Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os rastros de ódio

A ditadura militar não gostava de jornalistas, exceto dos amestrados; mas a oposição democrática nos apreciava. Sarney e Collor adoraram jornalistas, depois odiaram jornalistas, mas seus adversários gostavam de nós. A polícia jamais gostou de jornalistas – abrindo exceção apenas para um pequeno grupo mais acessível. O Ministério Público adora jornalistas, especialmente os que aceitam matérias prontas; e detesta jornalistas quando mostraram, por exemplo, que determinado procurador simplesmente copiava e colava textos escritos no escritório de advocacia de uma das partes do processo. O PSDB e o PT amam jornalistas a favor; odeiam os demais. O PT é mais flexível: aceita conversões e recebe os convertidos como filhos pródigos, servindo-lhes aquilo que há de melhor na mesa. Tanto o PT quanto o PSDB adoram jornalistas que criticam seus adversários.

Em resumo, caro colega, sempre houve gente favorável e contrária a nós, jornalistas. Mas agora estamos assistindo a um fenômeno intrigante: nessas manifestações, os jornalistas estão sendo sempre tratados como inimigos. Manifestantes queimam carros de reportagem, ameaçam agredir quem faz a cobertura das passeatas (e os jornalistas não têm quem os defenda, já que a polícia também apreciaria ver-nos numa travessa de prata, com uma maçã na boca). Dois profissionais de excelente reputação, Caco Barcellos e Fábio Pannunzio, já tiveram problemas com as multidões e por pouco não se transformaram em vítimas. A tropa de choque da polícia não hesitou em atirar seus sprays e balas de borracha em jornalistas, em alguns casos, foi muito claro, deliberadamente. Uma jornalista foi atingida por bala de borracha perto do olho, outro jornalista ainda não sabe se vai conseguir recuperar a visão prejudicada.

O mais interessante é que, tirando o pessoal que é criminoso mesmo e não quer que sua ação nas passeatas seja registrada, os manifestantes deveriam estar ao lado dos jornalistas, não contra. Os jornalistas colocam suas reivindicações nos meios de comunicação, amplificam os protestos. Mas, mesmo assim, são obrigados a disfarçar-se para fazer a cobertura, como se fossem jornalistas-ninjas, com o link escondido na mochila e usando celulares para captar imagens (forçosamente de qualidade inferior à de um equipamento apropriado), ou se limitam a descrever os acontecimentos tal como registrados pelos helicópteros da equipe.

Protesto contra a emissora? Besteira: os ameaçados e agredidos são profissionais que hoje trabalham num lugar, amanhã podem estar em outro. A violência atinge pessoas, não empresas de comunicação. E o slogan “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo” é, antes de tudo, uma bobagem: quem é que dá à Globo, há tantos anos, a liderança absoluta de audiência na televisão?

Há uma longa discussão sobre os novos limites do jornalismo, nessa era de celulares que gravam som e imagem. A discussão certamente não é esta: os repórteres-ninja, que se tornaram populares nestas manifestações, exercem funções jornalísticas. Tudo bem: e quem os paga? Se o jornalista é amador, trabalha de graça, como poderá dedicar-se à profissão? Como fará para aperfeiçoar-se, aprender mais, tentar entender o que está ocorrendo?

É uma situação complicadíssima. Ninguém gosta de nós, mas o pior é que, ao mesmo tempo, quem não gosta de nossa profissão quer atuar no lugar dos repórteres, sem salário, sem vínculo empregatício. É jornalismo sem patrão; e sem pagamento, sem estrutura que possa mandar um repórter para uma cidade vizinha, que garanta o fluxo de informação mesmo nos dias em que o repórter amador decide que é melhor namorar, viajar ou jantar fora. Pior: sem qualquer tipo de visão isenta. O pessoal ninja documentou muito bem as passeatas, mas que ninguém peça a eles um esforço para ao menos entender o outro lado.

A situação deve melhorar com o fim das manifestações, algum dia. Mas nunca mais voltará a ser o que era.

 

Muita tristeza, uma boa notícia

As más notícias transbordam: a Editora Abril fecha várias revistas, funde dois sites, demite 150 funcionários (e talvez, não há confirmação, os cortes não parem por aí). A Rede Record demitiu muita gente, a Rede TV! já fez demissões, o Estadão e a Folha demitiram pesadamente. O jornalismo oferecido ao público perde em qualidade, as informações não são verificadas com a mesma minúcia, as reportagens de fôlego não são feitas por falta de tempo e de equipe. Perdem todos – inclusive os departamentos comerciais, porque quando há falta de consumidores para quem é que vão anunciar?

No meio de tanta má notícia, uma informação animadora: o excelente Mauro Beting, que havia sido afastado da Rádio Bandeirantes de São Paulo “porque as contas não fechavam”, foi readmitido. A emissora avaliou melhor os fatos, muitos ouvintes se manifestaram, todos em favor de Mauro, dois pesos-pesados da equipe da rádio, Milton Neves e Neto, se movimentaram para mantê-lo. Neto foi fundo: num programa, pediu demissão, para que “as contas fechassem” e fosse possível buscar Mauro Beting de volta. A direção da emissora tomou a decisão mais sensata: segurar Mauro Beting e manter a equipe toda, sem demissões ao menos nessa área.

E por que foi uma decisão sensata? Este colunista conhece Mauro Beting, trabalhou com ele, conhece seu incrível potencial – embora ele seja torcedor do time errado, fruto da educação futebolística equivocada inerente a toda a sua família. É simpático, estabelece boas relações com os consumidores de informação, tem grande capacidade de trabalho, não enjeita serviço. Faria falta à Bandeirantes. E sua falta seria ainda mais sentida se fosse trabalhar numa emissora concorrente, que ganharia melhores condições de disputar o mercado.

Seria interessante se outros profissionais, afastados na mesma operação que atingiu Mauro Beting e que têm capacidade e currículo, como Walker Blas e Adriana Cury, fossem logo chamados de volta. Uma emissora voltada ao jornalismo não é uma fábrica de parafusos, em que os profissionais entram e saem sem que os consumidores se preocupem com isso. Um jornal, uma rádio, uma TV, blogs, portais, têm personalidade própria; têm alma, e a perda de determinados profissionais queridos do público diminui a intensidade da empatia entre consumidores e produtores de informação.

Em tempos outros, havia editoriais do Estadão com frases como “estávamos em nossa fazenda, em Louveira (…)”. Editorial é a voz do jornal; como é que o jornal, uma empresa, estaria numa fazenda passando o fim de semana? Pois o leitor do Estadão sabia que aquele editorial era do dr. Julinho, Júlio de Mesquita Filho, que nem precisava assinar o que escrevia, já que seus leitores sabiam desde as primeiras linhas quem era o autor. É o tipo de relacionamento que anda fazendo falta, o tipo de relacionamento entre produtores e consumidores de informação que ultrapassa a esfera comercial.

Enfim, lamentemos as más notícias e esperemos que, como no caso de Mauro Beting, as empresas de comunicação não sejam encaradas pelos acionistas como entidades apenas comerciais, comandadas apenas pela contabilidade do trimestre.

 

Pagando na Justiça

No Ceará, o Sindicato dos Jornalistas ganhou uma briga grande contra oito veículos de comunicação de Fortaleza. No total, são dez anos de direitos trabalhistas que não foram pagos a 221 jornalistas. É coisa de mais de 50 milhões de reais (é uma estimativa: o cálculo final ainda não foi feito). Só o Sistema Verdes Mares de Comunicação (jornal, duas tevês, rádio) responde por R$ 8 milhões, segundo o Dieese. É importante; mas é mais importante ainda que as grandes empresas se convençam de que é mais eficiente (e mais barato) cumprir a lei.

 

O humor judaico do Pasquim

Uma bela exposição, no Rio, lembra Redi, um dos grandes cartunistas brasileiros, um dos grandes astros de O Pasquim. Sílvio Redinger, falecido em 2004, é homenageado em “A influência do humor judaico nos traços do cartunista Redi”. Além das charges, dos cartuns, dos desenhos, Ziraldo e Clécia Casagrande sobre o envolvimento de Redi com a Turma do Pasquim. Midrash Centro Cultural, Rua Venâncio Flores, 184, no Leblon, Rio, dia 14/8, a partir das 20h.

 

Lobo Total

Jornalista dos bons, psicanalista, doutor em Filosofia, antigo editor do Jornal da Tarde, Reinaldo Lobo está de volta: escreve desde a quarta-feira (31/7) no excelente portal-revista Dom Total, de Marco Lacerda. Seu primeiro texto, “A classe média quer ir para Miami”, é uma análise divertida de uma parte da sociedade brasileira que busca esperança e modernidade, juntamente com dinheiro e poder. Vale a pena. O Dom Total e Reinaldo Lobo, ambos, são ótimos.

 

Como…

De um grande portal informativo:

** “Galeria (…) lança éclair com inspiração na França”

Considerando-se que o éclair (em português, bomba) nasceu na França, dois séculos atrás, onde mais se poderia buscar inspiração para produzi-lo?

 

…é…

De um press-release – a propósito, os releases estão a cada dia mais estranhos:

** “(…) otimiza e-commerce para rentabilizar delivery”

Em cinco palavras, há um “otimiza” e um “rentabilizar”, um “e-commerce” e um “delivery”. Do português nosso de cada dia, resta apenas o “para”. Só faltou o “disponibilizar” ou, mais fashion, “estar disponibilizando”.

 

…mesmo?

De um jornal regional importante, a respeito de foragidos que moravam na rua:

** “Depois da nota divulgada pela prefeitura contra a ação da polícia, alguns fugiram e os mandados não puderam ser cumpridos”

Claro, observa o jornalista Marco Antônio Zanfra. “Eles não fugiram por causa da polícia, mas por causa da nota da prefeitura condenando a ação da polícia. Ou seja, os sem-teto sacaram seus tablets e notebooks e, aproveitando a internet wireless à disposição, entraram no portal da prefeitura, leram a nota de repúdio e caíram fora. Não fosse a nota, que pegaram on-line, nem teriam percebido a presença de policiais por perto”.

 

Sim, é assim

Manchete de um grande portal informativo, a respeito da punição a bancos por envio irregular de cartões de crédito:

** “Bradesco, BB e Itaú levam multa de R$ 1,7 bilhão do governo”

A mesma notícia, na página interna:

** “Bradesco, Itaú e BB são multados em R$ 1,7 milhão pelo Ministério da Justiça”

Afinal, de quanto foi a multa? A julgar pelo texto, foi de R$ 1,7 milhão.

 

Frases

Do ex-governador José Serra, no twitter:

** “Foi apenas um susto a posteriori. Estou muito bem”.

E a gente imaginando que fosse uma operação cardíaca! Nesse caso, teria sido um susto a anteriori?

Do jornalista Cláudio Tognolli:

** “Em geral, o trabalho jornalístico é como o Arco do Triunfo. De longe, é bonito de ver”.

Do sempre brilhante Gabriel Meissner:

** “Pergunta que não quer calar: desde que começaram as manifestações populares no Brasil, o que de concreto mudou no país?”

 

As não notícias

Antigamente, com aquele linguajar de Redação que jamais pode ser publicado, isso se chamava TCR – algo como tirar da reta. Hoje é preocupação em não incriminar as pessoas. Uma preocupação, que, a propósito, não existiu quando um delegado contra o qual nada havia foi acusado de colaborar com o narcotráfico; nem com outro delegado, que segundo a TV deveria ser preso pelo simples fato de apresentar-se para depor num BMW, embora o carro, conforme amplamente se informou, não fosse dele, mas de seu advogado.

 

E eu com isso?

A gente ouve helicópteros o tempo todo, barulho de bombas de gás lacrimogêneo, o tumulto transmitido online pela TV – um saco! Na TV há outro mundo: um mundo bonito, alegre, onde as pessoas se preocupam em passear, curtir, namorar, casar, descasar, andar na orla (é o sinônimo que usam para praia) com os filhos. Além do horizonte, acredite, há outro lugar.

Um caso exemplar: uma jovem matou a amiga em Goiás, confessou o crime, disse qual era o motivo. A Polícia apreendeu uma carta com detalhes do assassínio. Título: “Suspeita relata como matou a amiga em GO”.

Outro: cinco cavalheiros invadiram o apartamento de um delegado. Para isso, subiram a parede do prédio até o primeiro andar, fazendo rapel, e entraram pela janela. Renderam a família, amarraram o delegado e o trancaram num quarto com a mulher e o filho, roubaram um monte de coisas. Diz o jornal: “os suspeitos invadiram o apartamento (…)”.

 

Esquisitices

Título: “Ministra abre evento da lata de alumínio apontando perspectivas sobre resíduos sólidos no país”

Ah, velhos tempos! Em época não tão distante, evento da lata era a maconha puríssima que foi jogada ao mar, no Rio, em latas lacradas. Segundo um especialista na degustação do produto, Tim Maia, a erva era de primeira qualidade.

Outro título: “Correr ao por do sol garante beleza aos olhos e benefícios à saúde”

Segundo as informações, este é o conceito sunset de corrida de rua. Agora, por que correr ao por do Sol é bom para embelezar os olhos, isso não está explicado. Mas deve haver algum sentido na frase, não é mesmo?

 

E eu com isso?

Sim, um outro mundo é possível. Um mundo onde as pessoas curtem, passeiam, viajam com os filhos, casam, descasam, namoram, andam de mãos dadas, e tudo isso é notícia. Sim, além do horizonte existe um lugar, como já cantava Judy Garland no O Mágico de Oz.

** “Bruna posa ao lado de modelo sem camisa para campanha”

** “Shakira circula por Nova York com o look verão”

** “Vera Viel posta foto fofa da filha ‘contando’ dobrinhas no corpo”

** “Eva Longoria circula de mãos dadas com o novo namorado”

** “Luciano Szafir passeia com a namorada em shopping carioca”

** “Rihanna não quer mais saber de Chris Brown”

** “Separados, Justus e Ticiane se unem para festa de Rafinha”

** “Taylor Swift dá gorjeta de R$ 1,2 mil”

** “Cláudia Abreu e marido curtem noite a dois em restaurante”

** “Kristen Stewart perde a paciência”

** “Noiva de Latino comemora seu aniversário com festa”

** “Mark Hamil vai a evento na Alemanha”

 

O grande título

Haverá título mais surpreendente do que este?

** “Massacre mata 72 no Egito”

Que massacre mais assassino!

Sim, existe título mais surpreendente ainda:

** “ (Firma) no Brasil contrata novo sócio para a área de Consultoria”

A burocracia brasileira é notável: deve ser o único país do mundo em que o sócio é contratado (e talvez o empregado se associe).

Mas nada bate o título abaixo em matéria de surpresa:

** “Felipe Andreoli e seu surpreendente lado oposto”

Não, caro leitor, nenhum comentário.

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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação