Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A autocrítica como autodefesa

Não, não foi um delírio, nem obra de algum hacker brincalhão. No fim da tarde de 31/8, em sua página na internet, O Globo anunciava o lançamento de seu Projeto Memória e destacava: “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”. Uma autocrítica inédita, previsivelmente louvada com as palavras protocolares de praxe pelos políticos e demais fontes chamadas a se pronunciar para “repercutir” a notícia, que ocupou página inteira na edição dominical (1/9) impressa.

O gesto, entretanto, está muito longe da nobreza pretendida. A começar pelo próprio texto de apresentação, que abre com um dos slogans mais enfáticos nas manifestações dos últimos meses: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. O redator assume a dureza dessa verdade, mas argumenta que, “há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro”. Não justifica o motivo para tanta demora em expor esse reconhecimento, uma lerdeza incompatível com a agilidade requerida para a atividade jornalística: afirma apenas que o lançamento do “Memória O Globo” – um projeto dedicado a “resgatar e preservar a história do jornal” – seria uma boa oportunidade para “tornar pública essa avaliação interna”. A coincidência com o recrudescimento das críticas à empresa seria apenas isso: uma coincidência, aliás muito bem-vinda, uma resposta ao “clamor das ruas”.

O texto que se segue é desses exemplos de contorcionismo verbal que fazem a alegria dos linguistas e dos que se divertem com as agressões à lógica. O apoio ao golpe se justificaria em nome da democracia – afinal, no contexto internacional da Guerra Fria, estávamos diante da ameaça de radicalização à esquerda do governo constitucional de João Goulart, que resultaria numa ditadura proletária; para prevenir esse perigo iminente, os militares intervieram, prometendo eleições para muito breve – e os inúmeros exemplos dessa História sempre citada não foram suficientes para levantar suspeitas sobre a distância entre as intenções declaradas e a prática da repressão crescente para a consolidação dos golpistas no poder; o apoio do jornal – e das Organizações Globo, de modo geral – permaneceu até o fim do regime, embora sempre com o alerta sobre a necessidade do retorno, “no menor prazo possível”, à “normalidade democrática”. Finalmente, “os homens e as instituições que viveram 1964 são, há muito, História”; porém, agora, à luz dessa mesma História, é forçoso reconhecer que o apoio ao golpe foi um erro.

O recurso à História, nesses termos, já virou um clichê para quem se vale de alusões pretensamente sofisticadas para não dizer nada: a História aparece então como um álibi indiscutível, porque não se pode mudar o que aconteceu. E, como tudo o que aconteceu foi feito com a melhor das intenções, estamos todos absolvidos. Sigamos em frente, com a consciência tranquila, na certeza de que sempre será possível nova autocrítica daqui a algumas décadas, sem que nossas ações cotidianas sejam objeto de questionamento no calor da hora – porque, à luz do momento, é o que nos parece adequado fazer.

Envergonhado, vergonhoso

De fato, O Globo – porque “a Globo” ainda não existia – apoiou a ditadura como todos os outros jornais, à exceção da Ultima Hora, que era legalista e foi empastelada. Uma significativa parcela da população também apoiou o golpe, marchando com a família e acendendo velas na janela para espantar o fantasma do comunismo, e surfou alegremente a onda do milagre econômico e sua promessa do Fusquinha na garagem.

O que distingue as Organizações Globo de seus concorrentes é sua perseverança no apoio ao regime, até o último minuto, ignorando o “clamor das ruas” a que “governos e instituições têm, de alguma forma, que responder”: a surdez diante da monumental campanha pelas eleições diretas – aliás, mais um “erro” que o jornal vem, tardiamente, reconhecer – é talvez o melhor exemplo desse descompasso intencional.

Aliás, é interessante ler o editorial citado nessa autocrítica, no qual Roberto Marinho faz o seu “julgamento da revolução”, vinte anos depois (em 7/10/1984, ver aqui): era, na verdade, um recado à linha dura recalcitrante, às vésperas da sucessão presidencial, já enterrada a hipótese de eleição direta. O “julgamento” é absolutamente favorável aos governos militares e em momento algum se menciona a palavra “tortura”.

O mea-culpaé envergonhado porque pisa em ovos e busca estabelecer para o jornal uma trajetória coerente com os princípios democráticos, mesmo quando esses princípios foram agredidos violentamente desde que os tanques impuseram o regime de exceção. E é vergonhoso porque omite os interesses das Organizações Globo nessa festejada nova ordem, expressos nos acordos que garantiram a formação do atual império de comunicações, e para os quais, por todos, o livro A história secreta da Rede Globo, de Daniel Herz, oferece sólida documentação.

De passagem, o texto menciona o empenho de Roberto Marinho contra a perseguição a jornalistas de esquerda, vários dos quais trabalhavam em suas empresas durante a ditadura. É verdade, mas faltou dizer como alguns desses jornalistas atuavam: em cargos de chefia, sabiam as regras do jogo e estavam, melhor que ninguém, alertas para as táticas que seus parceiros de ideologia pudessem utilizar para driblar a censura. Perfeitos cães de guarda, não dos interesses da sociedade – como querem os liberais da teoria do jornalismo –, mas do patrão.

Recontando a história

O tom dessa autocrítica equivale ao dos demais textos incluídos na seção “erros e acusações falsas”, nos quais o jornal ora se exime de responsabilidade sobre denúncias contra si – como a do caso Proconsult, a acusação de tentativa de fraude contra a eleição de Leonel Brizola para o governo do Rio de Janeiro, em 1982, e a da participação do BNDES na renegociação das dívidas da Globopar, em 2005 –, ora tenta justificar seus “erros” em momentos cruciais na história recente do país, como na campanha das Diretas, em 1984, e no próprio apoio ao golpe que resultou na longa ditadura.

Salvo nesse último caso, que constitui a novidade do momento, trata-se de textos semelhantes aos publicados no site Memória Globo, que a Rede Globo lançou em 2008 como parte de um projeto para contar sua trajetória, desenvolvido desde 1999.

Diferentemente do que ocorre com O Globo, que reproduz as páginas do jornal – embora sempre seja possível excluir desse arquivo a edição de segundos e terceiros clichês, eventualmente muito reveladores –, sobre o material televisivo nunca será possível ter certeza se os trechos disponibilizados são de reportagens que efetivamente foram ao ar ou de cenas gravadas mas não editadas. Eugênio Bucci, a propósito, mencionava esse risco num de seus artigos no livro Videologias, há quase dez anos.

As desculpas no caso das Diretas

Ainda assim, é interessante visitar o site da Rede Globo para verificar o que se diz a respeito do “erro” na cobertura das Diretas, um movimento que começou com manifestações de pequeno porte. Naquele momento – e a frase é autoexplicativa quanto às intenções de controlar os fatos –, “o presidente das Organizações Globo temia que uma ampla cobertura da televisão pudesse se tornar fator de inquietação nacional”. Esse controle se manteve até o fim, mesmo diante da magnitude dos comícios, a começar pelo primeiro grande evento da campanha, em 25 de janeiro de 1984, na Praça da Sé, finalmente veiculado em rede nacional.

Candidamente, o texto desse mea-culpa também envergonhado diz que “a Globo sofreu a acusação de mentir ao telespectador dizendo que o comício era apenas uma festa em comemoração aos 430 anos da cidade de São Paulo”, e aponta a origem do que chama de “confusão”: a chamada da matéria, que “parecia” – só parecia – “não levar em consideração a dimensão política do evento”, ao anunciar: “Festa em São Paulo. A cidade comemorou seus 430 anos com mais de 500 solenidades. A maior foi um comício na Praça da Sé”. Mas, “em seguida, a reportagem de Ernesto Paglia relatou com todas as letras o seu objetivo: pedir eleições diretas para presidente da República”.

A reprodução do vídeo mostra que a frase de fato está lá, porém perdida no meio de uma série de informações irrelevantes. O próprio depoimento do repórter, disponível ao pé da página, informa sobre os cuidados para mencionar o objetivo daquela “festa”: não só a prudência em relação ao controle exercido pela direção da empresa, mas também a necessidade de se resguardar da fúria da população que atacava quem estivesse identificado com a Globo. Por isso, Paglia teve de se instalar no vigésimo andar de um prédio, “bem distante daquela turba enfurecida”, com uma lente que havia sido trazida do Rio para São Paulo, uma “lente brutal, de mil milímetros – ou seja, um metro de lente, com uma zoom movida a manivela (…), uns três ou quatro operadores para a mesma máquina”. E deixa claro que começou a reportagem com uma série de banalidades para finalmente falar nas diretas.

Isto é memória, para quem foi testemunha ocular da história ou para quem se dispuser a pesquisar. Para os demais, a história pode ser outra. Recentemente, a GloboNews veiculou uma reportagem especial sobre manifestações populares, na onda dos protestos que tomaram as ruas desde junho deste ano. E, no capítulo das Diretas, lá estava Ernesto Paglia com a frase isolada, sobre a imagem da multidão na Sé: “Milhares de pessoas vieram para o centro de são Paulo para, na Praça da Sé, se reunir num comício que pediu eleições diretas para presidente”.

Quem vê isso assim, e não viveu ou não sabe da história, pode até achar que a Globo cobriu o comício como deveria. E é assim que se recontam os fatos, atualizando a memória de modo que o passado se ajuste às conveniências do momento.

“Você me desobedeceu”

Também vale a pena visitar o site para verificar a versão oficial sobre o caso Proconsult, em que a empresa rejeita as acusações de cumplicidade no denunciado esquema de fraude na totalização dos votos e admite apenas um “erro” de estratégia, que submeteu a TV ao ritmo muito mais lento do jornal impresso e privilegiou uma contabilidade minuciosa da votação para todos os cargos eletivos, e não para o que seria jornalisticamente mais importante – a eleição majoritária, para governador, centro de toda a excitação popular –, o que tornava absurdamente morosa a divulgação dos resultados parciais e favorecia o tal clima de inquietação que a própria Globo, como se viu, dizia querer evitar.

Quem quiser acreditar nessa versão pode ficar à vontade. Mas há inúmeros outros depoimentos que a contestam. Um deles, o do jornalista Luis Carlos Cabral, editor regional de jornalismo da Globo em 1982, que anos depois deu seu testemunho ao semanário O Nacional, já extinto:

“Vamos contar essa história de uma vez por todas. O papel da Rede Globo de Televisão no caso Proconsult, nas eleições de 82, era apenas o de preparar a opinião pública para o que ia acontecer: o roubo, por Moreira Franco, dos votos de Leonel Brizola. Aliás, dos votos do povo”.

Em seguida, apresenta os bastidores:

“Era lá [na sala de computação de O Globo] que as distorções aconteciam. O método correto de se computar as eleições do Rio é o seguinte: injetam-se dois votos da capital, um voto do interior e um voto da periferia. [Porém] Injetavam-se, digamos, dois votos do interior, onde Moreira tinha sabida maioria, nenhum voto da Baixada e um da capital”.

A desculpa oficial da empresa era de que havia problemas estruturais:

“O sistema havia sido mal montado. Tratava-se, enfim, de uma questão de incompetência. A desculpa é, logo se verá, esfarrapada. Se há alguma coisa competente no Brasil, esta é, reconheça-se, O Globo e a TV Globo. Roberto Marinho sabe fazer o que quer”.

Luis Carlos prossegue relatando as denúncias de fraude, como o roubo de urnas, que não puderam ir ao ar por ordens superiores, e o clima de revolta popular contra os jornalistas da Globo, diante da expectativa da vitória de Brizola e da discrepância entre os números apresentados pela emissora e os veiculados pelo Jornal do Brasil (o impresso e a rádio). Finalmente, o jornalista recebeu a autorização de um dos filhos de Roberto Marinho para injetar os votos em projeção correta.

Então o telefone tocou. Era a voz cavernosa do chefe:

“Você me desobedeceu. Eu disse que não era para projetar e você passou o dia inteiro projetando, dizendo que o Brizola vai ganhar. Você me desobedeceu”.

Não havia desobedecido, apenas a contraordem não lhe havia sido transmitida.

A disputa pela memória

O relato está reproduzido no livro Jornalistas pra quê?, que o Sindicato dos Jornalistas do Rio publicou em 1989. Seria muito oportuna a reedição dessa obra, que expõe uma série de casos de falta de ética e, em relação às Organizações Globo, cita um episódio muito revelador da maneira pela qual Roberto Marinho usava o poder, ainda que eventualmente não lograsse êxito: a tentativa de demitir o então ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, em agosto de 1989, ditando ao telefone uma nota que citava inexistentes “fontes de Brasília” sobre a iminência da perda do cargo. Foi um golpe fracassado, motivado, depois se soube, pela oposição do ministro a interesses da Globo na área da telefonia móvel.

O mea-culpa relativo ao apoio ao golpe de 1964 está nesse contexto em que as Organizações Globo procuram estabelecer sua própria história. É um direito que lhes assiste e é uma iniciativa de alta relevância como fonte de análise.

Mas há dois complicadores nesse processo. O primeiro é que projetos de “memória” trazem embutidos um sentido de referencialidade enganador, porque a memória é sempre seletiva. O segundo é que a Globo, pretensamente “o” lugar de encontro de todos os brasileiros – “a gente se vê por aqui” –, é uma referência para o público. Fala direto a ele e reconta a própria história diariamente.

Outras versões estão disponíveis. Mas quem sabe disso?

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)