Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os abusos do Estado e o elogio da destruição

“Eram cinco jovens que estavam todos na idade difícil, entre vinte e vinte e quatro anos; o futuro que tinham pela frente era turvo como um deserto repleto de miragens, armadilhas e vastas solidões.”

Jorge Semprún escolheu este trecho de La Conspiration, de Paul Nizan, para a epígrafe de abertura de um de seus romances, Netchaiev está de volta, no qual realiza uma densa reflexão sobre os métodos violentos adotados por grupos de esquerda entre as décadas de 1960 e 1980. O título é uma alusão ao famoso niilista russo que inspirou Dostoievski em Os Demônios, líder de uma organização clandestina que atuava segundo esses mesmos métodos na Rússia czarista de meados do século 19.

Os rostos que se sucedem em close no vídeo do Comitê pelos Direitos Fundamentais e Livre Manifestação (ver aqui) são mais jovens ainda. Alguns exibem espinhas típicas da adolescência. Os que se apresentam como “militantes ativistas” – as vozes são sempre em off – denunciam ameaças de milicianos e ofertas de “proteção” de traficantes. Os que se identificam como administradores da página do Black Bloc na internet afirmam que tiveram seus direitos violados quando foram presos em casa, às vésperas das manifestações do Sete de Setembro – segundo o noticiário, os policiais tinham apenas mandado de busca e apreensão, não de prisão. Abrindo e fechando o vídeo, que aponta mais de 500 pessoas detidas arbitrariamente em protestos desde junho deste ano, o sociólogo Luiz Eduardo Soares se diz “muito, muito preocupado com as violações aos direitos fundamentais” e afirma que “o que está em jogo é a democracia no Brasil”, ameaçada “não por uma ou outra vitrine quebrada, mas pelo desrespeito à Constituição”.

Se não há dúvida de que a questão fundamental é a defesa do Estado de direito, e consequentemente o combate a toda forma de arbítrio, por que essa causa não comove a opinião pública?

Rejeição à violência

Talvez porque esse público perceba e rejeite a gratuidade da violência que esse grupo adota como método. A reação de moradores do bairro de Laranjeiras, no Rio, onde os Black Blocs deixaram repetidamente seu rastro de depredação nas últimas semanas, foi muito significativa: “Atira! Atira!”, gritavam, da janela dos prédios, incentivando a PM a reprimir a ação dos mascarados na noite de 7 de setembro, como registrou a reportagem do Globo (9/9).

O Observatório na TV de terça-feira (17/9) foi dedicado ao tema dos Black Blocs e começava indagando por que as manifestações já não reúnem multidões e, salvo em casos específicos como o dos professores em greve, praticamente se resumem a essas dezenas de jovens cobertos de preto. Um dos motivos, certamente, é que não é possível manifestar-se todos os dias – a maioria das pessoas, mesmo a contragosto, tem de cuidar de sua rotina –, mas a repetição das cenas de destruição é sem dúvida um fator decisivo para afastar quem discorda desses métodos e teme pelas consequências. Não só no Brasil: a crítica aos Black Blocs foi intensa nos Estados Unidos já no ano passado e houve quem os chamasse de “câncer do Occupy” (ver aqui), acusando-os de esvaziar aquele movimento pacífico de protesto.

Em seu depoimento para o programa de TV do Observatório, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) repetiu o discurso de tantos políticos e intelectuais de esquerda, que não ousam criticar o grupo porque a crítica é automaticamente rebatida e condenada como uma forma de “criminalização dos movimentos sociais”. Então, saem pela tangente: “O mais importante, nesse momento, é tentar entender” esses jovens rebeldes.

Esquivando-se da crítica

Tamanha disposição deveria ser estendida a todas as demais manifestações do contraditório comportamento humano – e fiquemos apenas nos casos de desvio, não nos de adesão à norma, que talvez nos devessem surpreender ainda mais: assim os traficantes, os assaltantes, os membros de torcidas organizadas que volta e meia apedrejam ônibus de times e torcedores rivais e se envolvem em conflitos às vezes fatais, mas também os policiais encarregados de manter a ordem, todos esses deveriam ser objeto de nossa tentativa de entendimento.

No entanto, quando um grupo de jovens da Cidade de Deus saiu por uma avenida da Barra da Tijuca depredando e saqueando uma concessionária de veículos, há três meses, no auge das manifestações de massa, a reação mais comum nas mídias sociais foi o apelo à repressão, resumida na expressão “pau neles”.

Se a fúria predatória fosse fruto da legítima indignação do povo pobre, a passeata de moradores da Rocinha ao Leblon, dias depois – e antes do sumiço do Amarildo, o auxiliar de pedreiro que se tornou símbolo dos protestos contra a violência policial – teria resultado num monumental quebra-quebra. E foi perfeitamente pacífica, para a surpresa de muita gente.

Assim é que esse discurso enviesado sobre a necessidade de “tentar entender” leva a uma paralisia que deixa correr solta uma violência despropositada contra supostos símbolos do capital, alegadamente em resposta à truculência da repressão: então esses jovens saem quebrando vidraças, abrigos de ônibus, placas de rua, ateando fogo ao lixo que espalham pela rua. Fabricam imagens espetaculares, e mesmo assim há quem condene a mídia por exibi-las e destacá-las; ora, é claro que elas se sobrepõem às demandas da maioria pacífica – ou melhor, se sobrepunham, no tempo em que a multidão lotava as ruas, pois são mais exuberantes do que cartazes e palavras de ordem. São a expressão da estetização da violência que esse grupo enaltece.

Fanatismo

No Catecismo do Revolucionário, Netchaiev afirma: “Nossa causa é a destruição terrível, implacável, completa e geral”. Semprún se refere ao documento algumas vezes em seu romance: o revolucionário é aquele que sacrifica sua vida em nome da revolução, por isso não tem interesses próprios, nem causa pessoal, sentimentos, hábitos ou bens. Não tem nem mesmo um nome. Despreza a opinião pública. Despreza e odeia a moral social de hoje: para ele, é moral tudo o que permite o triunfo da revolução; tudo o que o entrava é imoral – o que é outro modo de repetir a máxima sobre a submissão dos meios aos fins. Por isso não deve esperar para si mesmo nenhuma piedade: todo dia deve estar pronto para morrer.

No posfácio a Os Demônios, o tradutor, Paulo Bezerra, ressalta a capacidade de Dostoievski mostrar em seu romance “como ideias grandiosas e generosas, uma vez manipuladas por indivíduos sem consistência cultural nem princípios éticos, podem se transformar na sua negação imediata, assim como a utopia da liberdade, da igualdade e da felicidade do homem pode degenerar na sua negação, no horror, na morte, na destruição”.

Pois o Catecismo não define propriamente um revolucionário, mas um fanático.

Ideias confusas

Netchaiev, pelo menos, falava claro. Entre os Black Blocs, aparentemente, tudo é muito confuso: não são um grupo, mas uma tática; não têm líderes, mas redigem “comunicados oficiais”; qualquer um pode participar, mas ninguém se conhece, o que deixa o caminho livre para infiltrados e inviabiliza o controle sobre as ações. A propósito, o “comunicado oficial” publicado em 26/8 na página do grupo no Facebook deplorava o comportamento de “pseudoativistas que dizem utilizar a tática Black Bloc” e fazem ações “patéticas” como posar para fotos após derrubarem banheiros químicos e destruírem placas de trânsito. Como estavam todos mascarados, ninguém podia se identificar, então ficou fácil jogar a culpa nesse “outro” anônimo, diante da rejeição pública.

Mas parece que o manifesto não surtiu efeito, tendo em vista a continuação dessas ações predatórias nas semanas seguintes.

Na mesma página, os Black Blocs divulgaram um vídeo de quase uma hora com o depoimento de um de seus membros recém-saído da prisão. O despreparo é constrangedor: o rapaz mal consegue completar uma frase inteira, quanto mais expor alguma ideia com clareza, apesar dos esforços do seu “entrevistador”.

Os “militantes ativistas” de espinhas no rosto deviam refletir melhor para saber em que canoa estão embarcando.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)