Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Brasil inzoneiro falou mais alto

A agitação dos últimos meses pode não ter produzido as mudanças desejadas, mas pelo menos deu para conferir quem é quem no país. Do amontoado de baboseiras veiculado na mídia à guisa de interpretar um movimento fora dos padrões normais, passando pelas patéticas antevisões de novos paradigmas jornalísticos, nas ações da chamada mídia ninja; culminando com a virtual renúncia aos princípios de ética e moralidade promovido pela própria Suprema Corte, ao se sujeitar a subterfúgios jurídicos para livrar a cara dos mentores do famigerado mensalão, vamos combinar: mais didático, impossível.

Se as gigantescas manifestações populares não foram suficientes para mudar nossa mequetrefe conjuntura político-governamental, que arrefecido o barulho nas ruas dá mostras de continuar mais firme e forte do que nunca, ficou claro que esse estado de coisas está diretamente vinculado à inapetência dos chamados poderes constituídos da sociedade, com a mídia a tiracolo. Sim, porque se a grande imprensa cerrou fileiras no sentido de que o STF não se curvasse à visível orquestração para favorecer os mentores do esquema, nomes respeitáveis acabaram fazendo o jogo da causa petista, com jornalistas e intelectuais de todas as cepas posando de doutores para desqualificar os votos dos cinco ministros que se opuseram aos embargos infringentes. Como se tal artifício não tivesse vingado graças unicamente à providencial nomeação, por força da aposentadoria dos ministros Ayres Britto e Cesar Peluso, de dois membros sob encomenda para os petistas.

Mídia frívola

Tudo bem que a desmedida repercussão acirrou os ânimos em torno do julgamento, com direito a torcida e tudo mais, daí a sem cerimônia com que se interpretaram as dissensões jurídicas em torno do caso. A mídia não ficou alheia ao verdadeiro clima futebolístico que tomou conta das discussões, com os exageros e elucubrações de praxe, mesmo entre os observadores mais calejados. Veja-se o tratamento diferenciado dado às entrevistas do jurista Ives Gandra e do ex-ministro do STF Eros Grau, publicadas nas edições de domingo (22/09) da Folha e do Estado de S.Paulo, respectivamente. Nomes de peso, profundos conhecedores das leis, um a favor e outro contra a aceitação dos embargos infringentes, mas dos quais este OI só tomou conhecimento do primeiro, que coincidentemente ou não, endossa a opinião dos decanos da casa.

Mais constrangedora ainda foi a tentativa de desautorizar o clamor popular contra a aceitação dos embargos, palpável não só nas ruas como nas mídias sociais, mediante argumentos que beiram a desfaçatez, como a alegação de que a chamada opinião pública não passa de mera peça de ficção. Ou um factoide criado pela imprensa como forma de pressão. Como se as quarenta mil páginas de um processo que se arrasta por quase dez anos não fossem suficientes para atestar a culpabilidade da camarilha que o Supremo condenou exemplarmente, em primeira instância, até que manobras de bastidores permitissem a virada de mesa que enojou a nação.

Por estas e outras, recrudesce a impressão de que simplesmente não há condições de o país evoluir sem práticas fundamentadas em princípios de ética e honestidade. Coisas básicas, porém raras num contexto em que as ilicitudes e o cambalacho não se limitam a questões materiais, inerentes a governantes inescrupulosos, abrangendo áreas mais delicadas, como as de foro intelectual e moral, representados por uma mídia frívola e corrompida, e um judiciário incapaz de satisfazer o desejo de justiça da população.

Nem pueril nem fictícia

Se por um momento, um lapso de tempo, chegou-se a acreditar que mudanças cruciais estavam em gestação por conta de uma inusitada mobilização popular, que a princípio ninguém entendeu direito – por não ter um caráter político ou ares de levante à moda antiga –, a realidade do Brasil inzoneiro falou mais alto. Isso que o objetivo não era desestabilizar o governo Dilma Rousseff, que apesar dos pesares não chegou a ser hostilizada, talvez porque, bem ou mal, a presidente não escondeu que acusou o golpe, a ponto de atropelar os próprios pares de governo para propor um plebiscito do qual, arrefecidos os ânimos, não se fala mais. O que se queria era pura e simplesmente protestar, reivindicar por mudanças que costumam ficar só nas promessas, nada muito difícil de entender não estivesse a mídia tão apartada dos anseios populares.

Ao ser atropelada pelos fatos, a mídia em geral – e principalmente a impressa – deixou evidente não só o seu despreparo no papel de intérprete dos acontecimentos, como acusou o golpe por de certa forma, também estar entre os alvos dos protestos. Ninguém escapou de passar por apuros nas ruas, com viaturas sendo incendiadas, repórteres hostilizados, manifestações nas portas das empresas. Manifestações cabais de insatisfação que não foram totalmente em vão, como se viu pelo surpreendente mea culpa de O Globo relacionado ao apoio editorial dado ao golpe militar de 1964.

Sinal de que a controvertida opinião pública não é tão pueril e muito menos fictícia como foi dito, e que certas circunstâncias, o seu inato senso de justiça faz jus à velha crença de que a voz do povo é a voz de Deus. Com ou sem embargos infringentes.

******

Ivan Berger é jornalista, Santos, SP