Wednesday, 11 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

‘O Globo’ e o jornalismo do Mídia Ninja

Foi com a imparcialidade antropológica que ensinam os manuais de redação da grande imprensa que Chico Otávio, repórter da editoria de País do jornal O Globo, cobriu a reunião aberta promovida pelo Mídia Ninja no dia 30 de julho: ouviu e observou sem interferir e, na edição de domingo (4/8), a mais lida da semana, publicou uma matéria bem feita, mas que nos oferece um cardápio completo de elementos que – num exercício raro de metalinguagem, já que se trata de uma matéria que fala sobre o próprio jornalismo – negam o modelo falsamente informativo que ela parece seguir.

Comecemos pelo título, preciso e esclarecedor: “Ninjas querem verba oficial para sobreviver”. Título, segundo o Manual de Redação do Globo, é o “anúncio da notícia, concentrado no fato que provavelmente mais despertará atenção”. E isso diz muito sobre as opções “objetivas” e “neutras” tomadas pelo jornalista. Em primeiro lugar, o debate da reunião relatada na matéria era prioritariamente sobre a busca de recursos públicos, informação que aparece, de forma um pouco mais precisa, no primeiro parágrafo do texto. Como sabemos – principalmente nós, jornalistas – que as palavras não são neutras, uma consulta ao dicionário basta para mostrar a diferença entre o relato e o fato. “Oficial”, diz o Michaelis nas duas primeiras definições, é aquilo que é “proposto por autoridade ou por ela emanado” ou “que emana do governo”. Em nenhuma das definições o termo aparece como sinônimo de “público”. E esse mesmo dicionário nos ensina também, nas duas primeiras definições, que “público” é o “pertencente ou relativo a um povo ou ao povo” e, de forma mais direta, o “que serve para uso de todos”.

Essa diferença, nada sutil, é suficiente para distinguir o conteúdo debatido na reunião noticiada e o que aparece estampado no título da matéria: mais do que uma decisão sobre como “crescer”, a discussão era sobre como podemos (e devemos) disputar o Estado, demandar o público, aquilo que é de todos, para as causas e iniciativas populares, impedindo, portanto, que ele seja inteiramente colonizado pelos interesses privados hegemônicos, características dos governos que todos que fomos às ruas temos denunciado. Mas era algo ainda mais sofisticado: o impasse estava em como fazer isso sem perder a necessária autonomia.

“Temos que disputar políticas públicas”

Reforçando a abordagem, “objetiva” e “neutra”, de que o grupo quer crescer às custas do governo, a matéria informa que tanto aquela reunião quanto as dinâmicas de trabalho do grupo têm acontecido em espaços cedidos pela UFRJ, uma instituição pública (ou oficial?). Não sei por qual portão Chico Otávio entrou, mas se teve oportunidade de passear um pouquinho pelo campus da UFRJ na Praia Vermelha, ele deve ter se espantado em ver um espaço público ocupado por agências de bancos privados e outros negócios. O jornalista, muito bem informado, certamente também sabe que aquele campus – espaço público, pago por todos – forneceu abrigo e infraestrutura, como auditórios e salas, para os peregrinos da Jornada Mundial da Juventude – que, ao contrário do que o senso comum sustentado pela cobertura do Globo e de outros veículos tenta mostrar, trata de um evento privado voltado para os interesses de uma parcela da população. Ou será que o Globo acha que o papa também é público?

Mas voltemos ao título. Vale o registro de que o verbo “querer” também não resume bem as intenções anunciadas na reunião, que tratavam não de uma demanda, mas de um esforço concentrado de busca desses recursos, por meio de instrumentos como editais públicos. Aqui, ainda que, para ser “jornalístico”, o texto não possa “criticar” os Ninja pelo seu interesse no dinheiro público, vale um comentário, só por precaução, no caso de algum desavisado não ter percebido que a matéria era imparcial.

Segundo dados da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, em 2012, a TV Globo, do mesmo grupo do jornal, recebeu mais de R$ 495 milhões de dinheiro público (ou oficial?) em verba publicitária. Desde 2000, foram R$ 5,9 bilhões. E como se trata de pagamento de publicidade veiculada, a decisão de onde aplicar é parte de uma caixa preta cujo único critério que se conhece é o tamanho do público; não se trata de um processo de seleção objetivo e criterioso, como acontece com recursos conquistados por meio de editais públicos, por exemplo. Justiça seja feita à seriedade de Chico Otávio, que, mesmo num espaço menos nobre do que o título, registra a fala de um dos Ninja, que faz essa comparação. “Temos que disputar políticas públicas, como faz a grande imprensa, que cria formas de receber esse dinheiro”, diz Pablo Capilé.

Jornalismo em risco

Com a autoridade de quem sabe muito bem o que é jornalismo, lição aprendida nas redações da grande imprensa, o autor da matéria diz que os Ninja “entendem-se como jornalistas”. E, sem conclusões explícitas na primeira pessoa, como bem mandam os manuais de redação, ele adverte: “Porém, ao executar suas ‘pautas’ com a paixão de um ativista, confundem-se com os personagens de suas histórias”. Trágica é a situação de profissionais como a repórter da Folha de S.Paulo Giuliana Vallone, que, além de tomar um tiro de bala de borracha na cobertura de uma manifestação, talvez precise deixar de se “entender” jornalista já que se tornou personagem de todos os jornais.

De qualquer forma, estudantes de comunicação do mundo inteiro, aprendam: jornalista é aquele que está fora do fato – talvez essa necessidade de distância justifique a cobertura de parte da grande imprensa, feita a partir de helicópteros e da reprodução da versão dos fatos produzidos pela assessoria de imprensa dos órgãos oficiais; é aquele que observa de forma quase antropológica eventos e pessoas que, embora façam parte da mesma realidade que ele, do seu mesmo contexto histórico e local, precisa estar do outro lado da informação; é aquele que não pode se indignar com a violação dos preceitos democráticos na repressão violenta levada a cabo pela polícia e justificada pelas autoridades, sendo impedido, portanto, de pedir explicações ao policial no calor da hora, sob o risco de “provocar” a notícia em vez de “apenas revelá-la”, como Chico Otávio descreve as ações dos Ninja na matéria; jornalista é, por fim, aquele que deve se manifestar sempre a favor da liberdade de imprensa e de expressão quando ela atende aos interesses das grandes corporações midiáticas que mantêm jornais como O Globo, mas nunca quando os “livres” que querem se expressar são milhões de trabalhadores que ocupam as ruas em nome de um poder popular.

Liberdade se exercita, aprendam bem, de forma imparcial e controlada, sem paixão nem engajamento – e, claro, sem uso de adjetivos. O lugar da liberdade, não esqueçam, são as páginas dos jornais e as telas da TV, não as ruas.

O que os manuais de redação e as escolas de comunicação não dizem é que a imparcialidade também tem um lado: o da ordem estabelecida que, naturalizada num tratamento asséptico e institucional, faz parecer que as coisas sempre foram e sempre serão assim. Dizer que imparcialidade não existe virou lugar comum, frase introdutória de todo manual de redação jornalística que, na sequência, elenca um conjunto de técnicas que, no entanto, visam uma abordagem “o mais imparcial possível”. O que o trabalho jornalístico de grupos como a Mídia Ninja trouxe de novo foi a flagrante diferença entre objetividade e neutralidade. Afinal, o que pode haver de mais objetivo do que imagens em tempo real que se permitiam, inclusive, “aproximar celulares da ponta do nariz dos policias” e “exigir” deles “respostas sobre o desfecho da manifestação”, como descreve a matéria do Globo?

O que pode ser mais objetivo, no sentido de acompanhar e reproduzir a realidade (o objeto) tal como ela se apresenta, do que uma cobertura que, subvertendo a lógica empresarial travestida de profissionalismo do jornalismo hegemônico, revelava tanto eventos “imprevisíveis”, como a explosão de bombas e tiros por parte da polícia, quanto a mais absoluta monotonia de movimentos, gritos e gestos de uma passeata durante horas? O que pode ser mais objetivo do que noticiar, em tempo real e através de imagens, aquilo que, para o jornalismo que aprendemos na faculdade, é essencialmente uma não-notícia?

A narrativa Ninja, que já está sendo seguida por muitos outros grupos, organizados ou não, além de interferir diretamente na condução política dos fatos pós-manifestações em contextos como o do Rio de Janeiro, pode contribuir também para redefinir o que é jornalismo. Os movimentos pela democratização da comunicação, que lutam pela desconcentração dos meios, há muito tempo buscam garantir um lugar para outras vozes (e outras versões) além das grandes corporações midiáticas. A objetividade nada imparcial dos Ninja talvez venha acrescentar a importância de se garantir também um outro modo de se compreender e fazer jornalismo, a ressignificação de uma prática que foi aprisionada num modelo profissional desenhado para caber nos moldes da mídia empresarial. Talvez por isso a matéria de Chico Otávio, tão coerentemente construída, termine com uma fala que, descolada de todo o resto, traz como questão a “demonização da imprensa”.

Segundo o ‘especialista’ entrevistado que encerra o texto, “a democracia reclama a mediação dos grupos de produção de conteúdo que já passaram pelo crivo do tempo. Quando esses grupos começam a ser atacados, é a democracia que está em risco”. Estudantes de jornalismo de todo o mundo, aprendam com os fatos que, neste caso, falam por si: o jornalismo, tal como aprendemos e reproduzimos, está em risco. Já era hora.

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Cátia Guimarães é jornalista e doutoranda em Serviço Social