Esta senhora que aniversaria hoje, a televisão brasileira, chega aos 63 anos com a saúde abalada, o corpo já flácido e o rosto abatido. Está longe de sua infância irrequieta na década de 50, sua juventude intensa nos anos 60 e seu esplendor balzaquiano, nos 70. Já não vive mais a maturidade abastada do período posterior. Mas ainda está viva e tudo indica que terá longevidade, por um tempo ainda imponderável, o que é uma proeza nessa era de explosão de mídias, volatilidade das tecnologias e mutação acelerada do ambiente informativo.
Muita coisa mudou em seis décadas de televisão no Brasil, mas sobretudo o poder de sedução do veículo. Ele demorou para se popularizar de fato, em razão do alto custo dos aparelhos e das dificuldades de crédito aos consumidores. Levou quase 20 anos para atingir as favelas, as periferias e as comunidades do interior, mas foi sempre um sonho de consumo para qualquer despossuído e um sinal de status para quem conseguia adquirir seu aparelho. Vide ainda agora as telas planas de LED, “Full HD”, com mais de 40 polegadas.
Os primeiríssimos telespectadores eram paparicados pelos “televizinhos” e tinham de fazer espaço na sala para acomodá-los. Assistir TV, por muito tempo, foi uma experiência coletiva, familiar e de vizinhança. Só dos anos 80 em diante é que a televisão se universalizou nos lares e multiplicou-se neles, deixando a sala de estar para ganhar espaço no quarto do casal e de cada filho. Virou consumo quase solitário.
A programação evoluiu do “gosto de rico” ao sabor popular mais rapidamente. Se nos primeiros anos a TV oferecia ópera, música de concerto, teatro clássico e de vanguarda, junto com shows de auditório, programas de humor e noticiários herdados do rádio (“Esta é Sua Vida”, “Buzina do Chacrinha”, “A Praça é Nossa”, “Repórter Esso”, etc), já na segunda década deixou os produtos cult de lado e enveredou firmemente pela telenovela.
Desde 1963, com a estréia de “2-5499 Ocupado”, com Glória Menezes e Tarcísio Meira, na TV Excelsior, a novela diária é o produto mais importante da nossa TV. Exibida em várias faixas horárias, ao longo de toda a semana, ela estrutura a grade de programação. Captura e fideliza o telespectador de uma forma que nenhum outro gênero televisivo consegue – salvo, talvez, o “Big Brother Brasil”, que não deixa de ser também um melodrama diário. Mesmo as emissoras que não produzem novelas organizam a sua grade em função das concorrentes – portanto, também se pautam pela rainha da nossa teledramaturgia.
Sucessivas mudanças políticas, estéticas e tecnológicas não abalaram esse protagonismo da telenovela, na TV do Brasil. Ela avançou a tal ponto que fez do nosso país uma referência mundial na modalidade, o melhor produtor do gênero, mais bem sucedido – artística e comercialmente – que mexicanos, argentinos e venezuelanos, nossos concorrentes diretos. Toda hora tentam passar o atestado de óbito da telenovela, mas de repente surge uma “Avenida Brasil” e o país inteiro fica de olho grudado nela.
De qualquer forma, o peso da telenovela e de toda a programação da TV é bem outro, nesta segunda década do século 21, em relação ao que teve na segunda metade do século 20. Uma emissora como a Globo, que detinha mais de 50% de audiência em todos os programas, pena hoje para atingir 20%, em muitos horários. Vai longe o dia do encerramento de uma novela como “O Astro”, que foi assistida em inacreditáveis 99% dos televisores ligados. Produções atuais, quando se mantêm em torno de 35%, já são consideradas grandes sucessos. Isso na emissora-líder, bem entendido, porque nas menores esses índices quase sempre foram apenas sonho.
Companhia diária
A sangria de público tem várias explicações, que começaram no lançamento do videocassette doméstico, em 1982, e prosseguiram com outras traquitanas que fazem o público esquecer da TV sem abandonar a tela: os videogames, os computadores pessoais, os celulares e os tablets. Em todos esses dispositivos, há muito mais imagem disponível e acessível do que pode oferecer uma estação de TV, com suas “míseras” 168 horas de programação semanal, ou 24 horas/dia, sete dias por semana.
Mas o problema da televisão não vem propriamente da oferta de conteúdo, que é imenso, consideradas as centenas de canais disponíveis, de sinal aberto ou na TV por assinatura. A sua grande limitação – e agonia atual – é que a programação é linear, isto é, sucede-se ordenadamente, hora após hora, dia após dia, obrigando o espectador a esperar o programa passar para poder assistí-lo.
Já na internet, qualquer hora é hora de assistir qualquer coisa. Basta encontrar o programa desejado e baixar, ou simplesmente rodar direto no site onde está. O público é o seu próprio programador de TV. Dispensa canais.
Esta é a “enfermidade” de que padece a nossa provecta senhora, agora aos 63 anos. Seu organismo é atacado por vírus impiedosos, chamados YouTube, Vimeo, Now, Netflix, TViG. Sua mais poderosa vitamina – as receitas publicitárias polpudas – vai perdendo eficácia ano a ano, porque migra para outras mídias e míngua no seu caixa. Sua voz altissonante, capaz de ditar modas e preferências, e de dirigir os rumos da República, agora é ouvida por muito menos gente e influi cada vez menos.
É difícil prever se a TV brasileira persistirá no cenário midiático como sucedeu com o rádio, que deixou o topo do pódio da indústria da comunicação nos anos 50 para sobreviver mal e mal nos automóveis. Talvez o seu futuro seja o da fragmentação, o de muitas emissoras atendendo a segmentos e interesses específicos do público, sem mais repetir-se a era dourada das enormes audiências.
Mas a Seleção Brasileira sempre pode chegar a uma final de Copa do Mundo e uns terroristas malucos podem jogar aviões em torres cheias de gente. Aí todo mundo vai correr mesmo é para a frente de um televisor. Velha ou não, alquebrada ou não, a nossa TV estará lá, cumprindo o seu dever de dar o testemunho do presente e de fazer companhia diária, ininterrupta, a quase 100% dos brasileiros.
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Gabriel Priolli é jornalista e produtor de televisão