Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ninjas querem verba oficial para sobreviver

A reunião patinava, sem que os presentes se entendessem sobre o uso ou não de recursos públicos, até que um homem barbudo, de blusa molhada, interrompeu o recinto para anunciar:

– Invadimos a Câmara Municipal! Uma explosão de vivas e aplausos tirou o terceiro encontro da Mídia Ninja (de Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) no campus da UFRJ, na Praia Vermelha, da encruzilhada do impasse.

A novidade, ao ser anunciada na primeira pessoa do plural, seria um escândalo em qualquer redação. Mais ou menos como se um repórter de Política soltasse um “ganhamos a eleição” ou o colega de Esportes festejasse um gol com algo como “vencemos o clássico”. Para os ninjas, porém, não há campo neutro. O movimento que saiu às ruas do país, registrando as manifestações de protesto com transmissões ao vivo, de celulares com acesso 3G (internet de alta velocidade), não esconde seu lado:

– Fazemos uma cobertura ao vivo, em tempo real, chapa quente. Nossos atos de jornalismo são multifacetados, parciais, com impressões e avaliações de cada um – sintetiza Pablo Capilé.

Oficialmente, a Mídia Ninja não tem uma voz de comando. Mas era para Capilé, um mato-grossense de 32 anos que considera o australiano Julian Assange, criador do WikiLeaks, a versão moderna de Jimmy Hendrix, que a atenção dos 80 ninjas presentes à reunião de quarta-feira estava voltada. Fundador da ONG paulista “Fora do Eixo”, de onde saiu a estrutura e a inspiração para o grupo, ele se valia da popularidade conquistada nas transmissões ao vivo para convencer os militantes da necessidade de disputar as verbas federais destinadas à área de Comunicação. Sua defesa, recheada de termos como “midia-livrismo”, “hackear”, “downloadear” e “espraiar”, não foi suficiente para remover desconfianças.

Polêmica entrevista com Paes

Com celulares que mobilizam manifestantes, os ninjas ecoam as vozes das ruas e caçam P2 (agentes secretos da Polícia Militar) nos protestos. Entendem-se como jornalistas. Porém, ao executar suas “pautas” com a paixão de um ativista, confundem-se com os personagens de suas histórias.

Em campo, aproximam seus celulares da ponta do nariz dos policiais e exigem deles respostas sobre o desfecho da manifestação, por exemplo. Quem assiste pela web sente que eles, muitas vezes, provocam a notícia – em vez de apenas revelá-la.

Segundo Capilé, o grupo soma cerca de 2 mil voluntários e se congratula de dois feitos: terem supostamente pautado jornais e telejornais – como no caso do jovem que havia sido detido por portar coquetéis molotov, mas que não carregava sequer uma mochila – e por terem supostamente levado a PM do Rio a alterar sua estratégia durante as manifestações – os policiais agora andam fardados em meio à multidão.

Há algumas semanas, porém, o grupo teve a chance de fazer uma entrevista exclusiva com o prefeito do Rio, Eduardo Paes. Alardearam a conquista pela web, mas as perguntas feitas revelaram certo desconhecimento da vida política da cidade, como a situação da aldeia Maracanã e a existência de um portal da transparência, com documentos públicos.

Logo depois da transmissão, que durou cerca de 1h30, os ninjas foram criticados por suposto despreparo nas mesmas redes sociais que os alimentam. Alegaram falta de tempo para preparar perguntas.

Ninjas querem sair do Facebook

Nos próximos dias, os ninjas pretendem inaugurar um portal próprio, livrando-se da carona dada pelo Facebook. Querem crescer, mas nem todos parecem dispostos a pagar o preço. Manter um portal e equipes aptas a receber, editar e distribuir o conteúdo produzido tem custo. Uma das alternativas é incorporar o PayPal, sistema que permite ao público pagar pelo que consome. Outra é buscar dinheiro público, lançando os ninjas no mundo das coisas formais que tanto combatem.

– Não vejo problemas. Só no Rio, já existem 200 grupos que gostariam de ter mais estrutura. Sem recursos, dificilmente conseguiremos dar a eles mais suporte. Temos que disputar políticas públicas, como faz a grande imprensa, que cria formas de receber esse dinheiro – defende Capilé.

Na noite da reunião, o fundador do “Fora do Eixo” (rede que organiza festivais de música independente em 200 cidades brasileiras) usava um agasalho da seleção da Tunísia, onde as redes sociais deflagaram, há dois anos, a Primavera Árabe. Ironicamente, Capilé tem sido, nos últimos dias, vítima da plataforma que o projetou: nas redes sociais, circulam fotos suas na companhia do ex-ministro José Dirceu e da hoje ministra da Cultura, Marta Suplicy, além de uma entrevista em que o presidente do PT, Rui Falcão, o classifica de militante do partido. As imagens, somadas ao financiamento que o “Fora do Eixo” recebeu da Petrobras, lançaram dúvidas sobre os objetivos do grupo.

– Tenho fotos minhas ao lado de vários políticos, incluindo o Fernando Henrique Cardoso (ex-presidente), a Marina Silva (ex-ministra do Meio Ambiente) e o Marcelo Freixo (deputado do PSOL). Mas só mostram essas, que foram retiradas da minha conta no Facebook. Se eu entendesse isso como problema, não teria colocado lá. Além do mais, respeito a trajetória do Dirceu – explica-se, ao garantir que não é instrumentalizado pelo PT.

Desde que o Rio se tornou a vanguarda das manifestações, com acampamentos na porta da casa do governador Sérgio Cabral, cerco ao Palácio Guanabara, invasões de prédios públicos e atos de vandalismo, a Mídia Ninja deslocou seu núcleo duro de São Paulo para a cidade. O quartel-general funciona num apartamento na Avenida Pasteur, na Urca, do programa Universidade das Quebradas, da UFRJ, perto da Escola de Comunicação (ECO), outra base de apoio dos ninjas no Rio. Nas últimas semanas, Capilé tem sido presença constante nos dois espaços, empenhado em construir um núcleo duro específico para os cariocas.

A natureza do projeto dos ninjas, que concentra as transmissões ao vivo nos atos de protesto, mas deixa de lado eventos como a visita do Papa Francisco, o protesto dos médicos ou o rompimento da adutora da Cedae, ainda é um fenômeno em busca de consenso na academia. Professor da Universidade do Texas e diretor-fundador do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas, Rosental Calmon Alves entende que a empolgação dos ninjas, ante o anúncio de uma nova invasão, se assemelha à cobertura que a imprensa americana faz nas operações militares do Oriente Médio, quando os jornalistas exclamam: “Invadimos o Iraque!”. Mas ele não vê problemas no fenômeno:

– Eles estão fundando aqui um gênero. Há outros. Eles assumem de que lado estão, mas isso não os desqualifica. A nova objetividade é a transparência.

O problema, para o doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra Carlos Alberto di Franco, é a legitimação do projeto por meio de um discurso de demonização da imprensa:

– A democracia reclama a mediação dos grupos de produção de conteúdo que já passaram pelo crivo do tempo. Quando esses grupos começam a ser atacados, é a democracia que está em risco.

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De designer a expert em luthieria

Fundado por três membros da rede “Fora do Eixo” que vieram de São Paulo em junho para cobrir as manifestações do Rio – o estudante de Cinema Filipe Peçanha, de 25 anos, o “Carioca”; o designer Rafael Villela, de 24 , o “Pira”; e Felipe Altenfelder, de 28 –, o “núcleo duro” do grupo Ninja carioca é heterogêneo. Além dos três, integram a equipe um designer, uma cineasta, uma jornalista com 26 anos de experiência no mercado, fotógrafos e até um especialista em luthieria.

Nas primeiras coberturas, chamava atenção o fato de Carioca andar pelas ruas perguntando: “Onde é a 14ª DP?”, “Para que lado é Copacabana?”. Vendo a transmissão de casa, a cineasta carioca Julia Mariano, de 32 anos, reconheceu a voz dele – eles tinham se conhecido em Marabá (PA), em abril. Na época, Julia filmava o julgamento de três réus acusados de assassinar o casal de ambientalistas José Claudio e Maria do Espírito Santo, crime que chocou o país em 2011, para um documentário. Carioca e Pira transmitiam o julgamento ao vivo para o PosTV, braço audiovisual do “Fora do Eixo” que deu origem ao Ninja. Focados em pautas alternativas, os jovens já tinham transmitido o Fórum Social Mundial na Tunísia, em março, e mostrado os bastidores do Occupy Wall Street, em Nova York, em 2011. Pira ainda viajaria em abril para transmitir a convulsão na Praça Tahir, no Egito.

Vendo que o colega estava perdido, Julia entrou em contato para ajudá-lo. No evento seguinte (a manifestação que ocorreu no final da Copa das Confederações), ela já era uma Ninja. A eles juntou-se ainda o designer gráfico carioca Massashi Hosono, de 38 anos, que cuida da base de operação com a jornalista carioca e professora de pós-graduação em telejornalismo da Estácio de Sá Raquel Boechat, de 46 anos. Eles se somam ao estudante de Comunicação da PUC e especialista em luthieria Leonardo Coelho, de 24 anos; e aos fotógrafos paulistas Thaís Pimenta e Luiz Roberto Lima, de 30 anos. Esses integram um coletivo independente que alimenta tanto agências convencionais quanto os Ninja. É de Luiz a foto de Daniel Barata jogando notas de R$ 20 do Copacabana Palace durante o casamento da neta do “rei dos ônibus” do Rio, Jacob Barata.

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Chico Otavio é repórter de O Globo