A versão mais pessimista entre os quatro cenários considerados possíveis para o aquecimento global com mudanças climáticas, preparados pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPPC), órgão das Nações Unidas (ONU), prevê que a temperatura média da Terra pode elevar-se em quase 5º C (4,8º C) até 2100 (ver aqui, em inglês).
É uma situação catastrófica e inédita na história da civilização, ainda que a maior parte das pessoas possa não se dar conta disso levando em conta a variação térmica de um único dia, que pode iniciar-se, digamos, com 16º C e atingir 36º C ou mais, antes de voltar a cair.
A diferença, aqui, está na expressão “temperatura média”, o que significa dizer que as temperaturas diárias globais serão significativamente elevadas e nos levam, a cada dia, para uma situação de completa insustentabilidade em escala planetária.
De um ponto de vista local, o pior cenário sugere que poderá haver tanto aquecimento insuportável quanto frio intenso, resultados de alterações no regime de ventos e correntes marinhas e, em muitos casos, custará a vida de pessoas e animais, sem incluir impactos agrícolas, com o comprometimento de safras.
Mas o que isso tem a ver com jornalismo, foco deste Observatório da Imprensa? Tem, em linguagem mais coloquial, tudo a ver, e ao longo deste texto vamos demonstrar essa relação. Antes disso, certamente vale a pena advertir que os dados que começaram a ser divulgados na sexta-feira (27/9) em Estocolmo, na Suécia (parte do quinto painel e que serão liberados até outubro de 2014), são conservadores, no sentido de já estarem desatualizados.
Um estudo publicado em novembro passado, e não incluído neste quinto painel, por exemplo, mostra que o permafrost do Ártico (terras congeladas) está se descongelamento mais rapidamente que o previsto e esse processo injetará um volume adicional de gases de efeito estufa na atmosfera, o que deve acelerar as mudanças em curso.
Camadas de gelos polares, no Ártico e na Antártida, também estão se desfazendo em ritmo mais acelerado do que o estimado antes, contribuindo para a elevação dos níveis oceânicos em todo mundo por aumentar o volume de água retirada dos continentes, despejada nos oceanos globais. Sem levar em conta a expansão térmica da água, provocada justamente pelo calor que tende (até que ponto?) ser absorvido pelos oceanos.
O grande desconhecido
Qual exatamente o impacto desse efeito?
A resposta é simplesmente um “não sabemos” e isso por um conjunto de razões que vão da complexidade intrínseca da climatologia à impossibilidade de se predizer como os oceanos vão reagir à essa nova injeção de agentes do efeito estufa.
Em julho deste ano, Kerry Emmanuel, do Massachusetts Institute of Technology (referências da edição de novembro da Scientific American Brasil, neste momento em fase de edição), atualizou modelos computacionais utilizados pelo IPCC com dados mais precisos sobre ciclones. Com isso demonstra que ainda durante a vigência do relatório que começou a ser divulgado tempestades poderosas, e por isso mesmo destruidoras, devem aumentar não apenas em intensidade, mas também em frequência em todo o mundo.
O que, em síntese, um quadro como este sugere? Que o IPCC deve alterar imediatamente sua forma de produzir e liberar dados, de forma que a opinião pública internacional, melhor e mais rapidamente informada, pressione seus governos a adotar políticas restritivas às emissões de gases de efeito estufa.
De imediato, essa é a única alternativa ao alcance das mãos da sociedade humana. E o resultado desse esforço deve convergir para próxima conferência das partes, que reúne 195 países, marcada para 2015, em Paris, numa tentativa de limitar o aquecimento a 2º C.
E aqui entra o papel da imprensa.
A mídia deve sensibilizar para cumprir o papel que lhe é devido, avaliando com mínimo de lucidez conteúdos relevantes e separando-os do que simplesmente é destituído de importância, num processo amplo de equipar comunidades nacionais para uma tarefa que até recentemente parecia impensável, por semelhar cenário da pura ficção: inibir o descontrole climático da Terra, nossa morada cósmica.
As vozes cínicas de sempre, comprometidas com a memória e não com a inteligência, pautadas pelo ego e não pela ética (e estética), certamente esboçarão sorrisos irônicos típicos, de comportamento acovardado. Dirão que não está devidamente demonstrado que o aquecimento global com mudanças climáticas é devido a ações antrópicas (deflagrado por humanos).
O mito do aquecimento natural
Argumentarão, como têm feito nos últimos tempos, que mudanças naturais, entre elas devido à variação da radiação solar, alterações orbitais de longos períodos da Terra e mesmo a travessia de nuvens galácticas mais densas, de gás e poeira, no deslocamento do Sistema Solar em direção à constelação do Hércules (ápex solar), justificam essas alterações.
O clima, de fato, é extremamente dinâmico e temperaturas globais médias mais elevadas foram registradas, por exemplo, durante o longo reinado dos dinossauros, algo entre 200 milhões e 65 milhões de anos atrás. Ocorre que essas mudanças foram lentas, com tempo para que as espécies se adaptassem (ainda que a extinção seja igualmente dinâmica), o que não ocorre neste momento.
E, de certa forma, o mais importante. Esse passado remoto não incluiu uma civilização como a atual. Os humanos sabem das ocorrências passadas por marcas deixadas por esses processos naturais em rochas e gelos polares, mas não estavam lá para presenciar essas cenas.
Agora, passamos de 7 bilhões de pessoas na Terra, o que significa dizer que temos, de um ponto de vista de ciência e ética, um compromisso que não havia no passado remoto.
O relatório do IPCC fala em 95% (contra 90% anteriormente) de certeza de o aquecimento global atual – disparado após a deflagração da Revolução Industrial, que lançou mão da energia contida em combustíveis fósseis em vez de músculos humanos e animais para produzir trabalho e, portanto, riqueza – ser de origem antrópica.
Os 5% restantes para completar 100%, na verdade, são uma margem de manobra para evitar críticas metodológicas de um pensamento predominantemente conservador quanto à interpretação da natureza antrópica do aquecimento.
Mas, e se essa pequena margem, os 5%, ainda puderem ser a interpretação correta do fenômeno (aquecimento natural)? As iniciativas preservacionistas, sugeridas pela versão antrópica, seriam, comparativamente falando, negativas em que? Em praticamente nada. Daí a conveniência de serem adotadas o mais breve possível.
Individualmente, é mais inteligente nos prepararmos para riscos maiores e, se eles não se revelarem tão desastrosos, tanto melhor. E isso também é válido para o coletivo, neste caso o conjunto da sociedade humana.
Assim, estaremos, como se pode dizer coloquialmente, “no lucro” e não no prejuízo, como sugerem recomendações que vão das fábulas de Esopo a uma diversidade de mitologias de todos os povos. Sem falar em procedimentos práticos para evitar acidentes como choques e incêndios em atividades que se estendem de estradas de ferro às vias aéreas, passando por ambientes industriais e moradias urbanas.
A crise da mídia
A mídia, no entanto, tem se mostrado ao rés do chão em meio ao processo de banalização que varre o mundo, peste que assola períodos de grandes transformações, quando o passado deixa de ser o que era e o futuro ainda não é o que virá a ser.
A grande mídia brasileira, em particular, está envolvida numa luta ideológica banal e mesquinha, com a determinação cotidiana de demonstrar que o governo que está aí não sobrevive por muito tempo: via inflação descontrolada (que não se confirma), apagão elétrico (que não se manifestou) ou, explosão do dólar (que não ocorreu).
O comprometimento ideológico rasteiro da grande mídia busca amparo na previsão largamente duvidosa de economistas, com pretensão de ciência exata, o que a economia está longe de ser e sugestivamente remete ao comentário ácido da rainha Elizabeth, sobre a crise de 2008: “De que se ocupavam os economistas, que não enxergaram nada disso?”
Claro que todo governo deve ser vigiado pela opinião pública, independentemente de sua coloração ideológica, mas esse já é outro assunto em que não convém entrar.
Em relação ao conteúdo divulgado pelo IPCC, agora, e o que deve ocorrer até outubro de 2014, é necessária uma reação nova e inédita da comunidade internacional via governos nacionais – o que não é nada trivial, deve-se reconhecer. Usinas nucleares, por exemplo, poderiam, de quase imediato, substituir as unidades térmicas, que no Brasil e outros países, oferecem energia elétrica a um brutal custo ambiental.
Usinas nucleares, em relação a gases de efeito estufa, são “limpas”, mas trazem temores, em parte fundamentados, por casos como o que ocorreu recentemente em Fukushima, no Japão.
Fontes alternativas também podem ajudar a diminuir a dependência dos combustíveis fósseis, mas não abastecerão as demandas globais, a menos que ocorram avanços científico-tecnológicos revolucionários na captação e uso, por exemplo, da energia solar, algo muito improvável.
Na essência, questões como aquecimento global com mudanças climáticas por liberação de gases de efeito estufa dizem respeito a uma transformação paradigmática nos padrões de energia utilizados por uma civilização como a nossa, que se prepara para espalhar-se por seu sistema solar de origem, supondo que não sejamos os únicos no Universo.
Um cenário de ficção
Pode parecer ficção, e de alguma forma é, com a diferença de que, neste caso, o futuro chegou e não está mais abaixo da linha do horizonte.
O astrofísico soviético Nikokai Kardashev antecipou-se a isso, em 1964, quando propôs um modelo para avaliar o grau de desenvolvimento tecnológico de uma civilização a partir da quantidade de energia consumida, neste caso em escala logarítmica, dividida em três grupos.
A primeira delas consumiria toda a energia de seu planeta de origem. A de segundo tipo sugaria a energia de sua estrela-mãe, no nosso caso o Sol. A terceira exploraria a energia de uma galáxia inteira.
Abordagens mais recentes (Zoltan Galantai) falam de um quarto típico, capaz de explorar a energia do universo visível ou (Milan M. Cirkovic) de um superaglomerado galáctico.
O conforto da ficção científica é que, na literatura, não somos personagens, ao contrário do que ocorre na vida real com a consolidação das previsões do IPCC.
Na vida real, em que se enquadram as previsões do painel da ONU, mudanças climáticas vão ameaçar desde o voo de aviões, com aumento de turbulência, à produtividade agropecuária nos campos, passando pela queda na oferta de alimentos dos mares, acidificados e com a vida comprometida. Além, como parece já ficar evidente, do aumento de desastres naturais.
Os preciosos estoques de águas deverão sofrer desvios ou se tornarão ainda mais escassos em determinadas regiões, com perturbação do ciclo hidrológico, a maneira como a água circula na Terra, acumulando-se em nuvens e precipitando como chuva ou neve, para abastecer fontes de lagos e rios que correm para o mar.
Num cenário assim, as previsões do IPCC, embora pareçam pura ficção, na realidade advertem de forma dramática que nossos netos não herdarão a Terra.
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Ulisses Capozzoli, jornalista especializado em divulgação científica, é mestre e doutor em ciências pela Universidade de São Paulo e editor de Scientific American Brasil