Não disse neste espaço que há uma divisão de gerações causada pela mídia social? Não disse que minha expectativa de privacidade é diferente da de jovens que documentam cada momento íntimo?
Disse bobagem.
O caso de um admirado âncora da rádio pública americana, um moderado jornalista de 61 anos que tuitou, ainda que com metáforas e palavras elegantes, a morte da própria mãe, confirma o que tenho desconfiado. Quando observo o comportamento de certas pessoas de mais de 50 anos on-line, descubro que há um exibicionista clamando por atenção em qualquer idade. A tecnologia apenas se tornou o grande facilitador.
Por se tratar de uma figura querida, que trabalha numa rádio que opera sem fins lucrativos, que tem 1 milhão e 200 mil seguidores no Twitter, o recém-órfão Scott Simon foi tratado com enorme respeito e declarações de admiração. Seus seguidores ao redor do mundo viveram a catarse do fim da vida de uma mulher que não conheceram, como se se tratasse de um líder político ou um artista popular.
“Cobri mais de dez guerras”, disse Simon a um canal de TV, “mas nada foi tão emocionante quanto as 48 horas finais que passei com a minha mãe”. Não duvido de sua sinceridade. Jamais vou me esquecer das conversas com o meu pai na UTI. E jamais me passou pela cabeça compartilhar de todo o drama e a ternura com estranhos em tempo real. Ou expor ao vivo suas palavras influenciadas por medicação, num momento de grande fragilidade.
Tom adequado
Esta ouvinte, uma entre 13 milhões acostumados a acordar com a voz de veludo do Mr. Simon nas manhãs de sábado, não vai se juntar ao coro dos que elogiam a sua coragem. Encaro a tuitagem da morte da mãe dele como um espetáculo pornográfico. Logo ela, uma showgirl quando jovem, não foi consultada como coadjuvante da produção.
O diretor de Ética de Medicina da New York University, falando com o mesmo canal de TV, não julgou o comportamento de Simon, mas comentou que o nascimento, o sexo e a morte eram os últimos recônditos de privacidade. E concluiu que a sociedade hoje parece não reconhecer nem essas fronteiras.
Se você, como eu, perdeu um pai, mãe, irmã e irmão no passado, não precisa do refinamento literário de Joan Didion em O Ano do Pensamento Mágico ou Joyce Carol Oates em A História de Uma Viúva para fazer justiça aos mortos e humanizar a experiência para milhares de leitores – depois de processar seus sentimentos e experimentar introspecção. Deve lembrar-se que, nas mais humana das reações, pode ter dito ou feito algo incomum, na ansiedade com que demarcamos nosso território no mundo dos vivos. Há de compreender que a profundidade do luto não se manifesta em tempo real. Ou em 48 horas. Ou em 48 dias.
Sim, as manifestações de 140 caracteres numa mídia social não são literatura ou epistolário, tanto quanto as abreviadas mensagens de texto não são linguagem escrita. O Twitter me fascina em parte porque o limite da tecnologia não limita a linguagem, cria uma outra oportunidade de expressão. Mas não gostaria de encontrar um estranho no velório do meu pai dizendo que está ali porque gostou de algo que escrevi sobre o luto. Há momentos para interagir com estranhos. O nascimento, o sexo e a morte não se incluem entre eles.
Logo em seguida à morte de Patricia Simon Newman, seu filho continuou falando. Deu detalhes dos dois dias em que se sentiu tão próximo da sua mãe e elogiou seu espírito indômito. Transmitiu seus conselhos aos ouvintes e contou que, na agitação que tantos de nós testemunhamos, alguém que em exaltada lucidez sabe que o final se aproxima, sua mãe, lhe disse: aposto que todos os grandes discursos no leito da morte foram escritos com antecedência.
Exatamente. Perto do final, ela procurava o tom certo para se manifestar. O filho estava ocupado tuitando emoções não editadas.
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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York