Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre o movimento e a entrevista ao ‘Roda Viva’

No décimo oitavo andar de um hotel no Rio fustigado por ventos, em que o inverno no Leblon é quase glacial, vejo o nu frontal do mar. É no embalo tormentoso dele que divago sobre as polêmicas recentes desencadeadas pela entrevista de Pablo Capilé e Bruno Torturra no “Roda Viva”, polêmicas que põem em questão os modelos e as práticas do movimento Fora do Eixo. Como se sabe, o Fora do Eixo vem ampliando suas ações de produção cultural alternativa, desenvolvidas em rede, na forma do jornalismo em ato conhecido como Mídia Ninja, que decolou junto com as manifestações de rua. Eu já tinha começado a escrever este artigo quando li o de Francisco Bosco, publicado nesta mesma página, indo direto ao ponto aonde eu chegaria de maneira mais tortuosa, ao meu estilo. Sem se reconhecer existencial e ideologicamente no Fora do Eixo, no modo de vida que propõe e nas suas prioridades culturais, Bosco analisa e acusa o caráter redutor, equivocado, regressivo e mesmo suspeito da maior parte da leva de críticas a Capilé e ao movimento, que se seguiram à entrevista no “Roda Viva”, pela internet e pela imprensa. Concordando basicamente com ele, prossigo com minhas elucubrações mais gerais.

Já expressei aqui a ideia de que as manifestações podem ser vistas, sem querer com isso explicá-las, como uma tremenda golfada social, súbita e inesperada como certos vômitos, desencadeada pelo que há de nauseante na farsa política, por um lado, e como a devolução indigesta de uma sociedade de mercado heterogênea, irredutível a qualquer categoria unificadora, cuja salada ideológica os movimentos a seu modo expressam, turbinados pela revolução digital. Em outras palavras, eles perturbam a mecânica dos modos de representação política que aspiram ao poder de Estado e ao mesmo tempo a lógica economicista que submete todas as relações ao mercado. É difícil reduzi-los à razão partidária, que aspira ao poder estatal, e à razão dos interesses de mercado, dado o que já chamei aqui de sua luminosa virulência. Nesse sentido, eles são o mundo do mercado posto a nu, isto é, a radiografia de sua pluralidade heterogênea e irredutível, mas destituída das relações material e simbolicamente mercantis que comandam as mais diferentes dimensões da vida, sem apelo, ainda mais, a uma força unificadora de outro tipo.

Não por acaso a reação é de perplexidade da parte dos que tentam entendê-los a partir das categorias já prontas que privilegiam o Estado ou o mercado como crivo de análise do mundo, e de hesitação contínua entre considerá-los positivos ou negativos. Se o movimento pelo Passe Livre teve uma ação disparadora inicial, para além de seus próprios propósitos explícitos ou conscientes, o Fora do Eixo sinaliza positivamente, neste momento, algumas das consequências agudas e desconcertantes da nova situação, que consiste em atravessar esse quadro controvertido mas não anômico, propondo novas formas de organização e de discussão das representações nascidas da “crise dos intermediários” políticos e jornalísticos, oxigenando o debate do processo representativo.

Novas relações

Não é segredo que o Fora do Eixo fomenta, para viabilização e sustentação de seus projetos culturais e jornalísticos, uma rede de trocas regida por relações não completamente quantificáveis, simbolizadas por uma moeda paralela, virtual, que “contabiliza” o desejo de fazer e que inventa recursos onde eles não estão dados pela máquina produtiva vigente. (É de se notar a semelhança com as análises de David Graeber, em “Debt”, sobre os grandes ciclos civilizacionais de amoedamento e de desmonetização, em cujo limiar estaríamos, segundo ele, não fossem as demandas e as imposições do complexo financeiro, industrial e militar.) E que seus membros adotam um modo de vida ascético em casas comunitárias, reduzido aos recursos mínimos, dispensando sofisticações estéticas (que sempre me fariam falta) e convertendo assim o seu “modus vivendi” num “modus operandi”.

Não me sinto tolhido por essas escolhas, seu anarco-comunismo internético praticante, e acho que o Fora do Eixo está tocando de modo afirmativo em pontos cruciais do desconcerto contemporâneo, que desafiam a mudar a chave das lógicas produtivas. No “Roda Viva”, Bruno e Capilé foram sabatinados no sentido de se desmascarar a sua possível recaída em interesses político-partidários disfarçados e em camuflados interesses econômicos de sempre. Como se saíram muito bem (tenho uma crença renitente no valor ético da fala pronta, franca, transparente e concretamente inovadora), num programa nacional de grande audiência em TV aberta, parece que se tornou irresistível tentar anular a originalidade da sua presença por meios enviesados e obscuros, que se comprazem em sabotar a simples possibilidade de relações novas. Que estão aí para ser discutidas e experimentadas.

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José Miguel Wisnik é colunista do Globo