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Se, no campo da musicologia, o ritornelo é a repetição de um trecho de uma composição musical (seu refrão), na filosofia de Deleuze e Guattari, por sua vez, ele é concebido como o conteúdo ao mesmo tempo retomado e em expansão da música, um mesmo que é um outro: repetição e diferença. Existe sempre um torrão de terra no ritornelo, razão por que seu conteúdo primordial é a terra natal, entendida não apenas como o lugar onde se nasce, mas também como o corpo da existência (individual ou coletiva) produzindo o retorno a si a partir de sua relação com o mundo exterior, de tal maneira que o si que se repete, na música, o ritornelo, é também o si se expandindo ou se expressando no mundo, situação que transforma a existência em ininterruptos passos de dança, sob o ritmo ou o compasso do diálogo musical do si com caos, do si com Terra e do si com o cosmos.
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Três são, pois, os ritornelos: o si/caos, o si/Terra, o si/cosmos, sendo que o si é o que se repete – refrão – produzindo a sua diferença no caos, na Terra e no cosmos. Por outro lado, de forma alguma o si, ao se repetir, se opõe ao caos, à Terra e ao cosmos porque, nesse caso, não expressaria a sua diferença de si, tornando-se sempre igual a si mesmo. O si se repete perante o caos, a Terra e ao cosmos, incorporando-os e a si mesmo se inventando como si/caos/ si/Terra, si/cosmos. O si repete-se e se torna ritornelo não apenas para se isolar do caos da Terra e do cosmos, mas também ou antes de tudo para a si mesmo se criar através do caos, da Terra e do Cosmos. O si, portanto, é uma invenção permanente de si mesmo perante e através do caos, da Terra e do cosmos.
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Ainda em diálogo com a filosofia de Deleuze e Guattari, ao primeiro ritornelo, o si/caos, dá-se o nome de clássico. O ritornelo clássico tem como objetivo produzir a casa protetora do si perante o caos que se espalha por todos os lados, donde se conclui que o si se repete perante o caos, inventando a casa do si, sua proteção de si, sem, no entanto, expulsar o caos de si, mas abrigando-se no caos e do caos simultaneamente. Uma criança cantarolando sozinha no escuro produz o ritornelo de sua casa diante do caos do escuro, no caos do escuro, protegendo-se do escuro, respirando-o: si, caos noturno; si, morte de si; si, repetindo o abrigo para si, sua casa, no escuro, sua, enfim, proteção do escuro.
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O segundo ritornelo, o si/Terra, é o romântico. Uma vez formada a casa de si, perante e dentro do caos, o romântico é o ritornelo em que o si está diante das forças da Terra: a terra natal, a terra nacional, o planeta terra; os subterrâneos da Terra. A terra se agita no ritornelo romântico e o si a si se repete perante as suas forças, agitando-se nelas, através delas. O si do ritornelo romântico é antes de tudo o si povo diante de um povo sem terra. As forças de ritornelo povo captam as forças da terra, podendo produzir, para os poderes constituídos, o pior ritornelo povo possível (na verdade um dos melhores): o do povo infernal, que faz uso das forças subterrâneas da Terra para infernizar a todos os poderes que produzem abandonados povos sem terra: a rosa do povo da Terra.
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O terceiro ritornelo é o moderno. Nele e através dele o si povo do ritornelo romântico a si mesmo se repete perante as forças do cosmos, lançando-se nelas, alimentando-se delas, aventurando-se nelas, inventando-se nelas. Povo cosmológico que sabe, do cosmos, que um povo é mesmo um povo sem terra, com a condição de que o povo seja todo o desterrado povo da Terra, razão pela qual o ritornelo moderno convoca o povo a despovoar-se de si, a produzir um povo sem povo, apto a se inventar – incorporando o infinito cosmológico – ao infinito: povo infinitamente povo: a rosa do povo do cosmos.
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Existem, pois, três perfis de povo: o clássico, o romântico e o moderno. Assim funciona o ritornelo povo: Ora, ora, ora: caos, Terra, cosmos. Diante das forças do caos, ora o clássico povo com sua casa protetora: a tribo, a comunidade, o bairro, a rua, a comuna, a civilização. Diante das forças da Terra, ora o romântico povo. Diante das forças do cosmos, ora o moderno povo. O ritornelo povo, pois, orquestra e é orquestrado por três forças fundamentais, as do caos, as da terra, as do cosmos.
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Os três ritornelos de povo, o clássico, o romântico e o moderno, também são apanhados pelos poderes contra o povo, apenas sendo necessário, para continuar o argumento, fazer uso da seguinte ressalva: as forças do povo são sempre dele mesmo, de modo que é sempre o povo que a si mesmo se prende ou a si mesmo se libera. Nenhum poder sobre o povo se dá, pois, fora do povo, mas dentro do povo, pelo próprio povo, que a si mesmo se rouba concentrando suas forças clássicas, românticas e modernas em oligarquias e elites usurpadoras, as quais, sem o povo, não são absolutamente nada, razão por que é possível afirmar que todos somos o povo, independente de nossas diferenças e independente do que pensamos sobre nós mesmos, pois nossas diferenças são as diferenças das forças do povo e o que pensamos sobre nós mesmos são pensamentos possíveis produzidos pelas forças do povo.
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Três, portanto, são os poderes usados contra o povo, através do próprio povo, de vez que em tudo existe um torrão de povo como ritornelo povo. São eles: 1) o poder clássico contra o povo, que impõe um povo sem casa (na tribo, mas sem as forças da tribo; no bairro, mas sem as forças do bairro; na civilização, mas sem as forças desta) a serviço da casa dos poderes contra o povo; 2) os poderes românticos contra o povo, que se utilizam das forças da Terra para impor um povo sem Terra, submetido pelo trabalho na Terra e ao mesmo tempo, fora de si, produzindo uma Terra para poucos; 3) os poderes modernos contra o povo, que se valem das forças cosmológicas para, de fora da Terra, lançarem povos contra povos, condenando-os à condição emparedada de povo finito, incapaz de transcender a si mesmo, de se inventar o além de si, infinitamente.
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Na história da humanidade, o ora, ora, ora dos poderes contra o povo tem um nome: ocidentalização do mundo. O Ocidente tomou para si a casa do povo, a Terra do povo e o cosmos do povo, colocando-se como o exclusivo povo, sobretudo tendo em vista a oligarquia ocidental, ela mesma um povo que dissimula não ser, apresentando-se como a casta proprietária do povo, pois se apropria de suas forças caóticas, terráqueas e cosmológicas.
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A virada de mesa do Ocidente, como o povo que tomou para si as forças do povo, ocorreu precisamente na era romântica dos povos do mundo: a modernidade capitalista, iniciada com a expansão europeia no final do século 15. Tal expansão é ela mesma um ritornelo romântico sobre as forças da Terra, quais sejam: os mares, os recursos minerais e vegetais, os povos do planeta. Acumulando para si as forças da Terra, sequestrando-as, a Europa ocidentalizou o mundo e se tornou, por isso mesmo, a referência a ser sempre retomada, o ritornelo do planeta, seu refrão.
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Após a Segunda Guerra Mundial entramos definitivamente na era moderna dos povos, a era do povo moderno, cujo ritornelo passa a ser o cosmológico: orquestra forças do cosmos. A luta pela dominação do mundo encontrou, pois, um novo cenário: as forças da Terra em seu conjunto passaram a ser subjugadas pelas forças do cosmos. Como o Ocidente dominou a era romântica dos povos, ocupou e ocupa uma posição de extrema vantagem na era moderna, que é a que vivemos, sob a liderança dos Estados Unidos, país que emergiu precisamente como o ritornelo da atual era dos povos do planeta, a referência a ser retomada incessantemente: o refrão do mundo.
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Este é o cenário em que estamos: as forças cosmológicas do povo, que apanham o povo fora da casa do povo, a Terra, não estão sob o controle e livre uso expressivo dos povos, mas de oligarquias. Estas no geral se submetem aos Estados Unidos como o refrão do planeta, o ritornelo a ser retomado e convocado para a sujeição planetária dos povos. Os Estados Unidos protagonizam ou mesmo monopolizam as tecnologias cosmológicas dominando a tecnociência das forças do cosmos, cujo objetivo primordial é o de captar e explorar as forças cosmológicas dos povos contra estes últimos pela singela razão de que os povos do mundo não estão tomando para si, com autonomia e dignidade coletiva, as forças cosmológicas potencializadas, na atualidade, pelas tecnologias da era moderna, que nada mais são que as tecnologias do ritornelo cosmológico.
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O principal objetivo do refrão da era cosmológica dos povos, os Estados Unidos, é o de ter realmente todo o planeta subjugado pelo domínio da tecnociência cosmológica, sob o seu exclusivo controle e uso despóticos, razão pela qual concentram todas as suas fichas, táticas e estratégias, para vencerem toda e qualquer resistência, inclusive e antes de tudo utilizando os artefatos ou suportes técnicos propiciados pela tecnociência cosmológica: aviões não tripulados, submarinos atômicos, satélites, fibras ópticas, o domínio imperial sobre a internet, a rede das redes da era moderna: cosmológico arquivo planetário do povo clássico, romântico e moderno.
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Se a internet foi desenvolvida pela Agência de Projetos de Investigações Avançadas de Defesa dos Estados Unidos, é preciso simplesmente constatar que ela antes de tudo foi milimetricamente arquitetada como um projeto de defesa na era moderna das forças do cosmos, razão por que, antes de ser o bastião planetário da liberdade de expressão, o virtual suporte da inteligência geral humana, ela é fundamentalmente a rede das redes das táticas e estratégias de defesa, cujo nome atual é: guerra preventiva.
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É preciso dizer o que é sem fantasiar com o que nos dizem a partir dos nossos desejos, por mais legítimos que sejam: a internet não é neutra e não o é não apenas porque a neutralidade não existe, mas porque o povo cosmológico não detém o seu domínio, mas é dominada por ela no preciso ponto em que se julga livre nela, através dela, com ela, para expressar-se na era das forças cosmológicas.
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Recuperemos, a propósito, o velho Marx, e antes de tudo aquele acusado de ter produzido um pensamento mecanicista, ao separar a superestrutura da infraestrutura, alegando que o que vem primeiro é esta última, constituída pelo mundo concreto, pelas forças produtivas reais e seus detentores, os burgueses, donos dos meios de produção. Os povos do mundo não são os donos dos meios de produção das forças cosmológicas da nossa atual época, a moderna. Embora seja necessário discordar de Marx parcialmente, porque tudo é força produtiva, a infraestrutura e a superestrutura, é aquela realmente que precede em importância, razão por que é preciso fazer a seguinte pergunta esfíngica: quem domina a infraestrutura da internet? Elementar resposta: o Estado americano e antes de tudo as suas multinacionais, os dois parceiros que estão no domínio do topo (top-level domain) da Rede Mundial de Computadores, não sendo circunstancial que ambos sequer precisem ser identificados nacionalmente. Os Estados Unidos não possuem um domínio que o identifique na internet (o Brasil tem o domínio “br”, a Venezuela, o “ve”, a China tem o “cn”) simplesmente porque são o domínio dos domínios, de sol a sol, global.
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Os povos do mundo de forma alguma podem acreditar que farão revolução através de uma infraestrutura mundial de forças produtivas de comunicação sob o controle restrito e imperial do Governo americano e de suas multinacionais, razão pela qual é preciso afirmar com todas as letras: é absolutamente impossível uma revolução social verdadeira ancorada ou mesmo dependente de empresas como Facebook, e Twitter ou de qualquer outra forma de comunicação – uso de celulares, por exemplo – vinculada , direta ou indiretamente, com o “.com”. As denúncias reveladas pelo ex-agente da CIA Edward Snowden não passam da ponta do iceberg de um mar de lamas sem fim de usos e abusos do domínio americano da internet e mesmo do domínio americano das infraestruturas produtivas da era moderna.
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A complexa trama de espionagem conhecida como Sistema Échelon, sob o controle dos Estados Unidos e alguns países aliados, utiliza-se de antenas, estações de escuta, satélites, radares, submarinos, aviões não tripulados e tripulados para espionar o mundo todo dentro do sistema maior de guerra preventiva contra a humanidade, na era moderna das forças produtivas cosmológicas. A internet como um todo é parte deste sistema maior, orwelliano-cosmológico, a saber: a humanidade toda como suspeita de terrorista.
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Os revoltosos do Brasil (assim como os do Egito, os de Síria, os do Irã, da Venezuela, da Bolívia…), por mais bem-intencionados que sejam, só farão verdadeira transformação social se deixarem a presunção espontaneísta de lado e recorrerem humildemente ao velho Marx: revolução se faz tomando a fábrica, isto é, com o povo se tornando o dono soberano dos meios de produção. O resto é balela, quando não é o que tem sido efetivamente, formas modernas de massas de manobra, as quais, por serem modernas, isto é, imbuídas de energias cosmológicas, nem por isso são melhores que as da era romântica ou da era clássica. São absolutamente iguais: bois de piranha, carnes de canhão.
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Para complexificar um pouco Marx, com Marx, um pensador da era romântica, que pensou o mundo de forma absolutamente revolucionária, mas tendo em vista os referenciais das infraestruturas de produção das forças da Terra, na era moderna, a das infraestruturas das forças produtivas cosmológicas, tudo se tornou infraestrutura, inclusive e antes de tudo as infraestruturas de comunicação (vistas no geral como superestruturas), de armazenamento de dados, de informação, com a diferença de que o papel principal destas últimas está relacionado com o desafio produzir uma humanidade totalmente submetida, incapaz de resistência, de tal maneira que, quando tenta resistir, acaba realizando de forma burlesca um golpe contra si mesma.
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A trama cosmológica de comunicação da era moderna das forças produtivas cosmológicas constitui o nosso sistema Échelon planetário de manipulação das forças da Terra, logo de manipulação de povos. Sob o ponto de vista da Ocidentalização do mundo, a era moderna pode ser definida como a época, como um videogame, de povos que realizam “revoluções” contra si mesmos. O que estamos vendo no Brasil é o Sistema Échelon funcionando, na prática: revolução de direita, dos donos das infraestruturas da era moderna, “protagonizada” corporalmente pelas esquerdas românticas do mundo – mas não apenas.
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Ou as esquerdas se contemporizam, tornando-se esquerdas modernas, dispostas, com clareza, a destronar os donos das forças produtivas cosmológicas, ou burlescamente protagonizarão, “revolucionariamente”, o suicídio dos povos.
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É afinal para isto que estão indo para as ruas do Brasil: para, com todas românticas boas intenções, suicidar-nos.
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Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo