido muito objetivos.

Seguem-se as demais falas dos participantes da roda de conversa.

Locatelli. Eu tenho opinião. Acho, por exemplo, que a PM deve acabar, ou ser desmilitarizada. Mas uma coisa que deu força ao meu relato foi que eu me ative completamente ao que tinha acontecido, fui objetivo. Eu podia ter soltado um texto na hora: Olha que absurdo, como é possível existir a PM? Mas quando se é objetivo não se dá margem para crítica. Relatos objetivos de diversos repórteres ajudaram muito na virada de opinião pública.

Ficou estranha uma tentativa de análise muito rápida. Colunistas políticos que normalmente são muito bons estavam meio perdidos. A coisa fugiu da polarização PT-PSDB-PMDB e eles não conseguiam explicar. Na sexta-feira (14/6), depois daquele horror que aconteceu, tinha colunista tentando analisar quem ganha e quem perde politicamente com aquilo. Isso não ajuda em nada. O que ajudou foram os relatos que muita gente fez, como o que o TV Folha fez.

Ninguém esperava   

O que aconteceu ali foi algo que nós nunca vimos em São Paulo. No segundo dia de protestos a gente comentava: Vai acabar logo, tarifa zero, uma pauta tão estranha, não vai dar em nada. Se alguém disser que esperava o que aconteceu, está mentindo. Os manifestantes não esperavam, os jornalistas não esperavam. O que contribuiu para o debate foram os jornalistas que tentaram se ater ao que estava acontecendo, ao invés de ter uma pretensão muito grande de análise. Viu-se jornal no outro dia colocando gráfico em formato de sistema solar e falando: O núcleo central é MPL, tem o Anonymous do lado. Não ajudou em nada a compreender o que estava acontecendo.

[A reportagem criticada por Locatelli, uma pioneira tentativa de mapear as forças políticas envolvidas no processo ou a ele agregadas, é de Bruno Paes Manso, foi publicada no O Estado de S. Paulo e pode ser lida aqui. Abaixo, uma reprodução da imagem que a ilustrou.]

Primeira pessoa

Nos portais de notícias, que geralmente não publicam relatos em primeira pessoa, teve uns relatos ótimos de pessoal do UOL, do Terra, do IG. Contribuíram muito para entender o que estava acontecendo. E algumas matérias de fundo político foram muito importantes. Por exemplo, o pessoal do MPL não gosta de aparecer muito. As pessoas tentavam fazer perfis deles, onde estudaram, que filmes gostam de ver, o que gostam de fazer.

A cobertura da Tatiana Farah no Globo foi muito boa porque ela simplesmente se perguntou por que eles não gostam de aparecer, ao invés de ficar insistindo nessas perguntas. E viu que há uma razão para isso, as origens zapatistas do movimento, e explicou. Esse tipo de matéria estava ajudando a compreender o que estava acontecendo. O perfil dos manifestantes era algo que não estava cabendo, nem no Movimento Passe Livre, nem nos movimentos ao redor. E também as análises precoces que muita gente tentou fazer.

(Locatelli lançou pela Breve Companhia o livro digital #VemPraRua – As revoltas de junho pelo jovem repórter que recebeu passe livre para contar a história do movimento.Ver também Choque de democracia, de Marcos Nobre, e O Brasil nas ruas, publicado pelo O Globo.)

Herdy. A tentativa mais próxima de se compreender o que aconteceu foi feita por quem foi para a rua. Ver as pessoas que estavam ali, acompanhar do início ao fim. O Globo é um jornal do Rio que tem sucursal aqui em São Paulo, todos nós ficamos envolvidos. Eu fui para a rua ver o que estava acontecendo e isso foi o que mais se aproximou da compreensão que se pôde ter desse processo.

Sobre a questão tecnológica, tem vários problemas. Era o celular – guardem bem isso, com celular se filma assim [na vertical], senão não presta para a edição, depois –, bateria de celular que acabou todos os dias depois de seis, sete horas na rua, a gente tentando o tempo todo se comunicar com a redação, informar para o site sobre o que estava acontecendo e já pensar na matéria para o dia seguinte.

História acabada

As matérias para sair no jornal no dia seguinte, feitas no fim da tarde, eram todas passadas por celular. O que dava para fazer era para o site, à noite, com um pouco mais de calma. Eu não conseguia dormir com tudo aquilo que estava acontecendo. O relato meu de que eu mais gostei foi feito para o site, terminado quase meio-dia do dia seguinte. O jornal já tinha saído de madrugada. Depois é que se consegue contar uma história acabada sobre aquilo.

Não sei se sou muito novo, mas tenho a interpretação de que foi um momento histórico sob vários aspectos, tanto do ponto de vista jornalístico como do ponto de vista do amadurecimento da democracia brasileira. Por quê? Estávamos ali jornalistas, e não apenas jornalistas – hoje quem leva informação não é só o jornalista credenciado, com seu crachá, são todos que estão com o celular em mãos –, e era impressionante ver como o que aconteceu na quinta-feira (13/6), um dia de grande virada, dia em que a polícia decidiu, houve uma decisão política de acabar com a manifestação independentemente de quem estava ali, aquele momento em que milhares de pessoas sacam seus celulares, gravam, e acompanham a ação da política do início ao fim, é difícil imaginar o que isso representa, empolga muito, do ponto de vista da democracia, porque não cabe mais à Folha, ao Estadão, ao Globo, aos sites dizer o que aconteceu.

A verdade da rua

Você não pode dizer uma coisa nos jornais e as redes dizerem outra. Isso teve um papel tremendo até do ponto de vista de controle da ação policial. Quando terminou a manifestação e os policiais, na batalha da Consolação, foram perseguindo as pessoas nas ruas de São Paulo, qualquer reunião de duas ou três pessoas eles atiravam bombas de gás e bala de borracha indiscriminadamente, quando isso acontece, e não acontece em becos, acontece com todos os celulares virados para essas cenas, pessoas filmando da janela de casa o que estava acontecendo, isso para a polícia foi muito forte.

O comportamento deles nos dias seguintes se baseou muito nisso, eles não podiam fazer o que quisessem, estavam submetidos a esse tipo de controle, isso é muito bom, apesar de termos tido casos de jornalistas que foram agredidos, sofreram algum tipo de violência. O controle é maior e isso é possível porque vivemos numa democracia.

Aqui estão pessoas que fizeram, do ponto de vista jornalístico, alguns dos trabalhos mais interessantes dessa cobertura. Se o Piero tivesse querido fazer uma matéria sobre uma pessoa sendo presa por carregar vinagre, não conseguiria fazer o que ele fez sobre ele mesmo, com frieza, continuar filmando numa situação de estresse, sendo preso, e o vídeo que ele faz. Tem uma cena sensacional, uma hora em que o coronel pega o telefone e diz: Filma aqui. É um resumo muito bem acabado do que foi a polícia naquele dia, do absurdo da situação. Na última cena [Piero] pergunta ao comandante da operação se é proibido ter vinagre, e ele diz que não, ele admite o absurdo da situação. (Veja aqui o vídeo.)

Também foi impressionante o que o Ninja conseguiu fazer. Os grandes jornais não conseguiram reunir num só lugar informações e imagens sobre o que estava acontecendo em todo o Brasil como conseguiu essa rede.

Autopreservação

Quanto à questão da segurança, o que contou, como diz o João (Wainer), foi o instinto de autopreservação. No final das contas, todos os veículos foram pegos de calça curta, não vi ninguém com equipamento de segurança. A Abraji já divulgou algo a respeito. Existe, por exemplo, um boné que é rígido, protege, e você não usa capacete, não fica com cara de combatente, que pega muito mal. Eu não tive coragem de ir para a rua com capacete. Algumas pessoas foram. De bicicleta. Graças a Deus não aconteceu [o pior].

Foi terrível o que aconteceu com o Sérgio [Silva, fotógrafo parceiro da Agência Futura Press; ferido com bala de borracha, correu risco de perder a visão do olho esquerdo]. E também com a repórter do TV Folha [Giuliana Vallone, atingida na região do olho direito por bala de borracha]. Felizmente não ficaram com sequelas, mas poderia ter acontecido muita coisa pior.

Também levei uma bala de borracha, bateu na dobra da calça, não fiquei com hematoma. Mas é uma situação complicada. Você está no meio, não consegue sair correndo com a multidão.

Quero falar da dificuldade de compreender e da importância de ir para a rua. O Elio Gaspari foi, para mim, quem deu a melhor lição nessa cobertura, porque é um colunista, tem sua reputação, foi para a rua, viu o que aconteceu, como ele não é jovem as pessoas acreditam, uma cena absurda, um grupamento da força tática que chega por trás da manifestação, aquilo mesmo que ele escreveu [leia aqui], se postam no meio de um cruzamento e saem batendo nas pessoas. Foi uma cena desastrosa, depois se descobriu, ainda bem que perceberam.

Grupo no What’s Up

A Abraji se manifestou no caso do Piero e é uma pena que não tenha condições de fazer isso para muitos outros jornalistas. Aqui em São Paulo, depois dessa quinta-feira fatídica (13/6), jornalistas criaram um grupo no What’s Up, se alguma coisa acontece já cinquenta jornalistas ficam sabendo naquela hora.

Há contradições que estão aí na nossa cara. A ação da polícia na periferia de São Paulo, ninguém está nem aí, a ação da polícia na Maré, no Rio, são coisas que a gente tem que debater muito, porque nós, jornalistas, temos que ligar para essas matérias também. Isso não é militância, é controle da atividade policial, um dos papéis do jornalista: independentemente de você gostar de A ou B, a polícia não pode matar, não pode extrapolar.

Nós somos atores nesse controle. Acredito que temos uma missão e que isso faz diferença. Enquanto estivermos noticiando, relatando, contando o que vemos, não precisa de mais nada. É contar o que viu. Frequentar o lixo da matéria do dia a dia. Às vezes morre no detalhe alguma coisa muito importante.

Vi na Nayara [Vivian] e no Marcelo [Hotimsky], do Passe Livre, um protagonismo, fui conversar com a Nayara, conversa vem, conversa vai não consegui muita coisa da vida pessoal dela. Então, vamos negociar. “Vou fazer uma matéria com 20% do seu perfil pessoal e 80% da causa”. Pode ser? Ela não topou. Queria 10% e 90%. Eu disse: “15% e 85%”. Negociamos. Isso foi antes da manifestação. Beleza.

Saiu a matéria. (Leia aqui.) É óbvio que o jornal detestou a matéria, não tinha nada dela, e ela também: “Foi protagonismo demais, detestei”. Ninguém gostou. Não tinha jeito. E no lide eu contei exatamente isso: que a única condição para ela falar era falar mais da causa do que dela. Isso era notícia, era novidade. Acho o exemplo importante. Eu poderia ter publicado simplesmente um perfil e dane-se, foi o que me pediram. Acho que você refletir sobre o que está fazendo é o mais importante.

Wainer. A cobertura foi muito difícil sob vários aspectos. Um deles foram as mudanças muito rápidas. Uma coisa que acontecia na segunda-feira já tinha na terça outra cara, na quarta já mudava de novo, na quinta, na sexta, e para nós, do TV Folha, que estávamos fazendo um programa semanal, fomos ao ar no domingo, foram terríveis essas mudanças que foram acontecendo. Ficamos completamente perdidos. Tínhamos um material factual muito forte, eu tenho uma equipe bem “sangue nos olhos”, os moleques foram para cima, consegui umas imagens de ação muito incríveis, eu fui para a rua também.

Concordo com o Piero quando fala que as análises foram perdidas. Precisamos usar análise porque não tinha como eu dar no domingo uma coisa factual acontecida cinco dias antes. Até escolher os analistas… A confusão dos analistas acabou sendo significativa, também, porque você via ali pessoas experientes que não estavam sabendo o que falar. No segundo programa acabamos fazendo a opção de chamar só analistas com mais de 70 anos, o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, o historiador Boris Fausto e dois jornalistas experientes, Clovis Rossi e Janio de Freitas. Era uma análise junto com o factual.

A matança ignorada

E realmente estava todo mundo perdido, cada um pensando uma coisa, ninguém sabia o que estava acontecendo. Agora as coisas estão acalmando e vão surgindo análises um pouco mais sensatas e estamos começando a entender levemente o que está acontecendo. Ainda vai levar tempo para conseguirmos entender realmente.

Sobre a violência da polícia, eu não esperava nada diferente do que está acontecendo. Acho que a polícia foi violenta, mas menos violenta do que ela é todo dia na periferia. A polícia está matando geral na periferia. Você escuta relatos absurdos de gente morrendo, tem acusações gravíssimas de grupos de extermínio formados por policiais, segundo essas acusações, que colocam touca ninja e matam gente na periferia aleatoriamente. O que aconteceu na quinta-feira (13/6) foi significativo, mas muito menos do que a gente vê todo dia, e a gente grita muito menos por conta dessa violência que acontece na periferia. A polícia não matou ninguém na quinta-feira, mas está matando todo dia na periferia.         

Inovar o tempo todo

No TV Folha todo mundo trabalhou como louco, os moleques foram para a rua, cheiraram gás lacrimogêneo para caramba, tomaram tiro, a Giuliana tomou um tiro no olho, os editores que não foram para a rua viraram madrugadas e madrugadas decupando material. Tentamos inovar o tempo todo.

No Largo da Batata, na segunda-feira (17/6), inventamos um drone para botar lá no meio, foi até uma loucura. Todo mundo percebeu logo que era um momento histórico. Acho que foi importante eu ter ido para a rua porque no final das contas quem vai fechar sou eu. É diferente de você estar sentado no ar condicionado, ouvir o relato do teu repórter e decidir para que lado você vai. Eu estava lá no saque, na invasão da prefeitura, no quebra-pau na quinta-feira (13/6), acho que isso foi bem significativo, também.

É uma lição de jornalismo que estamos tendo. É muito gratificante poder cobrir um momento histórico como este. Esse mês de junho vai ficar lembrado para sempre, tipo maio de 68, 11 de Setembro, aqui no país vai ser lembrado para sempre. O material que estamos produzindo é histórico. Não basta a gente colocar no ar a matéria. Cada jornalista que esteve na rua tem a obrigação de pegar seu material e editá-lo com calma para que fique alguma coisa interessante, que seja pesquisado na história para sempre. Todo mundo tem que agrupar o seu material e deixá-lo disponível para uma consulta posterior, que vai ser superimportante.

Torturra. O mais interessante para nós foi o lado bom e ruim de a gente ter feito uma cobertura precipitada. Estávamos discutindo o processo de formação de uma rede de jornalismo independente, em função de um processo de cobertura que já vínhamos fazendo em São Paulo através da Pós TV e dos coletivos culturais, principalmente o Fora do Eixo e os coletivos culturais ligados ao Existe Amor em SP.

Todo mundo que estava envolvido nisso, exceto eu, não vem de um background de jornalismo, mas essencialmente de ativismo. Nascemos, antes de mais nada, de um ponto de vista militante. Sempre tivemos consciência disto: não tentar ver a militância como uma antítese da objetividade, e sempre deixando claro, para nós mesmos e para quem vê nosso material, que o nosso posicionamento precisa ser claro e honesto. A melhor forma da nossa militância não significar uma perda de qualidade jornalística é o fato de que a gente não esconde nada do que aconteceu, mesmo que isso não seja bom para a nossa causa. A não edição, o tempo real, o streaming jogam muito a nosso favor, e o fato de não disfarçarmos [a posição tomada].

Marcha da Maconha, 2011

O nome Ninja veio muito depois. O projeto de comunicação começou curiosamente numa repressão policial na Marcha da Maconha de 2011. Ali também a polícia agiu com muita violência – concordo com o que o João disse, eu não esperava nada diferente. Foi uma violência muito mais leve, porque aconteceu no Centro, basicamente com gente mais clara do que [as pessoas que] em geral a polícia reprime.

Mas para quem estava lá, e eu estava, o gás lacrimogêneo e a barra de borracha sempre te deixam puto, te dão muito propósito para você ir para a rua novamente, com mais indignação e vontade de comunicar isso.

E naquele dia, a grande virada, a grande diferença em relação a 2011 é que quando você volta para casa a narrativa midiática é quase uma só: estudantes pararam o trânsito, entraram em conflito com a polícia, e a polícia teve que agir com violência para liberar o direito de ir e vir dos automóveis e tudo o mais. Quem estava lá obviamente ficou muito revoltado.

O papel da mídia nessas manifestações foi totalmente crucial. E essa incapacidade de entender o que estava acontecendo só se tornou objetividade, de fato, a partir de quinta-feira (13/6), quando muito jornalista foi agredido e acho que a mídia passou por um processo muito saudável, que sempre foi o papel dela, de constranger o poder, a política, a polícia, o bandido, quem quer que seja, a mídia nunca teve esse poder virado contra ela. O constrangimento da própria mídia. Isso vem acontecendo através das redes.

Cidadão multimídia

Aquela quinta-feira, aquela madrugada (de sexta-feira, 14/6) para mim foi muito histórica também no Facebook, ver como uma narrativa oficial que estava sendo muito bem trabalhada em editoriais, palavras, manchetes, desabou através do olhar público, do cidadão multimídia, que fez um papel de reportagem objetiva, mesmo que ele estivesse muito parcial, era um sujeito indignado em ação, mas isso constrangeu a mídia, que no outro dia teve que ser objetiva.

Uma, que ela foi alvo, muito claramente, e aí eu acho que o jornalista de novo se confunde com o cidadão – muito jornalista foi agredido, mas não por ser jornalista, e sim porque estava lá no meio; e muito jornalista foi agredido porque era jornalista, isso é uma coisa que também já vinha acontecendo, a polícia não gosta de ser filmada, nem fotografada. Nem me arrisco a dizer se a polícia decidiu de fato atacar a imprensa, se na cabeça deles eles queriam de fato constranger particularmente a imprensa, mas o fato é que isso foi crucial para que se tivesse a segunda-feira (17/6), para que as pessoas tivessem ficado revoltadas.

Para a maioria das pessoas que estavam nesse núcleo no início do Mídia Ninja, a gente tinha convocado uma reunião para aquela quinta-feira (13/6), para discutir como seria o nosso site, o modo de financiamento, tinha 300 pessoas confirmadas e a gente teve que cancelar naquele dia, porque a gente sentiu: Não vai dar para fazer isso hoje. Hoje o bicho vai pegar e a gente vai ser muito mais útil lançando o Ninja na rua do que fazendo essa reunião. A gente quer ter nosso veículo, é chato ter de usar o Facebook, mas ele é muito útil.

Instinto de perdigueiro

Eu reforço isso: ninguém que estava na rua vem com background de jornalista. O instinto de comunicador, esse instinto de perdigueiro sem muito treino, sem muito adestramento nessas técnicas e nesses processos que são muito valiosos – e a gente tem que discutir isso dentro do nosso próprio núcleo –, mas com esse imediatismo, com essa urgência, e essa quebra da narrativa oficial que vinha acontecendo na mídia antes daquela quinta-feira, essa perda de credibilidade que muita gente vive: Ah, não vou confiar na Folha, na Globo, no Estado, o que não é de todo justo, mas tem as suas razões, muito mais no editorial do que nos repórteres que estão na rua, e aqui temos exemplos muito claros de como na rua a reportagem cumpre seu papel melhor do que ninguém.

A gente captou muito rápido esse imaginário de se esperar uma nova mídia, uma mídia independente, envolvida dentro da ação. E a coisa explodiu mesmo quando a gente estava com um celular na mão, transmitindo, quando o Choque chegou na Augusta e começou um conflito muito sério entre o Choque e os manifestantes, a gente estava transmitindo e nenhum veículo estava falando disso. A Paulista parou, houve um incêndio daquele display da Coca-Cola, e nosso repórter estava lá.

Dois pontos de ibope

A gente teve [o equivalente a] dois pontos de ibope, se a gente for ver a [audiência], algo totalmente inédito, a gente já vem há dois anos fazendo [coberturas]. Eram as coisas que mais se falavam: Nossa, os caras estão lá, assistam a isso. E a outra assim: Como é que a bateria não acaba, como é que o 3G funciona, como esses caras estão conseguindo fazer isso? Tinha uma emoção muito grande na parte técnica.

A experiência desses dois anos tentando cobrir rua, fazer um jornalismo ativista, subjetivo, mostrou que é gambiarra mesmo que a gente faz. A gente usa laptop nas costas com bateria para o celular. Tem vários truques para mandar fotos, desde uma câmera com wi-fi até um motorista na base que corre, pega o cartão e leva, sistema para quando tem manifestações gigantescas e o 3G cai, mas quando tem repressão o 3G volta, todo mundo põe o celular no bolso e você consegue.

Na manifestação da quinta (20/6) na Paulista, aquela gigante, patriótica, a gente sacou que ia ser gigante e o 3G não vai funcionar. Como a gente faz? A gente comprou um modem 4G, criou uma rede wi-fi em torno da gente com um laptop. Tinha três pessoas nessa rede, um transmitindo, outro no celular acompanhando só o Twitter. Importante: a gente tem uma base humana muito ativa fora da rua compartilhando essas coisas, pegando relatos, nos telefonando para dizer como está a coisa.

Rede colaborativa

Fizemos uma chamada, estamos tentando contatar gente no país inteiro para formar essa rede colaborativa, e já temos mais de 1.500 pessoas cadastradas em 11 estados, 150 cidades, tem gente disposta a cobrir as coisas, a ir para a rua. Estamos fazendo workshops por hang-out. Hoje estamos batendo um recorde com uma transmissão direta já de 60 horas da Câmara de BH, ao vivo, já estamos há 12 horas em Belém, ocupação, também.

O desafio agora é mais do que cobrir, é como pegar essa galera toda, que vem de uma base muito precária, mas com um estímulo muito grande, com um instinto jornalístico muito grande, como qualificamos rápido essa galera, como fazemos um sistema de checagem para não dar barriga, é muito complicado, como a gente consegue qualificar o que a gente vem fazendo, e muito mais do que uma oposição, do que uma briga com a grande mídia, eu acho que a mídia alternativa é muito complementar ao trabalho da grande mídia, que vem se tornando economicamente frágil, e acho que muito mais do que uma tragédia isso tem que ser encarado como uma oportunidade muito grande do jornalismo se atualizar. O que está em crise é o modelo comercial, [não] a pertinência [do jornalismo], na idade da rede, do boato, na hora em que a informação corre que nem rastilho, isso torna cada vez mais necessária a ética, a checagem, a apuração e a capacidade de encontrar modelos novos.

Serjão. Eu tenho 63 anos e posso dizer que uma coisa como essa da Praça Roosevelt não aconteceu em mais de quarenta anos. A violência policial na periferia, ou no entorno dos estádios, é de outra natureza. A Folha talvez tivesse podido… ela tinha um grande repórter, que era o [André] Caramante, e até agora não foi explicada a saída dele [para o exterior], a volta, por que ele foi colocado de lado nesta cobertura. Nenhum jornalista mais experiente do que o Caramante para falar sobre como a polícia se comporta. A Folha nos deve uma explicação.

Alpendre. Caramante está trabalhando na Agência Folhas, está dando uma acalmada na situação dele com a polícia, acho que ele volta em breve para essa cobertura. Não estava nas manifestações porque estava de férias. [Caramante voltaria a cobrir assuntos de polícia no final de julho.]

Serjão. O que aconteceu no dia 17, a tropa de choque ter assumido o controle da cidade, é inédito. Houve ali o propósito de desmonte da manifestação, que era pacífica até então, com perseguição das pessoas por todos os lados. Eu mesmo tenho um relato pessoal, porque o meu filho [Paulo Fávero] foi atropelado na Doutor Arnaldo, um carro subiu em cima do pé dele, quebrou o tornozelo, está com nove pinos e uma placa, exatamente porque tentava parar o trânsito para que as pessoas pudessem sair e descer por aquela ladeira do Pacaembu, porque era bomba de todos os lados.

Ouvidoria pouco acessível

No fim de semana eu tentei contato com a Ouvidoria da Polícia. É uma instituição criada pelo primeiro ato de governo de Mario Covas (1995-2001), exatamente porque sabia que a polícia tinha uma história, a força da inércia é muito grande, era preciso ter algum tipo de controle externo. Depois, esse decreto se transformou em lei. O ouvidor deve ser escolhido a partir de uma lista tríplice elaborada pelo Conselho Estadual da Pessoa Humana, que tem 80% de representação da sociedade civil; essa lista vai para o governador, que escolhe o auditor. O atual se chama Luiz Gonzaga Dantas e está há dois anos e meio sem mandato.

Não houve um simples registro desse fato, até agora. O governador do estado recebeu essas indicações, a lista ficou meses na mesa dele, depois devolveu para o Conselho, porque não aceitava que a lista tríplice tivesse sido aprovada por consenso. Exigia que fosse por voto. Fiquei sabendo que a Ouvidoria não funciona sábado e domingo – mais de 50% da violência policial acontece entre sexta-feira à noite e a madrugada de segunda. Isso foi levado a um seminário realizado na GV, estava presente o Estadão, também uma pessoa do Ministério Público que presidiu essa assembleia do Conselho Estadual que por consenso indicou há dois anos e meio essa lista para o governador, e simplesmente o Estadão não deu uma linha, faz de conta que esse fato não existe. Um dos poucos mecanismos que a sociedade teria, um foro ao qual se dirigir quando a polícia passa do limite, não existe, e isso tem passado batido.

Isso, o cidadão que está por ali, o jornalista amador, não pode resolver. Quem estava no comando daquela tropa de choque que passou por cima dos quatro coronéis do comando da PM que vinham acompanhando a manifestação? Quem deu a ordem para que a polícia agisse dessa maneira? Foi a partir do que houve no dia 13 que as coisas aconteceram nacionalmente, não por causa dos 20 centavos do Passe Livre. Grande parte das pessoas que compareceram nos dias restantes foi como reação a essa violência do dia 13. Isso também tem passado batido. A crônica pula esse momento, dando de barato que esse comportamento da PM “faz parte”. Que “é assim”. Não é assim.

“Detenção para averiguação”

Locatelli. Eu verifiquei todos os BOs e constatei que na terça-feira (13/6) o comportamento da polícia mudou: a maior parte das detenções feitas naquele dia foi de estudantes e profissionais, e normalmente isso não aconteceria. A própria ”detenção para averiguação” a polícia usa na Cracolândia. É para pegar aqueles que estão lá, não estão fazendo nada, você precisa levar, então usa “detenção para averiguação”. Naquele dia, usou-a para a classe média. Na terça-feira seguinte (18/6), quando ocorre a depredação da Prefeitura, a polícia volta ao seu comportamento normal. O que aparece nos BOs é que a depredação da Prefeitura começou um pouco antes da sete da noite e a depredação das lojas foi entre oito e meia e nove e pouco. A polícia vem depois. A maior parte das detenções da polícia na sexta-feira ocorre depois da meia-noite. E você vai ver os BOs, “endereço não definido”, escolaridade: no máximo ciclo básico, profissão não definida. É a hora em que eles pegam os moradores de rua. Voltou para a seletividade de sempre.

Wainer. Eu estava acompanhando o saque, entrei dentro do Magazine Luiza com alguns saqueadores, e levou simplesmente mais de duas horas, das oito até umas dez e meia, nenhum sinal de polícia, as pessoas quebrando tudo na maior tranquilidade do planeta. A polícia chegou fazendo barulho lá de longe, os saqueadores perceberam, alguém gritou: A polícia está vindo! Sujou! Vamos embora! Foi todo mundo embora. Depois disso, às onze da noite, é que a polícia saiu procurando gente que estava com televisão de 40 polegadas nas costas.

Serjão. Nesse momento estava acontecendo no Theatro Municipal um concerto, havia lá 400 pessoas, os vândalos escalavam paredes externas para tentar entrar no teatro e a polícia não compareceu. Não foi um comportamento típico. Houve propositadamente o abandono do Centro da cidade.

A PM, essa esfinge

Wainer. Depois das onze eles voltaram para o padrão deles.                       

Locatelli. O padrão deles, essa estratificação social. Quem estava depredando não era uma maioria negra, pobre. Foi uma ação posterior contra pessoas contra as quais a polícia sempre age. Isso causou uma indignação menor, os jornais não deram com a mesma indignação, porque pegou quem sempre pega.

Herdy. Alguém se arrisca a dizer por quê?

Torturra. Isso se liga com uma outra pauta grande que não foi investigada, a da Virada Cultural, muita gente soube e divulgou isso, mas não foi investigado, e não foi uma manchete tão importante quanto a própria violência que aconteceu lá. Eu testemunhei a desordem durante a Virada Cultural, foi inacreditável. Vi três policiais olhando, observando um rapaz sendo linchado; observando a uma distância de vinte metros. E muita gente indo até os policiais, indignados, “Façam alguma coisa”, e os caras quase rindo falando assim: “Mas a gente não pode abandonar o nosso posto”.

Havia claramente um consenso policial, uma ordem, um comando para deixar o bicho pegar livre, deixar acontecer. Nas manifestações, é uma disputa de imaginário muito complexa, mas assim: Ah, estão falando que a gente quebrou tudo, que a culpa é nossa, então vamos ver como é que fica sem polícia, porque somos violentos; porque quando a gente não aparece, quebra-se tudo, lojas, e tal. É um trabalho muito mal feito, mas que não revela despreparo, como disse o próprio prefeito. Houve preparo, uma atitude deliberada, para o objetivo que eles querem. E aí tem uma geopolítica interna que eu nem sei qual é. Enfraquecer o comando, deve ter alguma razão.

Voz masculina 1. Eu queria colocar uma outra pauta não investigada, a relação do PCC com a segurança pública em São Paulo. Tudo isso está relacionado. Quando a polícia age, contra quem, quando ela recua, deixa o bicho pegar. A que interesses serve esse desmando, esse caos.

Voz masculina 2. Tem que chamar o Josmar Jozino para explicar.

João Paulo Charleaux. Tem algo que já cheguei a comentar, não vou nem falar em nome da Conectas, evidentemente. Eu já vinha percebendo o negócio do [Fernando] Grella, um personagem ausente da coisa. Primeiro, explicar em que circunstâncias ele assumiu o cargo de secretário de Segurança. A saída do secretário anterior [Antônio Pinto Ferreira] foi muito ruim. Vinham subindo todos os índices de criminalidade, crimes cometidos pela polícia, um dos momentos mais baixos… a ponto do Alckmin, que não desgostava do secretário, mandá-lo embora. E aí vem o Grella, totalmente de fora desse universo, visto até como simpático à questão dos direitos humanos, e a primeira medida dele – essas coisas são muito significativas, como disse o Serjão a respeito do Covas – foi acabar com o auto de resistência…

Voz masculina 3. Os dois piores momentos de criminalidade ocorreram quando assumiu o secretário anterior e um mês antes de ele sair. Bateram recordes. Inclusive o de maio de 2006, daquele enfrentamento com o PCC.

Secretário não proibiu socorro

Charleaux. Esse é o quadro, exatamente. Aí vem o Grella e acaba com “resistência seguida de morte”, que é o que o policial põe no BO quando mata alguém. Aí tem uma confusão. Essa medida da “resistência seguida de morte” foi tratada pela imprensa como proibição de o policial socorrer a vítima, uma determinação secundária da medida, que não proibia, simplesmente ela reafirmava a prevalência do SUS, do resgate do Samu, e a não alteração da cena do crime. A vinculação era esta: não alterar a cena do crime e acabar com o auto de resistência. Da mesma forma como aconteceu com a Virada Cultural, o segundo elemento foi esse: a polícia fez uso dessa norma para não socorrer pessoas. O caso mais claro foi o do garoto da PUC esfaqueado em plena Perdizes que ficou 25 minutos sangrando, os policiais olhando, dizendo que não…

Torturra. Teve um vídeo no Ninja mostrando um cara que não é socorrido até que eles percebem que é um policial.

Charleaux. No Conectas houve a experiência de uma entrevista em que se esclareceu à repórter que a lei não proibia socorro e ela ficou surpresa. Foi-lhe passado o texto da lei, ela leu em voz alta e perguntou: Então por que a imprensa toda falou que proibia? Não sei. A imprensa ficou um tempão escrevendo que a norma proibia, a polícia se comportou dessa forma. Ela se omitiu durante a Virada, em seguida fez essa confusão com a norma e deixou de prestar socorro às pessoas para mostrar como a norma era inadequada. Tanto a repressão forte na Maria Antônia, que estava sendo filmada por todas as câmeras em horário nobre, e a polícia sabia, quanto, depois, a omissão foram atos que têm um endereço que está claro, mas que é um personagem totalmente ausente. Tem duas coisas que estão ausentes da cobertura. As empresas de ônibus…

Voz feminina 1. … e o secretário de Transportes, Tatto.

Charleaux. – … É. E o secretário de Segurança.

Manifestantes contra imprensa

Voz masculina 4. Existe essa crítica contra a imprensa. Mas a partir de segunda-feira (17/6, Largo da Batata) surgiu um novo perfil contra a imprensa, que é o do próprio manifestante. Não o organizado. Se já é difícil traçar o perfil do pessoal do MPL e de outros grupos, desse fica mais difícil ainda. Esse é o que que muitas vezes está com a cara coberta. Manifestantes atacaram profissionais de imprensa. A imprensa tem que contar com a possibilidade de ser atacada pela polícia. Mas como é a cobertura quando há a possibilidade de um ataque por parte de manifestantes? Outra pergunta é sobre jornalismo colaborativo, que foi uma marca a partir desse movimento, mas que perde um pouco de força quando não tem uma grande movimentação. Como dar uma certa qualidade e dar sequência a esse tipo de jornalismo?

Torturra. A gente está conversando muito sobre isso. A gente vem fazendo o jornalismo ninja há uns dois anos, não com o nome de Ninja. O Ninja apareceu até como uma maneira de dar conta disso que você está falando. Como criar um veículo, mas, mais do que um veículo, como se fosse uma editora, um grupo de comunicação horizontal, em rede. Como a gente vem do ativismo e da cobertura de rua, e sempre focou muito em política e debates, é natural que a gente cresça num momento como este, quando a temperatura está muito alta, as pessoas estão muito interessadas nisso, estão querendo ver cobertura independente.

Atos quebraram narrativa oficial

Mas temos muito claro que o próximo passo é criar uma plataforma digital inteligente e bacana, e fazer jornalismo não necessariamente politizado. Ir também para jornalismo cultural, cobrir variedades, pensar como a gente vai cobrir esportes, usando essa linguagem que a gente vem usando, tentando avançar mais no lado técnico, tentando usar o jornalismo colaborativo, para pensar até em programa de culinária, de auditório, comédia.

É um processo que vai acontecer devagar, mas de alguma forma acho que também muito rápido, porque agora tudo é muito rápido, e tem muita gente inscrita. Estamos conversando muito sobre isso. A forma de financiar isso acho que necessariamente vai ser múltipla, não vamos conseguir “o” modelo. Existe a crise do intermediário na mídia, na política, ele é cada vez menos fundamental. Imaginamos vários formatos para isso, desde microfinanciamento, a pessoa ter uma assinatura mensal, queremos fazer um webfundig de borderô, a pessoa paga dez, vinte, cinquenta reais por mês para termos, sei lá, trinta mil reais por mês para financiar reportagem de forma permanente. Imaginamos muito fundir o processo do Ninja, que já tem tanta gente no país inteiro, com o processo de formação, e aí tem uma grana que pode vir de projetos.

Serjão. O que é Ninja?

Torturra. Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação. As palavras “narrativas” e “independentes” não estão colocadas à toa. Achamos que mais do que uma crise de modelo tem uma crise do tipo de história que está sendo contada, a que tipo de enredo estamos assistindo. Essas manifestações, mais do que qualquer coisa, significaram uma quebra narrativa. Por exemplo, acabou a história de que manifestação atrapalha trânsito. Isso ficou impossível, esses clichês estão desabando.

 

Veja São Paulo, 19/7/2013

 

E “ação” porque não descolamos nossa atividade não só de cobrir, mas também, de alguma maneira, de produzir notícias. Também ir para a rua produzir eventos, adrenalina. O desafio agora é este. Conseguir financiamento através de formação é um jeito muito legítimo de irmos atrás até de dinheiro público, de fundações, não para financiar a produção editorial, mas para o processo de formação do cidadão multimídia, de qualificação de emissores de informação. Estamos montando uma primeira redação na Casa Fora do Eixo, no Cambuci, estamos procurando outra no Centro de São Paulo, um imóvel para fazer uma redação pública, onde as pessoas possam entrar e sair. No domingo vamos até apresentar propostas digitais de microfinanciamento.

Ameaçado por civis

Locatelli. Eu não tive nenhum problema com manifestante, muito pelo contrário. O único problema que eu tive foi na quinta-feira (20/6), teve uma briga, acho que foi até no blogue do Roldão Arruda, que para mim é o melhor repórter de direitos humanos do país, em que ele escreve que chegou lá – eu tive a mesma impressão –, tinha todo aquele pessoal naquele bloco de esquerda, PSTU, PT, até uns caras que eu tinha feito uma matéria um tempo atrás, eles professam juche, uma filosofia norte-coreana, apoiam o governo norte-coreano, estavam ali junto com o PT, um cara do PSTU gritando “mensaleiro!”, o cara falava “é mentira!”, no meio daquele rolo todo encontrei um amigo meu que é um anarquista da História da USP, estava na ocupação de 2007, fazia história na USP na mesma época que eu, ele me abraçou, me deu um beijo, quando eu saí dali, dei uns passos para trás, tinha uns skinheads querendo me bater. Quer dizer: não eram skinheads, eram pessoas altas, brancas, de cabeça raspada, enroladas em bandeiras do Brasil, com sigmas integralistas e coturnos… Foi o único problema que eu tive. Para mim foi o mais chocante. Tenho uns relatos horríveis. Pega o Gegê, um cara que sofreu na ditadura, teve uma atuação social muito forte aqui, ele fala que nunca tinha visto nada como aquela quinta-feira.

Torturra. Eu vi o episódio do Caco [Barcellos], estava perto dele, é um puta cara. Evidente, a Rede Globo é sempre hostilizada, cada vez mais. Como mais gente não está acreditando na narrativa oficial, isso se traduz de uma maneira chata, violenta, muitas vezes injusta. A Globo com certeza tem direito de estar lá, com liberdade. Mas é cada vez mais presente esse sentimento, e com o Caco foi particularmente irônico, porque naquela segunda-feira no Largo da Batata, o [mote] mais claro era “contra a repressão policial”. Depois foi virando outra coisa. E o Caco, mais do que o Caramante, tem o Rota 66, [livro] fundamental. Viveu o exílio também, foi hostilizado pelas pessoas.

“Extirpação da esquerda”

Isso representa muito bem outra característica de quinta-feira (20/6), que é o desconhecimento muito grande da complexidade – nem é tão complexo assim, é mais simples do que parece –, mas a despolitização está colocada. Era um grupo muito pequeno que tinha interesse de fazer agressão. Uma coisa que passou despercebida é que a gente chegou na concentração da Praça do Ciclista às quatro horas, e estava marcado para as cinco. Às quatro já tinha bastante gente. Às cinco concentra e sai umas cinco e meia, seis horas. Às quinze para as cinco vem pela Consolação um bloco de quinhentas, mil pessoas, no máximo, passam batido pela concentração, seguem reto em direção à Avenida Paulista, que já estava paralisada. Achei muito estranho. Que bloco é esse? Não tinha uma bandeira muito clara. Muita bandeira do Brasil. Tinha um comando na frente muito definido. Foi essa turma que fez um movimento lá na frente, [junto à] linha de frente do Passe Livre, e depois veio na contramão para impedir que os partidos chegassem.

Houve um movimento muito claro, gente que já tinha planejado aquela “extirpação da esquerda” de maneira geral. E não era partido. Era para a expulsar a esquerda. A gente estava transmitindo, uma transmissão que durou seis horas, essa em que a gente usou 4G, e entrevistamos muita gente. Era clara a salada ideológica absurda. E as únicas pessoas que nos agrediram, foram quase violentas conosco, foi quando fomos tentar entrevistar gente que estava esteticamente identificada como algo mais perigoso. E você reconhecia pelo sapato. Não era bandeira do Brasil, nem cabeça raspada. Era o coturno. Você ir para uma passeata muito longa de coturno…

Enriquecer a crônica

Serjão. Há uma crônica que precisará ser feita, reunindo milhares de documentos, mas há uma documentação bem clara de quem segurava rojões de 50 centímetros aqui na Praça Roosevelt e que os atirou contra a tropa de choque. Existe isso bem documentado pelas televisões. Braços de gente muito musculosa, encapuçados, que dizer, com a identidade protegida, e, portanto, quando o Elio Gaspari diz que finalmente houve o encontro dos antropófagos com os canibais, é disso que estamos falando. Provocadores do lado de cá dando pretexto…

Mas isso não é uma visão conspirativa, não são os saudosos da época da ditadura dizendo como se dava a repressão, e que grande parte disso tenha sido desmontada. Grande parte da garotada não viveu isso, a possibilidade de se incitar o inimigo a fazer o que quiser não é uma coisa só daqui para a frente, já existia, há um texto que circula na internet, do [Francesco] Cossiga, ex-ministro da Justiça italiano, homem que organizou a repressão na década de 1970, ele envia uma carta para a ministra da Educação do Berlusconi, em 2008, diz para tirar a polícia, mandar os vândalos, deixar acontecer qualquer coisa, e “as sirenes das ambulâncias nos chamarão de volta”. Isso aconteceu também em Gênova, depois o Fórum Social Mundial optou pela convivência pacífica.

Quem tinha interesse em que aquela manifestação terminasse daquele jeito? Realmente tem um anjo da guarda brasileiro imenso que fez com que não tivesse morrido muita gente. Era para ter morrido muito gente. Essas coisas continuam. E uma parte dos jovens dizem que não tem nada que botar ordem na casa, desautorizar os violentos, porque isso faz parte da revolta popular. Isto é uma sacanagem. É desarmar a sociedade contra os seus inimigos. São os antropófagos e os canibais.

Organizações não foram ouvidas

Voz feminina 2. Eu sou da Conectas, trabalho com o João [Charleaux). A Conectas existe há 12 anos e eu acho que a gente nunca se sentiu tão velho como nessa última semana. As manifestações de alguma maneira mexeram muito com as organizações tradicionais. Seria fundamental os jornalistas pensarem com a gente nos seguintes pontos. Primeiro, que as organizações tradicionais, elas nem gostam que se fale assim, mas, enfim, as organizações que estão ali todo dia em cima da violência policial, tentando denunciar, fazer estudos, não foram ouvidas. Eu não vi nenhuma organização no Brasil inteiro sendo ouvida por jornalistas durante os protestos. Tentamos ser ouvidos, por jornalistas com os quais temos excelente relação, e não conseguimos. Sentimos em algum momento uma falta de escutar também quem está no dia a dia. Que depois que acabarem as manifestações vai estar ali na delegacia dando apoio. Não estou querendo falar só da Conectas, tem a Abraji também, nem estou fazendo um apelo para que a gente saia mais na mídia.

Por outro lado, isso mostra uma fragilidade gigantesca dessas mesmas organizações por não saberem se comunicar de uma forma mais veloz, mais ágil. Eu queria ouvir de vocês, que cobriram tudo isso, por que essas organizações, movimentos mais estruturados, ficaram de fora? Por que, para vocês, não era uma fonte, se é que a gente tinha alguma coisa a dizer.

Terceiro ponto: muitas organizações não se posicionaram até agora sobre o que está acontecendo. E tivemos muita dificuldade, apesar de termos agido super-rápido e soltado uma nota contra a violência policial na manhã do dia 14, antes das 10h, e a linha fina era “O que acontece na periferia chegou até a Paulista”, muitas organizações não colocaram suas posições. Isso mostra o medo das organizações de se posicionar frente a tantas aberturas novas. A gente não sabia se as notas da Conectas iam ser lidas pelo Ninja e outros movimentos como uma coisa reacionária. “Os caras agora estão falando de estado de direito quando está todo mundo na rua falando que ninguém nos representa”.

Violência e conquistas populares

Wainer. A gente procurou o Sérgio Adorno [um dos coordenadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP], um cara que pode falar com muita propriedade. Ele foi ao ar no último domingo (30/6). Eu queria até comentar uma coisa que o Sergio Adorno falou e que eu achei muito interessante, me deixou pensando muito tempo depois: todas as grandes conquistas populares que ele conhece, desde a Revolução Francesa, e diversas outras reivindicações, só foram atingidas com algum grau de violência. Ele disse que nunca houve nenhuma revolta popular sem violência cujos objetivos tenham sido atingidos.

Você sai pensando: será que a violência foi necessária, de alguma maneira? Foi um negócio bem interessante que ele falou e deixou a gente pensando em relação a isso. A prefeitura e o governo teriam voltado atrás se não tivesse havido violência? O Congresso teria feito o que fez se não tivesse sentido que estavam tacando pedra na vidraça dele, tacando fogo, se a manifestação tivesse sido cem por cento pacífica eles não teriam dado um jeito de [contorná-la]?

Janio de Freitas levantou outra questão, a do Facebook. Ele disse: É importante, é uma ferramenta bacana, ajuda as pessoas a irem para a rua, mas, citando também a Revolução Francesa, todo mundo foi para a rua e não tinha Facebook. No enterro do Edson Luís, em 1968, se mobilizaram 50, 60 mil pessoas que foram para a rua sem Facebook.

Voz feminina 3. [Uma pessoa que estava no Egito] quando esteve aqui, a gente perguntou: qual foi o papel real do Facebook na revolução egípcia, ou como quer que chame? Ele falou: a revolução começou mesmo quando o governo cortou a internet e todo mundo saiu do Facebook e foi para a rua…

“Que revolução?”

Serjão. Alguém aqui nesta sala acha sinceramente que está havendo uma revolução? Este não é um jogo de dois tempos, é um jogo de vôlei, de cinco tempos. No horizonte está mais parecido com a possibilidade de se desmanchar a democracia brasileira do que de avançar em direção [a uma maior democratização].

Mauro Malin. O que está havendo no Brasil é um momento de desfascistização do país. Nós subestimamos o caráter fascistizante do regime militar e do que sobrou dele na redemocratização. Essas pessoas que foram às ruas e fizeram esses movimentos [refere-se principalmente ao MPL], que, aliás, não são de agora, são de 2005, se não estou enganado, descobriram um caminho que ninguém tinha enxergado para fazer explodir uma indignação e um descontentamento que está na periferia o dia inteiro, que está no ônibus, no trem, diante da polícia, em tantas outras instâncias.

A Polícia Militar, em particular, essa que está aí hoje, foi montada pela ditadura. Já havia Polícia Militar, mas ela era aquartelada. Era um exército a serviço do governador. Isso deu confusão em 1930, em 32 – depois de 32 o Exército proibiu as polícias militares de terem aviões de combate, tanques, etc., que elas tinham, nos casos de São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul. A PM ajudou militarmente a dar o golpe de 64, fez parte da tropa.

Num dado momento, os militares disseram: Esse pessoal vai para a rua, acabou quartel, acabou come-e-dorme. A polícia então foi ocupando espaços que eram de grupos de extermínio [esquadrões da morte] que já vinham da década de 50 com pessoal da antiga Polícia Especial do Estado Novo. Essa PM foi toda reformada. No Rio de Janeiro o uniforme era cáqui, policiais isolados aceitavam provocações e saíam atrás de indivíduos para descobrir que logo adiante havia dois ou três manifestantes que se juntavam ao perseguido para perseguir o policial. Nunca mais soldado saiu sozinho. O uniforme ficou azul escuro e dava medo, posso atestar. Edson Luís já foi depois desse processo. Desembarcaram lá, deram tiro e mataram o garoto. O corpo foi levado para a Câmara de Vereadores, ficou lá esperando se organizar a passeata [até o cemitério] no dia seguinte. Passaram a noite velando o corpo, segurando a camisa manchada de sangue.

PM do regime militar

Basicamente, a polícia que o regime militar montou é a que está aí. Em São Paulo, quando houve eleição direta para governador e ganhou o Franco Montoro [1982], houve uma preocupação com o fato de que o quartel-general estava cheio de oficiais fascistas. Tiveram a “genial” ideia de dizer: Vamos espalhar esses caras. O que fizeram? Espalharam o fascismo. Cada coronel desses foi defender suas ideias, e seu processo de formação, no quartel para onde foi mandado. São informações que um cara da PM me deu. Era meu vizinho de mesa numa função que tive [no governo do estado de São Paulo]. Era indignado com a polícia, embora fosse da polícia.

Teve provocação [no dia 13/6]. Tem que prestar muita atenção. A provocação pode entornar o caldo. Acho que fizeram deliberadamente, que o governador contava que isso fosse encantar uma parte do eleitorado que é bem conservadora aqui em São Paulo, é anti-PT, antipobre, antiperiferia, “gente diferenciada, não quero isso”, não quero nordestino, “matem um nordestino por dia”. Ele imaginou que isso fosse funcionar e deu chabu. E no dia seguinte eles disseram: “Então, tá. Deixa fazer o que quiser”. Não é espontâneo.

Na passeata dos 100 mil, eu e dois caras ficamos atrás de três caras que achávamos que eram da polícia. Que estavam lá como manifestantes, mas alguém falou assim: Ninguém conhece esses caras. Acabaram não fazendo nada, felizmente. Naquele dia era difícil armar uma provocação.

Não acho que a violência seja uma arma interessante para usar neste processo, como o João falou.

Wainer. Também não acho, eu reproduzi o que disse o Adorno.

Malin. A violência é usada para manter a opressão. Essa é base da violência. Às vezes o cara usa a violência porque não tem outro jeito. Mineiros bolivianos que amarravam dinamite na cintura e se explodiam em manifestações. São pessoas que acham que não tem outro jeito, entram em desespero, como já aconteceu aqui, no Chile.    

Essas coisas têm que ser examinadas com muito critério. A cobertura dos militantes/repórteres tem que ser centralizada e depurada. Porque alguém tem que dizer o que aconteceu. Eu entrei numa marcha na Paulista na quinta-feira, dia 20, e não sabia o que estava acontecendo. De repente, parava. Parou por quê? Não sei.

Editar é indispensável

Voz feminina 4. É preciso saber de que grupo você estava participando… São dezenas, cada um com uma pauta diferente…

Malin. Eu estava no mainstream… Eu me preocupo quando se supõe que se possa fazer uma cobertura boa sem edição. O que eu chamo de edição? Filtragem, [para evitar] o que você chamou de barriga, pode ser uma versão falsa, e não barriga, e tomar muito cuidado. Aqui em São Paulo teve uma menina que passou um e-mail dizendo que iam explodir um shopping no fim de semana, se espalhou rapidamente, um amigo me mandou, eu falei: “Você não devia passar isso adiante sem checar”. Essa menina dizia que o pai dela era engenheiro, estava numa pedreira em Presidente Prudente, roubaram dinamite, era o PCC que ia explodir um shopping. O que fizeram os jornais? Não deram essa notícia. A menina foi processada, ainda não era emancipada, o alvo do processo foi o pai dela, o delegado aplicou uma pena inteligente: advertência, qualquer coisa assim, só para dizer “isso não se pode fazer”. A famosa frase da Suprema Corte americana: você não tem o direito de gritar “Fogo!” num teatro cheio.

Temos que olhar isso. A esquerda brasileira se preocupou muito com quem tinha falado sob tortura, a esquerda europeia nunca deu bola para isso, porque é óbvio que você, sob tortura, vai falar alguma coisa, ou, sei lá, vai morrer. A Gestapo arrancava tudo das pessoas. E a esquerda brasileira não se preocupou com quem estava infiltrado. Quando o [José] Genoíno reconhece fotos, [depois de preso] na Guerrilha do Araguaia, já tinha o álbum montado, alguém já tinha dado todas as informações. O que ele ia fazer?

Esquerda violenta organizada

Voz masculina 5. Tenho um amigo que faz parte de um desses grupos autônomos, não é nem skinhead nem P2, policial infiltrado, já tive essas discussões com ele, ele defende, ele estava no miolo naquele dia em que atacaram a Prefeitura, inclusive o Rodrigo Vianna, no blogue dele, fez uma postagem, no dia seguinte, falando que tinha uma galera gritando “foda-se o Brasil, nacionalismo é coisa de imbecil”, ficou chocado, perguntou “então, o que vocês querem? Que os Estados Unidos invadam o Brasil?”, ficou sem entender direito.

Meu amigo estava no miolo dessa galera e falou “não, a gente não quer nacionalismo”. São esses caras que estão vindo para cima das instituições. Eu tive um papo com ele sobre o papel da violência, até que ponto é ou não produtivo, e eles são totalmente a favor da violência. Eu falei: Cara, você não acha que isso é tipo dá ibope ruim, e é uma desculpa para a PM chegar e sentar o cacete em todo mundo?

Tentei entrar nesses grupos e conversar com a galera. Não como jornalista. Como pessoa, cidadão. Vi que o pessoal é muito fechado. São cheios de preconceitos. Pelo menos comigo foi assim. É uma ideia boa de pauta, ou de assunto a ser discutido, porque realmente tem uma galera, e não é pouca gente, são centenas de pessoas, não é muita gente comparada com os cem mil que foram para as ruas na segunda-feira, mas é uma galera muito organizada. Eu não tenho muita opinião. Acho que sou a favor, que é necessário, mas às vezes sou contra. Acho uma ideia interessante analisar essa galera também.

Voz feminina 5. Eu queria falar da importância da mídia alternativa. Eu pertenço a uma organização que emitia notas diárias contra a violência…

Voz feminina 6. Que organização?

Voz feminina 5. Uma organização ecumênica, com muito jovem, pessoal do Levante, Viração. Eu não sou religiosa, mas trabalho numa organização ecumênica, tinha alguns padres que iam à manifestação, faziam um relato e esse relato virava uma nota. Eu estava desde o começo, desde a primeira manifestação (eu não separo por dias, não sei o dia), e desde a primeira a repressão foi muito forte.

“Jornalistas do lado errado”

A diferença daquela quinta-feira (13/6) foi a cobertura jornalística. Desde a primeira eu vi que tinha uns jornalistas fazendo a cobertura, mas parecia que eles estavam do lado errado. Sempre estavam atrás da polícia. Toda foto deles era de um ângulo muito errado. No primeiro dia eu fui entrevistada e a partir daí pensei: não vou mais utilizar a mídia tradicional como veículo. Fui entrevistada por um portal, ele estava mandando simultaneamente as mensagens e eu pensei: nossa, que legal esse tipo de cobertura. Eu estava com gás no olho, sem saber como ia me comunicar com o pessoal do escritório. E o que eu falei foi completamente distorcido. E eu sei por que foi distorcido: ele também estava com gás no olho. Eu chequei à noite e vi que tinha sido completamente distorcido.

E a partir da primeira manifestação eu vi que a gente começou a usar a mídia alternativa como meio de comunicação. Eu também não acredito que o Facebook é um bom meio para se manifestar, mas se você for ver os relatos no Facebook, pareciam dissertações acadêmicas, muito bem elaboradas, tinham uma análise política e social. A gente utilizou esses relatos. A agência de notícias Viração, aconteceu alguma coisa, no mesmo minuto tinha um relato e a gente usava isso como fonte de informação.

Entre razão e emoção

Uma pergunta que rolou para mim, um grande conflito interno, é quando você deixa de ser militante para ser jornalista. Até certo momento tínhamos um demônio em comum, a repressão policial. De repente, quando chega na Paulista, você procura as bandeiras, não por uma questão de partido, mas de conforto, porque eu sempre segui aquelas bandeiras, a bandeira preta do Levante, a bandeira roxa da Marcha Mundial, a verde do MST, tem uma questão ideológica no meio, mas não de filiação. Eu tive mais medo ali no dia das bandeiras (20/6) do que no dia da polícia (13/6).

De repente, com tudo aquilo, mudou o diabo. Eu via pessoas me xingando. Aquele dia foi o mais difícil para mim. Até aí eu estava seguindo como jornalista, nesse dia virei militante total. Eu queria saber de vocês até que momento vocês falaram “agora vou parar de militar e vou ser jornalista”. Por mais que seja difícil, na hora, você está com gás na cara, bala de borracha, tem a sua experiência pessoal.

Torturra. Essa pergunta eu também tento responder. Como eu também acho bastante isso, eu procuro deixar bem claro de que lado estou, não só do lado ideológico, do lado físico. Do lado dos manifestantes. E eu concordo com você: é muito mais fácil cobrir aquela quinta-feira em que a polícia era o algoz (13/6) do que a quinta-feira quando o conflito foi entre os manifestantes (20/6).

Democracia, a maior causa

Minha objetividade é deixar muito claro o que eu penso durante a manifestação, minha opinião – e eu gostaria de fazer um comentário sobre o que Malin falou, sobre a “não edição”. Não estou defendendo a não edição como um valor. É só a não edição na hora. Quando alguém pegou o depoimento dela e imediatamente distorceu, publicando em algum portal, é uma chance que a gente não dá, porque a gente está ao vivo, com a pessoa, e a gente não faz uma pergunta só. A gente entrevista. Fica dez minutos com a pessoa. E aí fica claro o posicionamento. Diante de uma situação absurda você ser imparcial é quase você ser omisso. Tem horas que a gente passa totalmente do ponto. Nosso cinegrafista na primeira manifestação, ele tem 23 anos, vem da militância, quando a polícia chegou dando tiro ele disse: Olha os filhos da puta! É o repórter se manifestando, alguém dirá: Tendencioso! Tendencioso, mas o cara estava com o coração na mão, tomando bala, tomou bala na perna. Eu me lembro da hora em que eu quase fui agredido, tive que manter a minha cabeça muito fria, vinham uns fascistas dizendo que os partidos não deveriam estar lá, eu entrei no coro de uma rapaziada: De-mo-craciaaaa! Democracia… É uma militância muito simples. Eu saí completamente do meu papel de jornalista quando vi a galera queimando a bandeira do movimento negro.

Voz masculina 6. Eu tenho um amigo que estava lá. E ele contou que essa galera, as pessoas do senso comum, começou a gritar “Sem partido!”. Naquela hora ali virou, foi geral, mesmo.

Torturra. Mas eu senti muito suspeito aquilo ali, porque pegou a bandeira do movimento negro, e era da Uniafro, uma bandeira colorida, não dava para confundir, estava escrito claramente, carregada por militantes da cor, e os caras tacaram fogo. Não dava. Eu pensei: a minha objetividade vai ser esta: estou fora desse tipo de coisa. Esse jornalismo militante é grande parte do tipo que gera nossa audiência: Eu confio nesses caras porque eles têm uma posição clara.

Acho que a gente tem que evoluir muito nisso, não é uma coisa que eu defendo, mas, como eu falei, é uma cobertura precipitada, no melhor sentido da palavra. A gente precisa de uma qualificação, precisa atrair urgentemente jornalistas experientes, que estão na pista há bastante tempo, a Oboré pode ser um lugar maravilhoso para a Mídia Ninja entrar e aprender.

O que eu vi naquela quinta-feira, a respeito do que o Serjão falou, sobre o risco de a gente implodir as nossas conquistas democráticas, em vez de avançar nelas, é muito difícil eu me atrever a divergir de gente que entende tão mais disso, que viveu tantos outros momentos históricos e que conhece esse processo com muito mais sutileza. A minha intuição é otimista. Claro que é uma intuição, não tenho argumentos muito fortes, mas o que eu sinto é que a possibilidade de infiltrados da direita violenta ganharem posição nisso é cada vez mais baixa.

Apesar do nível de politização em geral ser baixo, existem valores muito bem difundidos, democráticos, que talvez não estivessem tão bem difundidos lá atrás. Isso não é uma conquista do Facebook e da rede, mas de toda essa hiperconexão, da autonomia cada vez maior das pessoas para buscar suas fontes.

Uma imagem em que eu fiquei pensando esses dias, essa frase-feita meio ridícula, do gigante acordar, a gente está perdendo outro ponto importante, é que o gigante estava em berço esplêndido, é a mesma coisa que um bebê que está acordando. Não que esse milhão de pessoas vai acordar tão rapidamente, mas centenas de milhares já estão com a cabeça mais fria, é capaz de se sofisticar cada vez mais. Eu tendo a ser otimista, mas não me atrevo a…

Direita violenta organizada

Voz masculina 7. Até onde eu tenho acompanhado, na década de 90 esses movimentos direitistas tiveram uma baixa. A partir de 94, 95, aqui em São Paulo a gente via muito pouco esses skinheads, essas coisas todas. Com a internet, 1999, 2000, 2000 e pouco, esses movimentos voltaram, cresceram, vocês acompanharam bastante parte do que eles estão fazendo. Minha opinião, não sei se estou sendo um pouco arrogante, é que é ingenuidade qualquer movimento achar que essa turma não está mobilizada.

Primeiro, pelo seguinte: é uma turma totalmente estratégica, estuda esse tipo de coisa, talvez bem diferente de muitos militantes e ativistas, não que eu esteja querendo colocar que um seja melhor do que o outro, não é isso. Estou querendo dizer que são dedicados a isso, eles estudam muito. Principalmente depois dessas manifestações todas houve uma mobilização muito grande da polícia, de militares, Exército, a comunidade militar, vamos dizer assim. Dentro das famílias da polícia, onde não se falava em política, depois dessa história toda se mobilizou politicamente a família dos policiais.

E a gente precisa pensar no seguinte: o policial é um dos maiores… eles até já estão dizendo isso no meio deles, que eles são “soldados eleitorais”. Se você parar para pensar, em todo município brasileiro tem um policial militar. Pelo menos uma família, ele tem lá pelo menos dois votos. Eles já começam a trabalhar esse tipo de coisa, e particularmente – eu posso estar errado – eu tenho ficado de certa forma até impressionado de ver como eles estão organizados e como isso cresceu muito. E quando eu vejo o trabalho de vocês [Ninja], da mídia independente de uma forma geral, parece – posso estar errado, também –, parece que se ignora isso de uma certa forma, por não se concordar, eu também não concordo, pelo amor de Deus, mas enquanto jornalista eu penso se não há necessidade de realmente mídias independentes como vocês, eu sei que é complicado, muito difícil, trabalho de jornalismo investigativo, jornalismo de fôlego, o companheiro [Herdy] que disse que negociou com a menina do MPL, imagina você negociar com um skinhead, é um trabalho muito mais complicado, e a pergunta é: vocês têm intenção de entrar nesse trabalho um pouco mais complicado, um pouco mais investigativo [entrevistar militantes radicais de direita], ou não?

Financiamento coletivo

Torturra. A gente tem toda a intenção. A dificuldade obviamente é que tipo de profissional vai começar a fazer isso já. É muito complicado, porque o “midialivrista”, que nunca trabalhou numa redação, saiu da faculdade, está num coletivo, não fez esse trabalho qualificado, caro, de fôlego. O próximo passo, agora, é atrair jornalistas, e, mais do que isso, fazer parcerias grandes com as instituições que já estão fazendo isso, [como a] Abraji, e ver os jornalistas que hoje estão sucateados nas redações, ou que já foram dispensados das redações, criar maneiras de financiar isso.

O jornalismo investigativo, particularmente, tem uma propensão muito grande ao financiamento coletivo. Aposto que se a gente lançar agora um curso de jornalismo investigativo, violência policial, questões agrárias, vem uma grana rápida para se conseguir fazer jornalismo de fôlego. E novamente: a gente só tem a capacidade, hoje, de fazer esse jornalismo não editado e imediato. A gente nem tem a capacidade de pegar esse material e fazer uma crítica, porque a gente está totalmente sobrecarregado. Em São Paulo são seis pessoas, dois no Rio, um em BH, é uma molecada. A gente tem total interesse em fazer isso, concordo com tudo que você disse sobre a necessidade de ter isso muito bem investigado, a direita organizada realmente está se fortalecendo, a polícia… Acho que é “a” grande pauta. Naquela quinta-feira (20/6) não aconteceu, porque o [cenário foi] poluído pelo patriotismo e por uma série de ondas ideológicas que estão tomando esse debate. É um vespeiro gigantesco, jornalistas que tentaram fazer isso com a proteção da grande mídia, como o André Caramante [sofreram ameaças], é uma pauta complicada da própria Folha comprar. Não estou nem acusando a Folha, é complicado mesmo você fazer um negócio desses, pode tomar um tiro.

Para a gente também é um terreno muito delicado. A gente vai com essa empolgação toda, mas a gente já recebeu aviso de muitas pessoas: Cuidado, cara, vocês estão atacando polícia, estão peitando os caras, os caras sabem quem vocês são, pegaram seu RG, não estão de brincadeira. E ontem [3/7] mesmo fomos procurados por um grupo de hackers de BH muito entusiastas do nosso trabalho, querendo ajudar na produção digital do nosso produto, eles estavam monitorando o nosso sinal e falaram: vocês estão sendo espionados e atacados por uma série de IPs que estão derrubando sites de esquerda. Vocês estão sendo visualizados por essa galerinha sempre muito discreta e que usa a teoria da conspiração para desqualificar qualquer pessoa que aponte [para eles]: Ah, isso é muito conspiratório. Tem uma ponta muito perigosa, a gente pensa nela, mas, novamente: a gente teve que se precipitar na rua.

“Aonde estamos indo?”

Wainer. Na segunda semana do TV Folha [dedicada às manifestações] a gente fez um clipe… O TV Folha tem uma linguagem de documentário. A gente foge do convencional, daquela imagem do repórter com o microfone na mão, e usa elementos de documentarismo. A gente abre o segundo VT, da segunda semana, com um clipe de um minuto, talvez um pouco menos, depois do que aconteceu na quinta-feira, aquela loucura toda que deixou todo mundo maluco, com imagens da manifestação de quinta-feira ao inverso. A gente botou tudo de trás para a frente. O que a gente quis dizer ali, sem nenhuma palavra, era “será que a gente está andando para a frente ou para trás?”

Na segunda-feira a gente acho que estava andando para a frente. Na quinta já ficou com medo de estar andando para trás. Fazer um clipe reverso, dentro dessa linguagem nossa, foi muito significativo. E a gente estruturou o segundo vídeo do TV Folha em ordem cronológica de trás para a frente. Em vez de a gente contar a semana desde a segunda-feira (17/6), no Largo da Batata, até quinta-feira (20/6), sexta, a gente começou no discurso da Dilma, que foi no sábado (22/6), para trás. Fazer um cronológico ao contrário teve uma dimensão significativa muito forte, porque você começa meio puto vendo o vídeo, você vê aqueles imbecis na rua, as pessoas falando uns puta absurdos, você vai andando para trás e se sente um pouco ingênuo de ter acreditado naquilo que você viu na segunda-feira, e com medo do que poderia ter acontecido depois daquilo. Esse clipe da passeata em reverso, para mim, diz muito. Sem uma palavra, sem nada, mas eu acho um troço interessante.

Provocação

Herdy. Sobre essa questão de militância e jornalismo, me vejo no meio de uma passeata, milhares de pessoas gritando debaixo de um viaduto, ecoa, gente pichando as paredes da cidade, você vive mil sentimentos, emoções, que não tem como negar. Mas ao mesmo tempo eu estava ali como jornalista, e isso é muito importante por um aspecto do que isso representa. Quando o movimento chega a invadir o terminal e começa a jogar garrafa, pedra e pau sobre a polícia, partiu do movimento uma provocação que a polícia não precisava aceitar. E se eu estou ali contando o que eu vi, não sei, a polícia é uma fonte fundamental dessa história.

A minha militância é a minha presença. Eu escolher fechar os olhos para o vandalismo, ou por interesses, não interessa se eu acho o grau de violência necessário, interessa o que eu estou vendo. Isso é muito importante para mim. É um exercício que eu faço. Tem um momento em que eu paro e penso no outro lado. É o lado mais interessante do jornalismo: procurar entender por que os caras estão ali, como eles reagem. O policial levou uma pedra na cara. Eu estava voltando para casa e vi um cara jogando uma pedra numa viatura. Contar essa história foi importante para poder contar a história que o Sérgio contou. Não é para dizer que é a mesma coisa, tudo igual. Nossa função é relatar, contar o que a gente viu. Não necessariamente escolher um lado, escolher uma posição.

Imprensa hostilizada

Aldo Quiroga. Acho muito estranha essa pergunta sobre como fica o jornalismo militante. A origem desse questionamento pode explicar, talvez, a hostilidade que a gente viu nas ruas contra a imprensa. Isso se manifestou muito mais para a gente que é da TV, eu sou da TV Cultura, faz dois anos que eu estou no ar condicionado do estúdio, mas fiquei anos fazendo reportagem, e fiquei muito impressionado com a reação que eu vi nas ruas contra quem portava um microfone, não era mais só contra a Globo.

Eu já estive em situações, fazendo cobertura de movimentos sociais pela TV Cultura, em que a TV Cultura podia entrar, e a Globo, não. Mas não havia hostilidade física contra o repórter. Dessa fez havia uma hostilidade generalizada, era uma hostilidade física. Tudo bem que os ânimos estavam exaltados, teve porrada para tudo quanto é lado, na quinta-feira (20/6) eu fui para a rua, mas meio que por causa disso: não aguento mais ficar no estúdio. Pus o capacete de ciclista e fui lá de bicicleta acompanhar o que estava acontecendo. E vi duas abordagens desse tipo de hostilidade contra a imprensa. Tudo bem, tem lá a meia-dúzia que sabe o que está fazendo. Que comanda, faz parte desse grupo, seja de extrema esquerda ou de extrema direita. Só que a grande massa, os 150, 200 que vêm atrás, dando corpo para aquilo, acho que isso é um sinal, talvez, da origem desse questionamento: como fica a militância, como fica o jornalismo.

Repórter na rua

Enquanto profissional, a gente em algum momento deixou de fazer a nossa lição de casa, que era estar na rua. Quem conseguiu identificar o que estava acontecendo, embora de forma turva, lógico, era quem tinha repórteres nas ruas. Isso foi fundamental. Quem não tinha repórter na rua ficou perdido. Mas por muito tempo, eu acho, a gente se acostumou, e aí eu não estou olhando para o tempo presente, mas década de 90, acho que começou na década de 80, a gente se afastou dos movimentos sociais enquanto profissionais, a grande maioria, não todos, se afastou dos movimentos sociais, deixou de ouvir. Por isso muito gente foi pega de surpresa pelo que estava acontecendo, porque a gente se habituou a essa cobertura de telefone. Movimento social não manda release. Movimento social sequer tinha telefone. Ou você está diante do cara, ou perdeu o bonde.

Essa meia-dúzia sabe o que está fazendo, mas aqueles outros duzentos de alguma forma também já não se sentiam representados pela cobertura da imprensa. Não dá para a gente botar isso só na conta dos publishers. Acho que a gente precisa fazer um pouco de reflexão sobre a nossa participação nesse tipo de comportamento. Foi ficando mais fácil fazer cobertura por telefone, com release, do que de fato sair atrás, acompanhar.

Por que eu acho que isso está na origem da pergunta? Eu também sou professor da PUC. Faço até um desabafo. É cada vez mais difícil as novas gerações, pelo amor de Deus não entendam isso como choradeira de cabelo branco, você perceber um engajamento… não é um engajamento social, não é disso que estou falando, mas o que eu acho que está faltando é uma real e convicta militância diária e constante pelo jornalismo.

Militante do jornalismo

O [Claudio] Abramo falava da ética do marceneiro, isso é clássico. Enquanto jornalista eu tenho a ética do marceneiro. Enquanto militante, eu sou um militante do jornalismo, e aí acho que entra o que ele [Herdy] está falando sobre ouvir o outro lado. Não interessa que camisa você veste, que bandeira você levanta. Torço para que esse tipo de percepção que estamos tendo aqui de fato ecoe, principalmente entre esses caras novos. Todo mundo sabe que as redações pegam gente cada vez mais nova – e aí não é uma questão de idade, é uma questão de fragilidade. Gente que está começando na carreira, e sabemos que nossa formação não é boa, não só dos cursos de jornalismo mas do que veio antes, ensino médio, e tudo mais. É uma mão de obra que em todos os sentidos está fragilizada e a grande militância que precisa ser abraçada por essa mão de obra é de fato a militância pelo jornalismo. Aí a gente cumpre o que tem de fazer. Se isso é editado ou não, vamos cobrar, vamos lá brigar com o nosso editor. Se a gente tiver argumentos, é muito mais fácil que funcione.

A crítica à cobertura que houve principalmente nos primeiros momentos dessas manifestações foi a do comportamento de manada: os vândalos, etc. Depois, o pessoal achou por bem dar nome aos bois, o comportamento da mídia foi mudando. Está claro que o papel da mídia alternativa que a gente tem hoje, com o Ninja, etc., se a gente olhar para ali (aponta uma estante com volumes encadernados), tudo aquilo ali é mídia alternativa. Aqueles livros que estão ali pegando pó e amarelando, aquilo ali é história.

Papel social do jornalista

A imprensa alternativa sempre cumpriu esse papel. Numa época foi com mimeógrafo, hoje usam celulares e 4G, e é sensacional, o que nos obriga hoje, por causa da grande audiência, a fazer uma narrativa mais responsável. Isso é muito bacana. Mas para que isso de fato tome corpo e essas manifestações, esse momento histórico que a gente está vivendo, provoque não apenas uma depuração das instituições, mas que a imprensa também passe por essa depuração, na hora em que o jornalista resgata essa militância do papel social que ele tem enquanto jornalista. Sinceramente, eu não sinto necessidade de integrar o MPL, de levantar uma bandeira política, porque sei que a minha briga é tentar fazer um jornalismo responsável, que de fato acrescente. Acho que essa dicotomia entre militância e jornalismo vai acalmar. Se você quiser fazer outra coisa além de militar pelo jornalismo, OK, maravilha. Mas se você abraçar esta já está ótimo.

Redações formavam

Milton Bellintani. Eu sou da coordenação do Repórter do Futuro e participo de uma organização de resgate da memória política brasileira, o Núcleo de Preservação da Memória Política. Eu queria dizer para os mais jovens que estão aqui que isso que estamos fazendo hoje já foi a tônica nas redações. As redações já cumpriram um papel de formação dos seus jornalistas, dos seus repórteres. E isso talvez tenha contribuído para que muitos jornalistas das gerações anteriores, mesmo não militando numa causa partidária, tenham entendido o que o Aldo falou e que o Mauro apontou antes. Que o compromisso do jornalista é militante, sim. É militante com a causa do interesse público. Com a causa do jogo democrático. Nosso grande desafio é trabalhar nessa perspectiva.

Isso que está acontecendo hoje aqui não deveria ser a exceção, deveria ser a regra, porque assim como os jovens foram para a rua porque tinham desejo de serem vistos, percebidos, e esse é o grande fato de todas essas manifestações que não pode ser colocado de lado, as jovens gerações de jornalistas têm desejo de entender a complexidade da sua tarefa, dos seus desafios, e se preparar para ela. Não vão conseguir fazer isso nas suas causas individuais ou coletivas porque elas são pontuais, restritas, ou também não vão conseguir dentro da lógica da grande empresa.

Lógica concorrencial

A grande empresa, que em outras épocas permitia que houvesse esse tipo de compartilhamento e de discussão, hoje desestimula fortemente. Hoje, enfatiza a lógica concorrencial mesmo entre os jornalistas da própria empresa. Se a gente aceita essa lógica concorrencial, a gente acha que Conectas, Oboré e Abraji não podem patrocinar uma discussão de interesse público conjuntamente, porque elas supostamente seriam concorrentes.

Na hora em que você tem como grande guarda-chuva esse interesse público, o interesse de reforçar o jogo democrático, e ter no jogo democrático a regra que vale para todos, o fato de cada um de nós ter uma preferência política deixa de ser um problema, porque independentemente das diferenças das nossas causas pessoais nós temos uma causa comum, isso que o Aldo apontou, a causa do jornalismo, e aquilo que o Mauro falou lá atrás sobre a necessidade da edição.

Dever de explicar

Acho que o desafio para o jornalismo colaborativo, jornalismo Ninja, das redes sociais, é ir além da amplificação dos Facebooks e das redes sociais. Temos que fazer mais do que simplesmente colocar uma grande lupa sobre os atores sociais envolvidos neste momento que estamos atravessando. Temos que explicar este momento. E para explicar este momento temos que, paradoxalmente, fazer como o médico que atende alguém numa situação de emergência. Se ele se emociona demais com o drama daquela pessoa, não vai conseguir ajudá-la, vai deixar que morra.

Temos que ser capazes de ao mesmo tempo estarmos ali comovidos com os acontecimentos, sairmos dali e olharmos aquilo de cima para que a gente não se seduza com massa na rua. Massa na rua, que pelo fato de há muito tempo não estar se colocando em grande quantidade parece a grande boa notícia, não é novidade. Gente na rua se coloca desde que o mundo é mundo. Esquerda, direita, qualquer causa consegue botar gente na rua. O desafio é resgatar a complexidade de quem está lá na rua. Nós precisamos buscar a diferenciação dos atores sociais que estavam ali e não simplesmente entender que era uma massa homogênea, porque não era. E mais do que entender quem estava ali é entender quem não estava ali e tem interesse no que está acontecendo na rua. O que a rua mobiliza. A gente não vai conseguir fazer isso se não entender essa lógica da colaboração, da discussão, do debate como o que foi feito aqui, onde pessoas com diferentes visões tragam contribuições para que nós todos entendamos a complexidade do que estava ali.

Quando participava das passeatas estudantis, em 77, ou das assembleias na USP, eu cansei de ver “fora Rede Globo, o povo não é bobo!” Quando o Caco Barcellos é hostilizado numa manifestação, nós não estamos falando de um repórter desconhecido. As pessoas que apoiam causas humanitárias, a causa da democracia, que condenam a violência de Estado – tem a Polícia Militar, mas tem outros mecanismos de violência do Estado –, não são as pessoas que hostilizariam o Caco. Quando alguém hostiliza o Caco, a gente sabe de onde vem a hostilidade a ele. Quem fez o Caco Barcellos se exilar deste país quando ele teve que sair, como no ano passado o André Caramante.

Nosso objetivo é sempre fazer o movimento de objetiva de máquina fotográfica. É você conseguir ampliar o foco para ver o todo e depois reduzir para a questão particular. Não vamos conseguir fazer isso se não formos além do simples relato do que está acontecendo. Temos que relatar o que está acontecendo, mas temos que ter, na edição, a capacidade de entender o que está acontecendo, e principalmente o desenrolar dos acontecimentos, que consequências eles têm para o nosso trabalho.

O Sérgio fez aqui em algum momento a colocação de que nós devemos a crônica desses acontecimentos mais do que os nossos relatos nos veículos de organizações aos quais estamos vinculados. Precisamos analisar este momento sob a ótica do jornalismo, do que nós aprendemos com isso para melhorar o nosso trabalho. Seja na grande empresa, os jornalistas que na grande empresa desafiam a lógica concorrencial e apostam no trabalho colaborativo, seja na mídia alternativa.

Ninguém “segurou” informação

Locatelli. A respeito das lógicas concorrencial e colaborativa. Houve nessa cobertura uma coisa muito importante, que eu nunca tinha visto. Normalmente se tem a ideia de que jornalista bom é aquele que dá furo, acrescenta informação, e essa lógica caiu. Quem vai lembrar quem foi o primeiro que falou que o Haddad ia revogar [o aumento da tarifa]? Isso não faz diferença nenhuma. Os jornalistas se ajudaram de uma forma que eu nunca tinha visto. No trabalho dos jornalistas está uma narrativa completa do que aconteceu. Ninguém tinha o ego de “vou segurar essa informação”, isso se diluiu.

Herdy. Isso acontece todo dia na cobertura da madrugada. O cara da Globo liga para o da Record, o da Record liga para o cara da Folha, do Estado. Todo mundo que fica na madrugada tem esse comportamento.

Serjão. Há o fato jornalisticamente relevante: a TV Globo, durante três horas, ficou cobrindo o Brasil inteiro sem intervalo comercial, e nenhuma pessoa foi entrevistada. Os repórteres estavam no topo dos edifícios ou em helicópteros. Nenhuma pessoa foi entrevistada, nem quem estava no chão, na Avenida Paulista, nem comandante militar, nenhuma autoridade. Foi reality show durante três horas. Esse é um fenômeno que terá de ser estudado pela universidade, pela USP, pela PUC, etc. “Vem pra rua!” Não subestimar o papel daquele anúncio da Fiat, e vem para a manifestação, uma coisa misturada com Copa do Mundo, passeatas. Vem pra rua. E no final os grupos sempre fazendo o conflito. Os antropófagos e os canibais. Tem um padrão aí.

TV mudou de lado no ar

Quiroga. A televisão mudou de lado no ar. Todo mundo aqui deve ter visto o [José Luiz] Datena fazendo aquilo [propôs uma pesquisa no ar: “Você é a favor dos protestos?”; esperava que os respondentes condenassem os protestos, mas eles apoiaram; refez a pergunta: “Você é a favor de protesto com baderna?”; apoiaram na mesma proporção; veja aqui]. E a gente tem que dar risada porque é o Datena. Aquilo é a caricatura, porque foi no ar. Na hora em que aquilo acontece na televisão a gente não pode ignorar que vive num país de não leitores, mais de 90% das pessoas só se informam pela televisão. A grande maioria da população não tem acesso à internet. Não é esse pessoal que estava na rua, mas eles também estavam na rua, também engrossaram esse cordão. Esse movimento de divulgação, de “vem pra rua”, no jornalismo da TV aberta…

Serjão. Estamos falando de show ao vivo, reality show, durante três horas. Em cima de prédios ou em helicópteros. É a mesma televisão onde não existe nenhum programa de debates ao vivo, nem de futebol. Tudo que é debate é pré-editado. Isso passa batido.

Voz masculina 8. A decisão de não ter Jornal Nacional naquele dia foi do [William] Bonner e da direção. Na redação, os editores continuaram a fazer matérias para a edição do JN. Não sabiam de nada. Só depois das seis da tarde ficaram sabendo dessa decisão. Começaram a receber ligações de donas de casa reclamando que não estavam vendo a novela das sete.

Serjão. E a GloboNews passou a usar material do Ninja.

Quiroga. E aí, pode usar o sinal de vocês?

Torturra. Sim.

Quiroga. Isso equivale a uma autorização para mim, é isso?…

Torturra. Pode usar. A gente tinha uma política e está tendo de discuti-la porque muito fotógrafo, principalmente, veio falar com a gente. Nosso conteúdo é todo liberado em Creative Commons. A gente estava usando a licença mais liberal, que permite a qualquer um utilizar. Os fotógrafos vieram falar: olha, então pelo menos não libera para uso comercial. Conversando com uns seis fotógrafos free-lancers, que vendem o trabalho para um agência… A gente começou o trabalho, isso é uma coisa bem louca, os caras já viam a gente como um risco, uma ameaça, mas o papo era sempre muito sossegado, muito respeitoso. Os caras ganhavam na época R$ 15 por foto que a agência comprava, quando a gente começou. Nessas manifestações, conversamos com uns seis fotógrafos, eles estavam vendendo por R$ 2,80 a foto que a agência aceitava para depois vender. Essa mudança aconteceu em dois anos. Dois e oitenta é mais barato do que o ônibus. Esse conceito de dar a foto de graça a gente tem que rediscutir muito bem. Que diferença faz você dar ou você vender por R$ 2,80?

Nós fomos republicados por muito veículo, alguns nem deram crédito, e agora o Estadão nos procurou querendo publicar algumas fotos e a gente falou: se a matéria que vocês publicarem for em Creative Commons vocês podem usar; mas não foi, a gente deu um preço e eles não compraram. Nosso sinal foi retransmitido pela Bandeirantes duas vezes, quando a gente estava na Praça Roosevelt na sexta-feira (21/6) depois da quinta na Paulista, que aliás foi um dia pouco estudado. Aquela sexta-feira foi muito interessante. Estava aquela bad vibe da quinta e na sexta foram manifestações muito positivas, foi a anti-Feliciano [contra o deputado federal pastor Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara].

Ainda muito a explicar

Serjão. Vocês não falaram, eu esperei que o assunto viesse, no dia do confronto, a batalha da Praça Rosa, Praça Roosevelt, parece que se esqueceu que naquele dia haveria uma greve de ferroviários, felizmente foi suspensa. E o metrô teve uma paralisação. Teve gente que ficou 50 minutos dentro de um vagão. Até hoje ninguém explicou que paralisação foi essa. É sabido que quando você joga gás dentro da estação, o ar condicionado puxa para dentro do vagão e você não tem saída. Alguma coisa se passou naquela quinta-feira que não foi simplesmente “desmando da polícia”. Do ponto de vista jornalístico, talvez valesse a pena verificar… O pessoal mais velho sabe do [brigadeiro] Burnier, tentativa de explosão do gasômetro [no Rio de Janeiro, 1968].

Todo mundo sabe que a bomba do Riocentro explodiu no carro, mas era para explodir numa festa de Primeiro de Maio e matar todo mundo. Essa especulação sobre o que é possível, que crueldade pode ser feita para instaurar o caos. Segue o noticiário da quarta-feira para a quinta sobre os transportes de São Paulo. Trem e metrô. O que estava armado para acontecer e não aconteceu.

Torturra. Eu sabia da greve de trens, mas não da paralisação do metrô. É muito complexo. E também a simplificação da pauta, por meio da grande mídia, todo mundo ter ido para a rua fez com que a gente não conseguisse sofisticar a investigação de muita coisa fundamental para a gente entender o que estava acontecendo.

Bellintani. Pegando essa ideia do João [Wainer] de olhar a coisa de trás para a frente, a gente pode ver a agenda do país antes do que aconteceu, para entender a apropriação da violência de Estado… Fala-se da polícia, mas não só da polícia, de toda essa gente da comunidade de informações que está aí e ninguém sabe o que faz hoje. Esse é um outro exercício que a gente pode fazer para tentar entender a ação de certas forças. Antes das manifestações o que estava colocado era o trabalho das comissões da verdade, a multiplicação delas nos planos não só federal, dos estados e municípios, várias comissões funcionando e começando a mostrar resultados.

 

Leia também

A militância e as responsabilidades do jornalismo– Sylvia Debossan Moretzsohn

POSTV, de pós-jornalistas para pós-telespectadores­ – Elizabeth Lorenzotti

A revolução será pós-televisionada – E.L.