Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A falta que ele me faz

Foi de repente. Dia 19 de abril o e-mail trazia, curto e grosso, na linha do “assunto”: “Não Terá Mais”. E assim terminou um caso de amor e obsessão por um dos melhores jornais do planeta, o El País espanhol. Morte súbita. Formato berliner que nem sujava as mãos parou de circular e de ser impresso no Brasil. Agora, quem quiser manter a lembrança, só pelo site, onde a leitura é corrida e salteada e nem permite recortes para serem lidos mais tarde, arquivados, analisados. Claro que se imprime alguma coisa, mas alguma coisa não é a mesma coisa. Claro que se passam os olhos pelas manchetes do computador. Mas o que era um prazer sensual de longa duração virou um romance de minutos, virou namoro de “ficar” – ou seja, coisa nenhuma. O corpo do jornal na mão, deslizar por ele a qualquer hora, não esquecer de ler o artigo porque ele está ali, presente. O processador humano terá de trabalhar de outra maneira, mas a vida não dá tempo para milongas. O rompimento abrupto foi pior porque 19 de abril era uma sexta feira.

No sábado, 20, ficamos sem o Babelia, suplemento cultural de dar água na boca, um vício. Quem não se liga no papel-jornal não tem nem terá ideia da delícia que perdeu. Tem gente que só acredita no fim do papel no escritório quando o papel deixar de existir no banheiro também. Sou dessas. Hoje dei uma olhada na Internet mas a vista cansou, copiei alguns artigos que passei para o arquivo “Para Ler Depois”, que é um engodo para mim mesma, cemitério internáutico que se perde no bolo de notícias e se evapora com o tempo.

Por que fará tanta falta? Porque de lá para cá venho folheando Globo, Estadão, Folha de S.Paulo, Valor, Veja, Época, CartaCapital e descubro que o mapa da América Latina sumiu. Integramos o Mercosul mas desconhecemos a América hispânica.

A Argentina faz algum barulho entre os brasileiros com Julio Cortázar em nova tradução, quando Cristina K. fecha mais um atalho para a liberdade de imprensa, merece quatro dedos sobre a abertura pela Igreja dos arquivos das Avós da Praça de Maio ou um filme novo com Ricardo Darín. O papa não conta, agora é universal. O resto, quando muito, é pé de página, um palmo, uma nota sobre a Venezuela, e pouco ou nada noticiamos sobre Colômbia agora que as Farc acalmaram. Ou o México, Guatemala, Equador, Costa Rica, Peru, Guianas… perdi algum? Quais são mesmo os outros países de língua espanhola?

Frases em grego

Faz falta porque o mundo hispânico, que inclui a Espanha, é a matéria-prima do El País. São páginas duplas sobre García Lorca, a exumação do cadáver de Pablo Neruda e a história do poeta, onde foi parar a líder do movimento estudantil do Chile, Camila Vallejo, que antecedeu nossas passeatas, e todo o suplemento cultural que não posso manusear mas não esqueço.

Babelia. Os escritores da crise, a memória crítica de nuestros hermanos, análises sobre a deserção do ideal (onde foi parar a filosofia?), cadernos de viagem, a nova safra de cineastas, o que os palcos latinos andam exibindo e seus (nossos?) cantores, cantando. Soube através de algumas edições onde e como começou a picuinha entre Vargas Llosa e Gabriel García Márquez (una mujer!), e de todos os passos de Gabo até o silêncio final.

Os colunistas sempre me ensinaram alguma coisa – Antonio Muñoz Molina, Maruja Torres, Rosa Montero… O mundo inteiro está ali, incluindo Pompéia (¿qué has echo por nosotros?) e o riso gélido e o humor dos países nórdicos (primero descubrimos que los países del frio asesinavam a mansalva y ahora, que se muerem de la risa). Há páginas e páginas sobre França, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Inglaterra e assim mesmo o El País, ao contrário de nosotros, não detonou a América Latina no mapa. Nós preterimos os latinos e damos espaço na imprensa até ao Mali, mas o Brasil nunca saiu do El País, a Espanha ocupou o vazio de Portugal que anda esquecendo de olhar para este lado do Atlântico.

E nós? Não saberíamos muita coisa do Uruguai a não ser no último fim de semana pelo projeto de lei do ex-guerrilheiro e presidente José Mujica, de 78 anos, de liberar a maconha e restringir o uso do álcool. Mas o El País me deu a glória de entrar na cabeça do escritor Eduardo Galeano, que em 1971 nos abriu as veias da América Latina (“cinco siglos de historia demuestra que las multinacionales se van sin decir adiós dejando agujeros, fantasmas e índios muertos. El mundo, hoy, invita a ser indigno y la gente joven se ha negado a esa invitación. A mi me da uma inyección de vitamina E, de esperanza, de entusiasmo.”)

Uruguai é o segundo menor país da América Latina e deveríamos saber qual é o primeiro (você sabe?). E se os brasileiros não conseguem ler em espanhol, vale responder como Hanna Arendt ao editor do The New Yorker, que contestou suas frases em grego no artigo sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann. “Hanna, o americano não sabe grego”. E ela, recusando a tradução: “Pois deveria saber”. Nunca será a mesma coisa ler algum colunista republicado em português.

Buraco negro

Foi no El País que aprendi a melancolia de Mario Benedetti (“a veces la alma se descuida y te deja un poco de alegria”), a originalidade de Juan Carlos Onetti, que passou 12 anos na cama entre livros e declarou a Mario Vargas Llosa: “Você é casado com a literatura; eu não, ela é minha amante”. E o destino sinistro do novelista-contista Horacio Quiroga – o pai, o padrasto e a mulher se suicidaram, ele próprio assassinou por descuido o melhor amigo e, no final, cometeu suicídio. Estou lendo por indicação do El Paíso livro de bolso Cuentos de Amor, de Locura y de Muerte (Quiroga, Editorial Fontana).

É esse jornalismo que eu quero. Não fosse o El Paísde 13 de fevereiro deste ano eu nunca saberia dos 92 jornalistas reunidos na Cidade do México há quatro meses para o encontro Nuevos Cronistas de Índias, organizado pela Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, criada por Gabriel Garcia Marquez. Leila Guerriero, a jornalista que assina a coluna “O Jornalismo” (El Periodismo), define o que é uma “crônica”: “Gênero que na América Latina define peças jornalísticas que contam histórias reais, ferramentas estilísticas da ficção, e que, depois de sobreviver em algumas revistas empeñosas, atravessa, há cinco ou seis anos, um momento melhor”. Bom para os jornalistas latinos.

Sem saber da angústia que o fim do El Paísempapel provocou nos assinantes brasileiros, Leila falava na angústia daquilo que nosso oficio ultramoderno (agora digital) parece não ter: futuro. E ela própria responde o que movia os seus colegas latinos a escrever essas crônicas nos últimos anos: a certeza de que valia a pena.

O peruano Daniel Titinger foi editor durante dois anos de uma revista de crônicas chamada Etiqueta Negra. Ganhava 300 dólares e para manter a revista era relações públicas de uma empresa de energia, emprego que agora trocou por revistas bem comerciais. “Trabalho 12 horas por dia e ainda assim quero escrever crônicas, não por dinheiro ou por fama, mas para não ficar triste”.

Leila cita o personagem Atticus Finch, do romance de Harper Lee Matar um Rouxinol “Uma pessoa é corajosa quando sabe que a batalha está perdida e assim mesmo insiste, luta até o final… É possível que vença poucas vezes, mas alguma vez, vence”. Segundo ela, esta é a fórmula que alguns jornalistas encontraram para fazer o que fazem. Sabem que o melhor que podem esperar é o pior dos cenários e, ainda assim, exercem seu ofício com insistência até o final. Algumas vezes, vencem.

Como se soubesse o buraco negro em que nos encontraríamos agora sem o berliner, a coluna “Os Jornalistas” saiu dois meses antes de o El País/Brasilnos dizer adeus.

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Norma Couri é jornalista