Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fora de mim

Nos últimos dias, o coletivo Fora do Eixo (FdE) foi alvo de muitas críticas, parte das quais anunciadas como “denúncias”, mas que, na verdade, são apenas análises do modus operandi do grupo ou queixas (muitas vezes legítimas) de ex-integrantes. Mas não vou entrar muito no mérito do que foi dito sobre o FdE. Não sou desse coletivo e, por isso, não tenho condições de dizer o que procede ou não. Fazer isso seria algo imprudente (quiçá leviano). E tenho um grande respeito por mim e por quem (eventualmente) me lê.

Todavia, em função da importância do assunto, farei algumas considerações de quem já teve contato com integrantes do coletivo e também conhece um pouco da sua história. Acho curioso… Aliás, reformulando, acho natural que após ficar evidenciada a relação do FdE com a Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), o primeiro passou a ser alvo de reportagens depreciativas da chamada “grande” imprensa. Ataca-se o Fora do Eixo para acertar a Mídia Ninja (e o Fora do Eixo também, é claro). Simples. Afinal, os ninjas estão propondo, digamos, um novo “modelo de negócio”. Se isso vai dar certo ou não, já é outra história. Mas falar em novos paradigmas é algo no qual a maior parte da mídia tradicional, obviamente, não tem o menor interesse.

Os grandes grupos de comunicação beneficiam-se do atual modelo: baseado em um oligopólio amplamente financiado pelos contribuintes por meio, sobretudo, de uma grande injeção de dinheiro estatal a ser usado em propagandas publicitárias (em sua maioria, inúteis) dos três níveis de governo. Outra maneira de garantir o lucro desses grupos é, por exemplo, adquirir (sem qualquer tipo de licitação) milhares de exemplares de revistas e jornais. Repito: sem qualquer tipo de licitação. Isso acontece muito no estado de São Paulo (ver aqui).

A imprensa não quer concorrência

Além disso, rádios e TVs são premiados por subsídios estatais a cada eleição. A tal da propaganda eleitoral gratuita não é de graça. Veículos da imprensa podem deduzir do imposto de renda a maior parte do que determinada empresa de comunicação, talvez, iria receber caso o período no qual é veiculado o horário eleitoral fosse vendido para a propaganda nossa de cada dia. Em suma: esses veículos de comunicação, que são concessões públicas, ganham pra transmitir algo que deveriam fazer de graça. Os exemplos de como você, cidadão comum, ajuda na “saúde” financeira alheia são muitos. Mas esse não é o foco (ver aqui).

Segundo a revista Forbes, os herdeiros das Organizações Globo formam a família mais rica do Brasil. Outro herdeiro midiático, do Grupo Abril, também está nessa lista. Procurei muito, mas não encontrei os nomes de Pablo Capilé ou Bruno Torturra. Ah, sim… Eles têm o poder da invisibilidade ninja. Aqui vale uma explicação. A suposta capacidade ninja de se tornar invisível não era por meio de um pó mágico ou, sei lá, de um gás atordoante lançado contra os seus adversários. Os ninjas, do Japão feudal, portavam-se como inofensivos cidadãos comuns (para que não fossem notados pelos seus rivais e pudessem atacá-los de maneira furtiva). Assim como os representantes da Mídia Ninja costumam fazer hoje em dia: incorporando-se, como pessoas comuns, às manifestações. Os veículos de comunicação tradicional, que não são bobos, já estão se utilizando dessa estratégia para poder participar, com mais tranquilidade, de atos políticos do gênero (ver aqui).

Alguns dirão que a Mídia Ninja não traz nada de novo: seja no modelo econômico proposto ou na maneira (implicada) de atuar. Mesmo se essa análise estiver correta, posso garantir: a imprensa não quer nenhuma concorrência (mesmo que ela se dê nos seus próprios termos).

Provar que é inocente

Mas o que mais me chamou a atenção nesse caso foi a indecência de muitos dos discursos contrários ao FdE. Isso mesmo. Indecência. Primeiro: uma coisa é uma crítica. Outra, bem diferente, é uma denúncia (que traz o caráter de algo ilícito). Muitos fizeram essa confusão. Alguns de forma proposital. E isso é de uma desonestidade intelectual padrão Veja. É a boa e velha manipulação. Eu não a aceito. E acho que ninguém deveria aceitá-la (seja a pessoa a favor, contra ou não dê a mínima para o Fora do Eixo). Sobre esse ponto específico, recomendo a leitura do excelente texto de Francisco Bosco (ver aqui).

Segundo: para se fazer uma crítica honesta é necessário dizer, ainda que de forma rápida, quais são os potenciais conflitos de interesse envolvidos. É necessário lembrar ao receptor da mensagem o lugar do qual falamos. É preciso, em resumo, contextualizar. Lino Bocchini, por exemplo, em sua reportagem da revista CartaCapital, precisava ter dito aos seus leitores que teve (no passado) vínculos com o Fora do Eixo. E que ele, hoje, não parece ter relações lá muito amigáveis com os antigos parceiros. O jornalista teria dito, depois da publicação da reportagem, que todo mundo sabe disso. Bocchini deveria ter se recusado a escrever a matéria, como um juiz deve se dizer impedido de julgar uma causa na qual haja algum conflito de interesse. Mas ele não apenas não se recusou a participar da reportagem como omitiu ao leitor da CartaCapital (que não é obrigado a conhecer a sua vida pregressa) que teve vínculos com o Fora do Eixo e as ações desse grupo na área de comunicação (ver aqui).

Terceiro. Outro exemplo de indecência é de uma ex-integrante do Fora do Eixo que faz diversas acusações e diz: não sou eu que tenho que provar o que estou dizendo, mas eles que precisam provar que é mentira. O que é uma aberração moral e jurídica. Como se sabe, tradicionalmente o acusador tem o ônus da prova. Imagine o seguinte, caro leitor: alguém diz, publicamente, que você roubou algo (qualquer coisa). Diz que você é um ladrão da pior espécie, que deve ser preso etc. E, a partir daí, ao invés do acusador precisar provar (minimamente) o que diz, você é que precisa provar que é inocente de tais acusações. Percebem o absurdo? É impossível saber o número, mas, certamente, milhares estão presos em nossas cadeias simplesmente porque essa regra jurídica elementar foi ignorada. E aposto vinte centavos (que tenho sobrando no bolso) como essas pessoas são aquelas que estão na base da pirâmide social, e não na lista da Forbes.

Vírus ou o vetor da doença?

Todos nós, com exceção de alguns herdeiros ou de quem ainda não aderiu complemente ao cinismo, nos deparamos diariamente com algumas perguntas do tipo: como faço pra sobreviver com alguma dignidade sem, necessariamente, abandonar meus ideais? Como ganhar dinheiro sem romper completamente com os meus sonhos? O financiamento é sempre um problema. Muitos cobram transparência do FdE. Eu também. O que os integrantes do coletivo, aliás, admitem ser um problema e algo que deve ser aprimorado. Mas poucos gostam de admitir que a contradição a qual o Fora do Eixo está submetido é, muitas vezes, a mesma que a nossa (já que estamos todos inseridos, gostemos ou não disso, no sistema capitalista). Mas fazer isso exige uma autocrítica que é mesmo difícil. Exige franqueza e honestidade. Abandonar o ego e sair um pouquinho fora de si. Por exemplo: o jornalista Álvaro Pereira Júnior adora propor esse debate. O que eu acho muito bom. Mas ele nunca topa falar dos veículos de comunicação que pagam o seu salário (jornal Folha de S.Paulo e TV Globo). Veículos que, embora sorvam muito do nosso dinheiro, não se dignificam a nos prestar contas.

Álvaro Pereira Júnior não está disposto a um debate sério. Isso é evidente. Ou ele também citaria outros coletivos (além do FdE) e grupos econômicos realmente importantes quando fala em questões relativas ao dinheiro. Quem não está disposto a se indispor (um pouquinho que seja) com os grandes grupos econômicos de mídia (e de outras áreas), não está disposto, evidentemente, a arranhar o âmago da coisa. Mas eu não esperava nada diferente de Álvaro Pereira Júnior. Quem trabalha com a área cultural em nosso país e já participou (sendo premiado ou não) de algum edital sabe como a coisa é complicada. Os editais, tradicionalmente, não preveem um pro labore para o artista ou proponente do projeto. O pro labore é a remuneração da pessoa pelo seu trabalho. Ou seja: os editais públicos, geralmente, apenas levam em conta quanto o indivíduo irá gastar com material (e serviços variados) para efetivar um determinado projeto. O fato do proponente precisar comer, morar, tomar um banho de vez em quando, nada disso é levado em conta. A prestação de contas, portanto, estará sempre em descompasso com a realidade. O artista e/ou proponente da ação economiza em uma determinada área pra que o dinheiro possa render um pouco mais. Para que a pessoa possa, em suma, sobreviver.

A lógica da cultura financiada pelo poder público segue a mesma que aquela financiada pela poder privado: o importante é o resultado final do processo. O processo em si pouco importa. É necessário apresentar um produto, de preferência vendável, pra colocar em destaque nas futuras campanhas publicitárias. A iniciativa privada, aliás, gasta pouco dinheiro nessa área (sendo contemplada por isenções fiscais de vários tipos). Eu defendo que esse modelo deve ser alterado. Mas hoje, no entanto, ele tem permitido a sobrevivência de muitas ações importantes.

A condição precária dos músicos se agravou com o advento do FdE? Ou o Fora do Eixo simplesmente explicitou a fraqueza da área musical? O FdE é o vírus ou o mero vetor da doença? A condição dos jornalistas se tornará ainda pior com a ascensão da Mídia Ninja? Ela é realmente uma novidade para a área de comunicação? Quando representantes da mídia tradicional dizem rapidamente que não (e muitos disseram isso), deveríamos prestar mais atenção nesse fenômeno… O mundo brutal no qual esses e outros grupos estão inseridos não nasceu com eles. E não morrerá com a morte dos mesmos. Esse, pra mim, é um ponto fundamental.

Trabalho escravo

O FdE, a Mídia Ninja e outras organizações carregam a contradição de quem, de alguma maneira, tenta fazer algo diferente do que o atual modelo político/econômico preconiza. Ou, talvez, tente se utilizar do sistema para alterá-lo. Ou apenas se utilizar do sistema para alcançar os seus fins. O que, talvez, no entanto, só faça o sistema encontrar um novo caminho de expropriação e dominação alheia. Atuar dentro do sistema (e não estar totalmente apartado): essa é a fonte do poder e, talvez, da ruína dos grupos citados. Mas pra quem gastou tanta energia com o FdE e a Mídia Ninja nos últimos dias pela internet, sugiro que tente construir algo diferente do que esses grupos defendem ou oferecem na prática. Não que eu o faça. Mas também não julgo tão precoce e levianamente os mesmos (sobretudo diante de uma unanimidade tão grande da imprensa que no início de junho de 2013 e, obviamente, antes disso clamava para que a polícia destruísse uma nascente rebelião popular).

A Mídia Ninja e o Fora do Eixo, para quem não se lembra, seja por quais forem os motivos, estavam (desde o início) do lado dos manifestantes. Eu me lembro dos meus inimigos. Nunca irei esquecer, por exemplo, os editoriais dos jornais Folha e Estado que, em 13 de junho, pediam que a polícia erradicasse da face da Terra os baderneiros de então. Lembro dos meus inimigos, mas lembro ainda mais dos meus aliados. Até porque eles não são muitos…

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P.S.: Para quem afirma que o Fora do Eixo usa trabalho escravo, sugiro que faça a denúncia urgentemente. Dessa forma, os jovens que estão sendo escravizados no momento em que escrevo essas palavras poderão ser libertados o quanto antes. Clicando aqui, a pessoa pode denunciar o fato ao Ministério Público do Trabalho (que irá investigar o caso por meio da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo). A denúncia pode ser feita pela própria internet.

A pessoa interessada em fazer a denúncia também pode ligar para a Procuradoria Regional do Trabalho do seu estado (ver aqui).

Se a pessoa, todavia, está falando bobagem, como parece ser a maioria dos casos, peço que cale a boca de lodo. Pois trabalho escravo é um tema muito sério para ser tratado de forma irresponsável. Quem escraviza pessoas em nosso país, deve estar muito feliz com o fato do foco, agora, estar em outro eixo.

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Léo Nogueira é escritor, jornalista e servidor público (concursado) da Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo