No debate realizado na terça-feira (30/7) no programa do Observatório da Imprensa, o representante da Mídia Ninja reiterou o que já havia dito em outras ocasiões: que não apoia a hostilização da grande imprensa, tal como vem acontecendo nas manifestações iniciadas em junho, embora considere que “muita gente na rua” possa entender, “às vezes até em uma visão um pouco simplificada, um pouco ingênua, que a mídia é uma grande conspiração”.
A condenação, entretanto, não ultrapassa o limite do comentário. E a hostilização não é de “muita gente na rua”, falando assim genericamente, embora decerto “muita gente” vá na onda.
O exemplo mais recente ocorreu na manifestação convocada pelo Black Bloc em São Paulo, na quinta-feira (1/8), quando militantes investiram violentamente contra repórteres e funcionários a serviço de grandes redes de TV. Pode ter sido mais uma “performance”, como representantes do grupo classificam suas costumeiras ações de depredação do patrimônio público e privado: é o que destaca a CartaCapital, numa entrevista pingue-pongue em que aceita o anonimato da fonte, algo impensável para o jornalismo até recentemente.
Atacado, o repórter Fábio Pannunzio, da Band, condenou os agressores em seu blog (ver aqui) e logo recebeu uma avalanche de críticas, tanto em seu próprio espaço quanto no Facebook.
Não é surpresa, é apenas uma constatação: a internet está longe de ser um ambiente propício ao debate. Porque favorece o imediatismo, facilita as leituras desatentas, as reações irrefletidas e as conclusões precipitadas, especialmente em tempos de radicalização como os que estamos vivendo. Em vez de argumentos, proliferam os insultos. E a lógica binária, rasteira, simplificadora: quem não está conosco está contra nós.
Protestos antigos
A rejeição automática a tudo o que se produz na grande imprensa é um sentimento particularmente caro aos estudantes de jornalismo empenhados na articulação de alternativas ao modelo dominante, eventualmente estimulados por professores que adotam o mesmo discurso simplificador.
Porém, quem está chegando agora talvez ignore que o povo não é bobo há pelo menos três décadas, quando as Organizações Globo foram acusadas de participar da fraude do caso Proconsult, que tinha por objetivo barrar a vitória de Leonel Brizola na disputa pelo governo do Rio, nas primeiras eleições diretas desde o golpe militar, ainda durante o governo do general João Figueiredo: naquela ocasião, em 1982, como na campanha pelas Diretas, em 1984, na greve dos metalúrgicos de Volta Redonda, em 1988, e na campanha de Lula em 1989, o slogan “abaixo a Rede Globo” foi cantado a plenos pulmões.
Carros e jornalistas da empresa – TV, jornal, não importa – eram atacados. Era um tempo de particular polarização ideológica, no longo e lento processo de saída da ditadura. O público, especialmente os militantes, via as aparências: os repórteres, seus crachás, seus microfones, os carros com o logotipo odiado. Não via, não podia ver, os conflitos nas redações, a luta de muitos profissionais para driblar a censura interna.
O livro Jornalistas pra quê? Os profissionais diante da ética, que o Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro publicou em 1989, reproduz um debate entre assessores de imprensa de candidatos à presidência da República muito revelador desses bastidores. Os que estão chegando agora talvez se surpreendam com o comentário de Ricardo Kotscho, então assessor de Lula, sobre a perseverança de uma repórter da sucursal do Globo em São Paulo: era a primeira a chegar, a última a sair, escrevia muito e não publicavam nada, mas ela não desanimava porque o material ia para a Agência Globo e seria reproduzido em outros jornais pelo país.
Se os operários que se aglomeravam na porta das fábricas para ouvir Lula naquele tempo resolvessem impedir o trabalho dessa repórter, estariam agindo contra seus próprios interesses.
Em nome da liberdade
Este exemplo, já distante no tempo, é apenas para mostrar que as coisas são, sempre foram, mais complicadas do que parecem.
O jornalismo da Globo, como o de outras empresas, mereceu críticas contundentes pela cobertura das manifestações de agora. Mas foi também esse jornalismo – como notou a ombusdman da Folha de S.Paulo, Suzana Singer (30/7, ver aqui) – que obteve as informações definitivas para demolir a acusação contra o jovem preso por supostamente atirar um coquetel molotov contra a tropa na noite do último protesto em frente ao Palácio Guanabara, ao conseguir cópia do inquérito em que o policial autor da prisão desmentia a versão oficial. Também foi a Globo que editou imagens próprias e oriundas das redes sociais – como as transmitidas pela Mídia Ninja – atestando que o rapaz não carregava mochila.
Só fez isso porque foi confrontada com as cenas que já circulavam na internet? Talvez, embora, como sempre, as intenções importem muito menos que as ações. Mas, se foi assim, isso só demonstra que, melhor do que hostilizar a grande imprensa, é forçá-la a abrir espaço para outras versões dos fatos.
É óbvio que as grandes corporações de mídia têm interesses que as levam a descumprir recorrentemente seus belos princípios editoriais. Mas também deveria ser claro que não se trata de estruturas monolíticas, impermeáveis aos conflitos que eclodem na sociedade, às vezes com força inusitada. Por isso, vociferar slogans contra essas grandes corporações, em vez de significar uma sólida consciência política, pode ser expressão de uma profunda ignorância. E passar das palavras aos atos, agredindo jornalistas e inviabilizando seu trabalho, é uma atitude incompatível com a ordem democrática e incoerente com os princípios de quem diz defender a liberdade.
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A militância e as responsabilidades do jornalismo – S.D.M.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)