Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A tardia retratação de ‘O Globo’

O Brasil é um país insólito, dadas as reiteradas facetas que preenchem inúmeras páginas de nossa história. Ainda assim, surgem fatos capazes de gerar assombro. O mais recente deles proveio das Organizações Globo.

Em nota postada pela empresa, e reproduzida em vários portais de notícia, dentre os quais a UOL, na noite de sábado (31/8), constava a seguinte “chamada”: “Apoio editorial ao golpe militar de 64 foi um erro, admite Globo”. Obviamente, a matéria atraiu meu imediato interesse… Afinal, ainda, consigo espantar-me. Cliquei para abrir a matéria. Eis que a página virtual exibia o texto abaixo:

Em texto publicado no site do jornal O Globo no final da tarde deste sábado (31), as Organizações Globo afirmam que o apoio editorial do veículo ao golpe militar de 1964 foi “um erro”. “Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da história, esse apoio foi um erro”, diz a nota.

De acordo com o texto, os protestos de junho deram à Globo “ainda mais certeza de que a avaliação era correta e o reconhecimento do erro, necessário”.

“Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: ‘A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura’. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura”, diz o primeiro parágrafo da nota. “A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como refutá-la. É história.”

A nota “fala” por si. O transcorrer da matéria, também, aludia ao fato de, há muitos anos, em discussões internas na Organização, ter havido essa avaliação. Sim, a pergunta que não quer calar é: por que, então, há muitos anos, as Organizações Globo não se retrataram publicamente?

Nobre papel

A explicação para a pergunta acima não é de difícil dedução: na sexta-feira (30/8), as paredes da empresa, em São Paulo, foram cobertas por esterco, ato praticado por manifestantes. Foi esse episódio que resultou na “retratação”. Pior a emenda que o soneto. O que a nota divulgada pelas Organizações Globo traduz é, simplesmente, uma atitude de covardia frente ao quadro de repúdio reinante em inúmeras cidades do país.

As Organizações Globo liberam, agora, o reconhecimento por um erro histórico, 49 anos após o fato, em razão do quê? A conclusão é simples: o que gerou a nota de “retratação” não foi a consciência, mas a fedentina do esterco espalhado nos muros de sua sede paulista. O impacto do fato silencia o efeito da nota. O modo escolhido pela empresa não resolve o erro histórico.

As Organizações Globo poderão promover a reconciliação necessária quanto ao “erro” no passado se demonstrar, no presente e no futuro, uma oferta de efetiva qualidade cultural, o que não tem dado, seja na modalidade impressa, seja (pior ainda) na versão eletrônica. Para ser justo, amplio o leque para outras empresas de comunicação do país. Não sei se haverá tanto esterco para todas.

Sim, o Brasil (cujo significado da palavra é “brasa pequena”) mergulhado em graves questões estruturais – ampliação de redes de energia, deficiência em receptação portuária, em escoamento da produção – corre o sério risco de, apesar de grandioso, permanecer pequeno aos olhos do restante do mundo. Que a mídia, se realmente quiser cumprir o papel nobre que lhe cabe, inicie o ato de transformação, pois esse não virá pelas hostes da política formal.

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Ivo Lucchesi é ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA ((RJ)